Foi a partir da sugestão da mãe que a atriz Roberta Nascimento, 32 anos, decidiu assinar uma declaração de união estável com a artista visual Talitha Andrade, de 35 anos. Namoradas há 10 anos, Roberta e Talitha se casaram nesta quinta, às 16h, no Cartório da Vitória, em Salvador, no momento em que o Supremo Tribunal Federal retomava o julgamento de duas ações que pedem a criminalização da homofobia, caracterizada pelo preconceito contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis). O julgamento começou na quarta passada, dia 13. Até o momento, quatro ministros do STF já votaram. Todos enquadraram a homofobia e a transfobia (intolerância contra transexuais) como crime de racismo.
[g1_quote author_name=”Roberta Nascimento” author_description=”Atriz” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Muitas mulheres vivem relações com homens por imposição e por não terem referências de outras relações lésbicas. Desde o início da nossa relação nos enxergarmos como corpos coletivos e sempre procuramos tornar pública nossa relação
[/g1_quote]O casal já sentiu na pele a discriminação por conta da orientação sexual quando foram agredidas, em 2013, por um segurança patrimonial da galeria de arte da Associação Cultural Brasil Estados Unidos (Acbeu), em Salvador. Na ocasião, o homem que trabalhava no local quis impedi-las de utilizar o sanitário feminino chegando a dar socos em Roberta, que teve seu rosto deformado. Dois anos depois, o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) ao julgar a ação indenizatória proposta pelo casal, determinou, por unanimidade, que elas recebessem R$ 25.996,00, a título de danos morais. No entanto, na ação penal, não constava qualquer referência de que a atitude do segurança havia sido motivada por homofobia. Por não ser tipificada na legislação, a motivação por homofobia é considerada irrelevante em um processo criminal e, por isso, foi omitida do processo.
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Veja o que já enviamosEmbora não se possa afirmar que o Brasil é o país que mais mata LGBTs, por falta de levantamentos oficiais, as estatísticas sobre violência deste tipo são alarmantes no país. O grupo GAY da Bahia, por exemplo, principal referência nacional na contagem de mortes de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, aponta que uma pessoa LGBT foi morta ou se matou a cada 19 horas e 40 minutos, no Brasil, em 2017. No total, foram 445 mortes contabilizadas no Relatório 2017 do Grupo Gay da Bahia, levantamento feito por meio de postagens em redes sociais e notícias de jornal.
Para reafirmar o direito de duas mulheres trocarem afeto, as namoradas resolveram anunciar o casamento pelas ruas de Salvador. A frase “Roberta e Talitha vão casar” foi escrita por elas, em letra cursiva, usando spray em mais de 20 muros da cidade. “Foi uma forma de comunicar ao mundo e também de convidar as pessoas para participarem conosco”, diz Roberta. A resposta de quem passava pelas ruas veio de diversas formas. “Recebemos muitas selfies de pessoas nos muros pichados dizendo que se sentiram fortalecidas, gostaram de ver um afeto no meio de tanto ódio, no meio de tanto concreto”, conta ela. Teve também repreensão da Polícia Militar que as flagrou em uma das vezes que escreviam, mas depois de explicar que escolhiam os muros descuidados para se manifestar, receberam votos de felicidades do policial.
[g1_quote author_name=”Roberta Nascimento” author_description=”Atriz” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Ficamos revoltadas e nos sentimos invisíveis quando disseram que não tinham as imagens que provariam como foi dada a agressão. Por isso criamos a exposição e nestes dez dias recebemos mais de 100 pessoas, a maioria mulheres lésbicas, que ocupavam o microfone para mostrar que nós existimos e resistimos
[/g1_quote]Embora não estivesse nos planos iniciais de Roberta e Talitha passar pelo ritual do casamento, elas mudaram de ideia com o objetivo de contestar a narrativa hegemônica e usufruir do direito garantido pela Justiça brasileira, em maio de 2011, quando o STF mudou o entendimento do Código Civil de que a família era formada apenas por um homem e uma mulher. “Queremos ocupar o estado e as ruas”, diz Talitha. “Muitas mulheres vivem relações com homens por imposição e por não terem referências de outras relações lésbicas. Desde o início da nossa relação nos enxergarmos como corpos coletivos e sempre procuramos tornar pública nossa relação”, explica Roberta.
Além de expor nos muros que “Talitha e Roberta vão casar”, elas distribuíram panfletos em diversos pontos da capital baiana com a frase “nosso amor sapatão” convidando as pessoas a participarem da celebração. Como parte das ações de divulgação do casamento, elas também transmitiram ao vivo pelo Youtube o momento do “sim”, fazendo dele um manifesto contra a LGBTfobia. “Eu tinha uma certa resistência em assinar um contrato sobre a minha relação, mas diante do cenário de deslegitimação das nossas afetividades, este momento é um ato político, de rebeldia e de afeto para reafirmar que nossas famílias e vidas importam. É um manifesto artístico cívico”, pontua Roberta.
Em setembro passado, Roberta e Talitha celebraram uma década de relacionamento com a exposição ‘Nosso amor sapatão – 10 anos de revolução’, transmitida ao vivo, ininterruptamente, por 10 dias, com diversas câmeras instaladas dentro de casa. O conceito da exposição foi criado a partir do caso de agressão que elas sofreram na Acbeu. As imagens das câmeras de segurança instaladas no local que poderiam ser usadas na defesa das duas desapareceram. “Ficamos revoltadas e nos sentimos invisíveis quando disseram que não tinham as imagens que provariam como foi dada a agressão. Por isso criamos a exposição e nestes dez dias recebemos mais de 100 pessoas, a maioria mulheres lésbicas, que ocupavam o microfone para mostrar que nós existimos e resistimos”, diz Roberta.
A arte sempre esteve presente na vida das duas. Elas se conheceram quando Talitha foi contratada para fotografar um espetáculo em que Roberta era parte do elenco. “Ao longo destes 10 anos, nós aprofundamos nossa relação através de manifestações artísticas. A certidão do casamento também é parte do nosso processo artístico”, conta Talitha, que acredita na arte como forma de transformação social.
Resposta à ameaça conservadora
“Agora que o Bolsonaro ganhou, vocês vão ter que casar”, falou Maria Ginaldete Nascimento para a filha Roberta no fim do ano passado. Diante das constantes declarações homofóbicas que marcam a vida pública do presidente e com a eleição da bancada mais conservadora do congresso desde 1964, de acordo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a população LGBT teme a perda de direitos já conquistados e vem batendo recordes no número de casamentos. De acordo com a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), novembro e dezembro foram os meses que tiveram mais uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo durante todo o ano de 2018. Até 10 de dezembro, 2018 registrou 6.965 casamentos contra 5.887 em 2017, sendo que apenas novembro cresceu 65,7%, passando de 595 para 986.