Pouco menos de um mês antes de deixar o cargo de ministro do Meio Ambiente do governo de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles esteve em Belo Horizonte no dia 17 de maio. O motivo foi o lançamento de uma Chamada Pública para selecionar projetos de usinas de triagem mecanizadas para o tratamento de resíduos sólidos urbanos em âmbito estadual. A iniciativa faz parte do Programa Lixão Zero, que tem uma verba total de R$ 100 milhões de reais, provenientes de um acordo entre a Vale e o Ibama, para apoiar os municípios mineiros na gestão dos resíduos.
O Programa Lixão Zero foi lançado em abril de 2019 com o objetivo de erradicar os lixões em todo o país. De acordo com a Associação Brasileira de Tratamento de Resíduos e Afluentes (Abetre), o Brasil ainda tem 2.707 lixões – 341 em Minas Gerais. Como descrito no próprio projeto, a proposta é “minimizar os impactos ambientais decorrentes das pressões que os resíduos sólidos urbanos exercem sobre os recursos naturais, bem como realizar as mudanças necessárias para a destinação ambientalmente adequada dos resíduos sólidos urbanos”.
Apesar de parecer uma solução imediata para o lixo, especialistas em saneamento e organizações da sociedade civil alertam que as propostas oferecidas pelo programa podem trazer impactos ambientais, sociais e econômicos ainda mais danosos do que os atuais modelos de gestão. Eles também criticam a falta de diálogo do governo com a população e seus representantes.
[g1_quote author_name=”Marcelo Souza” author_description=”Pesquisador da UFMG” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Como o programa tem um foco voltado para a recuperação energética a partir do tratamento térmico, a gente acredita que é um retrocesso em relação ao que temos já desenvolvido no Brasil em termos de reciclagem. A queima de rejeitos aumenta a poluição do ar
[/g1_quote]No caso específico de Minas Gerais, o edital do Lixão Zero vai selecionar propostas para implantar usinas de triagem mecanizadas, a serem executadas por consórcios públicos no estado. O pré-requisito é que tais usinas devem também produzir Combustível Derivado de Resíduos Urbanos (CDRU), processo que envolve a incineração de materiais, contrariando os artigos 6, 7 e 9 da Lei 12.305, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidas (PNRS).
Criada em 2010, a PNRS tem como objetivo contribuir com a transformação dos resíduos em um bem econômico com valor social, considerando a qualidade de vida e cidadania para os catadores e outros profissionais envolvidos na cadeia produtiva. “Como o programa tem um foco voltado para a recuperação energética a partir do tratamento térmico, a gente acredita que é um retrocesso em relação ao que temos já desenvolvido no Brasil em termos de reciclagem”, afirma o professor Marcelo Souza, pesquisador do Núcleo Alter-Nativas de Produção da Escola de Engenharia da UFMG.
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Veja o que já enviamosPara o pesquisador, ao dar protagonismo a propostas técnicas centradas na queima dos materiais, o Programa Lixão Zero torna marginais iniciativas mais sustentáveis, como a coleta seletiva, a inclusão socioprodutiva e a educação ambiental, que, segundo a PNRS, deveriam ser prioritárias. “Do ponto de vista ambiental, ao focar em queima de resíduos, você cria uma competição com as estratégias de reciclagem”, acrescenta Souza.
A proliferação de lixões é um problema ambiental que acompanha o desenvolvimento urbano há décadas em todo território brasileiro. Acabar com eles soa atraente, mas é necessário olhar com cuidado e atenção às premissas do programa, como a obrigatoriedade da produção de CDRU nas centrais que se pretende criar, como disposto no ponto 2.3 da Chamada Pública.
Os efeitos negativos da incineração no meio ambiente têm feito diversos países abandonarem essa tecnologia para investir na coleta seletiva. É o caso dos países da União Europeia, que pretendem abolir totalmente a incineração até 2040. “A queima de rejeitos aumenta a poluição do ar. Por mais que existam tecnologias para filtrar a fumaça, esta é a parte mais cara de uma planta de incineração. Isso pode funcionar relativamente bem em países com uma legislação rigorosa, mas qual o nível de fiscalização que teremos desses filtros no Brasil?”, questiona o pesquisador Marcelo Souza.
Além da poluição do ar, a incineração é uma questão de saúde pública, pois a queima dos rejeitos libera uma série de toxinas, além dos chamados poluentes orgânicos persistentes, substâncias comprovadamente cancerígenas. Para o pesquisador, a solução apresentada pelo Lixão Zero pode ser considerada prejudicial em vários aspectos. “São questões ambientais, de desemprego estrutural e de saúde pública que acabam ficando muito mais caras do que investir em educação ambiental, separação, coleta seletiva, reciclagem e compostagem”, pontua.
[g1_quote author_name=”Gilberto Chagas” author_description=”Integrante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O Brasil tem uma cadeia produtiva consolidada, tem catadores que fazem a coleta seletiva, tem indústrias de reciclagem, tem um grande potencial. Aí chegam empresas falando que vão resolver o problema trazendo tecnologias que hoje estão sendo até banidas da Europa
[/g1_quote]Pesquisas apontam riscos da incineração para a saúde desde a década de 1970. Um estudo realizado na Espanha entre os anos 1997 e 2006 aponta para o aumento significativo de morte por câncer em cidades próximas a incineradores e instalações para recuperação ou descarte de resíduos perigosos. Uma outra pesquisa publicada em 2013, que analisou dados de 21.248 crianças de seis, 18 e 36 meses de idade em Taiwan, mostrou atraso no desenvolvimento do domínio motor em crianças que vivem a menos de três quilômetros de incineradores.
A produção de CDRU provoca ainda uma competição com tecnologias mais pertinentes do ponto de vista ambiental, como a reciclagem. Isso acontece porque o combustível produzido precisa ter um alto poder calorífico (quantidade de energia interna) e os materiais com maior potencial são justamente os recicláveis, como o plástico e o papel. “O Brasil tem uma cadeia produtiva consolidada, tem catadores que fazem a coleta seletiva, tem indústrias de reciclagem, tem um grande potencial. Aí chegam empresas falando que vão resolver o problema trazendo tecnologias que hoje estão sendo até banidas da Europa”, argumenta o catador Gilberto Chagas, integrante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).
Gilberto teve a oportunidade de visitar o velho continente diversas vezes para encontros e intercâmbios de experiências. Ele afirma que as empresas que pararam de vender o maquinário necessário para a incineração nesses locais têm feito pressão sobre países da América Latina que apresentam leis mais brandas. Assessor técnico do Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável (Insea), Luciano Marcos Silva também vê com desconfiança a falta de transparência da Chamada Pública para a implementação do Programa Lixão Zero em Minas Gerais: “Por que a tecnologia não é exposta? Por que os consórcios têm que ter usinas com uma tecnologia pré-definida, sem nenhum estudo de viabilidade e de impacto econômico ambiental? O edital nem cita a palavra catador. Não está preocupado em resolver o problema, está preocupado em atender o interesse privado”.
Catadores e cooperativas não são considerados no Lixão Zero
Para além das irregularidades ambientais, os fatores sociais e econômicos também devem ser levados em conta, como destaca a Defensoria Pública da União (DPU). Ainda que as condições de trabalho na cadeia produtiva da reciclagem sejam precárias para um grande parcela dos catadores e catadoras, ela é fonte de sobrevivência para aproximadamente 800 mil pessoas que não conseguem inserção no mercado de trabalho formal e geram renda a partir da separação e comercialização de materiais recicláveis, como aponta a estimativa do MNCR.
Em nota técnica divulgada no lançamento do Programa Lixão Zero, o Grupo de Trabalho Para a Promoção de Direitos das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis e Reutilizáveis da DPU destaca o protagonismo destes trabalhadores enquanto agentes ambientais no tratamento de resíduos. A Defensoria ressalta que não é contra a extinção dos lixões, desde que haja um planejamento que preveja a inclusão dos catadores em outras etapas da coleta seletiva, como no incentivo ao funcionamento de cooperativas e outras formas de associações de catadores. “Concordamos que os lixões não deveriam sequer existir. Mas, como existem, também existem trabalhadores que dependem deles. Um processo gradual e de transição deveria ser feito pela União com base em suas obrigações a partir da Política Nacional de Resíduos”, comenta Cláudio Luiz dos Santos, defensor público federal e representante da Região Sudeste do Grupo de Trabalho de Catadores e Catadoras da DPU.
Um dos pontos mais críticos apontados pela Defensoria em relação ao Lixão Zero é que os catadores não são sequer citados no plano de ação do programa, desconsiderando um trabalho histórico que tem sido realizado pela categoria nas últimas décadas. “Se [o edital] não contempla a obrigação legal de inclusão social e econômica das catadoras e catadores, ele não obedece a legislação que cuida da política dos resíduos sólidos no país”, aponta o defensor público.
Para estar em conformidade com a PNRS, os editais deveriam, na visão da Defensoria Pública da União, intensificar os trabalhos de coleta seletiva e integrar os catadores nestes processos antes de partir para a implementação das usinas de produção de combustível. “Só assim é possível que os trabalhadores transitem deste ambiente indesejável, que é o lixão, para o sistema de coleta seletiva em associações e cooperativas. Quando o fim dos lixões é traumático e não existe um plano de transição ou um sistema coleta seletiva anteriormente implantado, as pessoas ficam sem trabalho da noite para o dia. São pessoas que muitas vezes estão executando a atividade há décadas, subsistem daquela atividade e são descartadas sem qualquer cuidado de bom senso ou humanidade. Em nossa visão, eles têm direito de permanecer nessa economia”, conclui Santos.
Manifestações contra o Lixão Zero se acumulam: no dia 22 de julho, foram organizados atos contra o programa em diversas cidades do estado, sob a liderança do Movimento Minas Gerais contra a Incineração, composto por 163 organizações da sociedade civil, cooperativas de catadores e entidades de trabalhadores. Outra ação importante partiu da Câmara Municipal de Pedro Leopoldo, cidade na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde os vereadores aprovaram por unanimidade uma moção de repúdio ao edital. A moção solicita a suspensão e revisão da Chamada Pública.
O #Colabora entrou em contato com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, que preferiu não comentar sobre o assunto. A assessoria da Semad enviou um email no qual afirma que “o edital é de responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, órgão responsável pelo Lixão Zero e todas as tratativas que envolvem o programa. A entrevista e demais esclarecimentos devem ser feitos junto ao Governo Federal”. Mesmo argumento sobre a responsabilidade do ministério foi usado após as manifestações contra o programa quando acrescentou, em nota, que “é equivocada a informação de que o edital é direcionado para a implantação de unidades de produção de combustível derivado de resíduos urbanos (CDRU)”. O o item 2.3 do edital, entretanto, deixa claro que “as usinas deverão promover a separação em três frações, quais sejam resíduos recicláveis secos, resíduos orgânicos e rejeitos, bem como produzir combustível derivado de resíduo urbano”, este um processo possível apenas a partir da incineração dos resíduos.
O Governo Federal também foi contatado a partir da assessoria de imprensa do Ministério Meio Ambiente, mas os representantes não tiveram disponibilidade para responder todos os questionamentos sobre o programa. Uma entrevista começou a ser feita com o secretário de Qualidade Ambiental, André França, porém, com 10 minutos, falhas na ligação interromperam a conversa. Durante 15 dias, a reportagem tentou remarcar a entrevista mas a assessoria do ministério alegou falta de agenda.
A produtiva – e rentável – cadeia da reciclagem
Dos 80 milhões de toneladas de lixo produzidas anualmente no Brasil, apenas 4% são recicladas, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). O número é baixo frente ao potencial do setor. Prova disso é o índice de reciclagem do alumínio, que alcançou incríveis 97,4% no ano de 2020 – número que, mais uma vez, colocou o Brasil entre os líderes mundiais de reaproveitamento deste material.
O sucesso da reciclagem de alumínio no país tem uma explicação: ele é o material que apresenta maior valor de mercado entre os recicláveis. O quilo do alumínio vem sendo comercializado a um preço médio de R$ 6,40 na capital mineira, enquanto o quilo da garrafa pet vazia é vendida a R$ 1,69. Já o quilo de vidro não chega a R$ 0,10.
A “corrida” pelas latinhas acontece porque os catadores de materiais recicláveis não são remunerados pelo seu serviço: ganham apenas pelos produtos que vendem. “Só a coleta em si não paga o custo de operação. Como o material reciclável é uma commodity, o preço oscila. Se não tiver uma remuneração, os catadores não conseguem manter isso legal. A gente praticamente paga para trabalhar para os municípios. Cada tonelada de material recolhido pela coleta seletiva deixa de ir para o aterro, deixa de ir para o meio ambiente, evita doenças”, explica Gilberto Chagas. do MNCR.
Mesmo na informalidade, os catadores atuam como verdadeiros prestadores de serviço: segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), eles são responsáveis por quase 90% do lixo reciclado no Brasil.
Diversos grupos têm desempenhado papéis centrais na coleta seletiva de municípios e contribuído para que as cidades consigam avançar na gestão dos resíduos urbanos. É o caso da Cooperativa de Reciclagem e Trabalho (Coopert) de Itaúna, cidade que fica a pouco mais de uma hora de Belo Horizonte. Em 2013, a cooperativa assinou um contrato com a prefeitura para realizar a coleta seletiva do material reciclável em todo o município. “A gente faz a coleta do seco e uma empresa terceirizada faz a coleta do molhado [todo tipo de material que não possui mais uso]. Dividimos por etapa: o dia que o caminhão do lixo molhado está em um lado da cidade, a gente está no outro, e vice-versa. E na área central a gente vai todos os dias”, explica a diretora-presidente da Coopert, Cintia Cristina de Brito.
A maior dificuldade para implementar o serviço foi criar uma cultura de separação do lixo seco e do lixo molhado entre os moradores. Para isso, foram realizadas uma série de ações informativas. “A gente tem um grupo de mobilização e teatro que vai nas casas das pessoas fazendo campanha da coleta seletiva, explicando os dias que o caminhão está passando em tal bairro”, conta Cíntia, que complementa: “onde tivesse um espaço a gente tava falando”. O esforço trouxe bons resultados: segundo dados da Prefeitura de Itaúna, 93% do lixo recolhido na cidade era aterrado em 2013. Um ano e meio depois, o número caiu para 65%.
A diferenciação dos resíduos na fonte geradora – ou seja, na casa das pessoas – é um ponto central. Como destaca o pesquisador Marcelo Souza, se não houver essa diferenciação logo no início do processo, a destinação ambientalmente adequada dos resíduos se torna inviável. “Todas as tecnologias sustentáveis partem do pressuposto da separação na fonte. Qualquer política de gestão de resíduos tem que implementar programas de separação na fonte e coleta seletiva, principalmente com a participação das cooperativas de catadores, pois quando eles são incluídos na coleta, o processo é feito com mais qualidade. Também é preciso trabalhar fortemente em estratégias para mobilização social”. Propor a separação dos resíduos é incentivar a reciclagem e a reinserção das matérias na cadeia de produção. Propor a queima de resíduos, como faz o Programa Lixão Zero, é incentivar o consumo e a lógica extrativista.
Nunca foi tão pertinente o velho dito: Deus recicla e o Diabo incinera.
Fake news: o programa não incentiva a incineração, mas sim, a produção de energia elétrica limpa (verde) através da gaseificação de rejeitos, após todo o processo de coleta seletiva, somente é utilizado o que sobrar sem utilidade (rejeitos), após todo o trabalho de associações e cooperativas, as quais são muito importantes no processo, pois as usinas não são capazes de gaseificar metais, por exemplo.
Além do mais, há diversas publicações científicas em todo o mundo, que estimulam tal atividade, considerada em convenções internacionais como destinação ambiental ambientalmente adequada.
Fonte: http://www.usp.br/agen/?p=220400