Violência online também atinge mulheres candidatas no interior do Brasil

Observatório sobre violência de gênero analisou mais de cinco mil comentários em debates eleitorais em Regiões Metropolitanas e municípios do interior

Por Revista AzMina | ODS 16ODS 5 • Publicada em 4 de outubro de 2024 - 11:50 • Atualizada em 4 de outubro de 2024 - 13:59

Violência online após debates atinge candidatas no interior do Brasil (Arte: AzMina)

(Gabi Coelho*) – Enquanto as capitais do Brasil monopolizam a atenção nas campanhas eleitorais, uma realidade preocupante se repete nas regiões metropolitanas e no interior: a violência política de gênero online. Foi o que encontramos analisando 5.988 comentários de eleitores nas transmissões no YouTube de debates promovidos por emissoras de TV e rádio em 25 cidades de quatro regiões do Brasil, entre os dias 10 de agosto e 17 de setembro de 2024.

(Esta reportagem mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e transfóbico. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento na internet, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, além de como podemos identificá-la).

Leu essa? Candidatas a prefeituras são alvo de misoginia e transfobia após debates na TV

Nas interações analisadas, são abundantes os discursos ofensivos, desqualificadores e misóginos. Essa realidade reflete tanto as desigualdades de gênero persistentes no espaço público quanto a hostilidade enfrentada por mulheres candidatas. A análise faz parte da terceira edição do MonitorA. O observatório de violência política de gênero online desenvolvido pelo Instituto AzMina, InternetLab, Núcleo Jornalismo e Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia.

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Cenário muda por regiões

O MonitorA analisou debates realizados nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. A região Norte carece de dados, reforçando o impacto do fenômeno dos desertos de notícias – cidades onde não há cobertura jornalística local, ou ‘quase desertos’, onde há apenas um ou dois veículos de imprensa. Mesmo nos locais em que a reportagem localizou a transmissão de debates ou sabatinas, havia pouca ou nenhuma participação da audiência nos comentários.

Entre as regiões analisadas, o Sudeste tem a maior proporção de comentários, concentrando 48,3% do total, seguido pelo Nordeste com 28,94%, Sul com 20,07% e Centro-Oeste com 2,69%. Esses percentuais referem-se ao volume geral de participação com comentários, e não exclusivamente à incidência de ataques. Aalguns usuários realizam mais de uma agressão dentro de um mesmo comentário, o que pode aumentar a intensidade de violência verbal em certas regiões.

A cada edição, o MonitorA classifica milhares de conteúdos potencialmente ofensivos dirigidos a candidatas em redes sociais, e quando os identifica, diferencia o que é insulto ou ataque. Os insultos são expressões desagradáveis e até inadequadas, mas que fazem parte do jogo político no limite da liberdade de expressão. Já os ataques usam atributos e marcadores sociais das candidatas para inferiorizá-las, podendo se manifestar através da infantilização, misoginia, racismo, transfobia, assédio e incitação à violência, entre outros, com recomendação para exclusão das redes.

Ataques e insultos em municípios do interior e de regiões metropolitanas (Infografia: AzMIna)
Ataques e insultos em municípios do interior e de regiões metropolitanas (Infografia: AzMIna)

Os dados do MonitorA indicam que, tanto em regiões metropolitanas quanto em cidades do interior, o discurso violento é uma realidade. Embora os comentários ofensivos não mirem só as mulheres, eles refletem um sinal claro de violência no debate político em geral. Santos (SP) liderou o maior volume de comentários potencialmente ofensivos, com 11,27% (675 ocorrências), seguida por Assú (RN), com 9,27% (555 ocorrências), e Piracicaba (SP), com 6,60% (395 ocorrências). Olinda (PE) teve 6,26% (375 ocorrências), São João de Meriti (RJ), 5,8% (328 ocorrências), Santo André (SP), com 5,44% (326 ocorrências) e Santa Cruz do Capibaribe (PE), com 5,29% (317 ocorrências). Esses números referem-se ao total de comentários analisados, e não exclusivamente a ataques diretos.

Enquanto o Sudeste concentra quase metade dos ataques registrados, o Centro-Oeste apresenta números bem mais baixos. Questões como o desenvolvimento econômico e o nível de engajamento político parecem influenciar essa diferença. Sobre isso, Michelle Ferreti, Diretora de Pesquisa do Instituto Alziras, explica: “A violência política de gênero está presente de maneira muito intensa em diferentes cidades e regiões. Alguns estudos já mostraram que a cobertura dos meios de comunicação acaba sendo mais intensa nas regiões que concentram mais riqueza e nas cidades de maior porte e, por isso, a visibilidade pública dos episódios de violência política de gênero acaba sendo um pouco maior nessas localidades”.

Como as ofensas se dividem

As mulheres candidatas foram alvo de 43,95% das mensagens ofensivas – somando insultos e ataques –, em contraste com os homens candidatos, com 23,60%. Não foi possível identificar a quem miravam 17,43% dos comentários agressivos.

Samara Castro, Diretora de Promoção da Liberdade de Expressão da Secretaria de Políticas Digitais (SPDIGI/SECOM), comenta como os ataques estimulam a subrepresentação das mulheres na política. “Esse tipo de ofensa ou ataque tem duas dimensões. A primeira é individual, na maneira como ela se enxerga e consegue lidar com esses ataques. Por mais que tenhamos pessoas experientes que sabem como funciona essa política agressiva, isso afeta a saúde mental dessas candidatas”.

Ela explica que a segunda dimensão está atrelada à coletividade e competitividade: “Quando esses ataques são frequentes, a campanha precisa decidir se vai lidar com eles ou ignorá-los”. Como advogada eleitoral, Samara já precisou lidar com esses ataques e afirma que é um dos fatores que mais afasta as mulheres da política institucional, pois transfere os esforços de campanha da conquista de votos para a defesa das agressões.

Mesmo considerando todos os ataques contra homens e mulheres, a misoginia tem destaque, representando 19,58% de todos os ataques. Outros tipos de violência incluíram inferiorização, que foi o mais comum (24,41%), seguida por sentimentos de nojo (17,10%) e descrédito intelectual (10,90%). Além disso, os insultos representam 24,68% das interações, e os ataques diretos, 13,48%.

Inferiorização e misoginia na dianteira dos ataques (Infografia: AzMina)
Inferiorização e misoginia na dianteira dos ataques (Infografia: AzMina)

Vergonha, piada e lixo

Os termos mais recorrentes em todos os comentários comprovados revelam, em muitos casos, uma tentativa de desqualificação e ataque a candidaturas. A palavra “mulher” apareceu em 1.251 comentários, frequentemente seguida de termos como “vergonha” (701 ocorrências), “piada” (268) e “lixo” (197).

Carolina Gonzalez, doutora em Linguística e consultora no MonitorA, reflete sobre a alta recorrência desses termos e sua função desqualificadora no debate público. “Expressões como ‘mulherzinha’ ou questionamentos sobre ser ‘uma mulher de verdade’ são qualificadores para validar ou invalidar a pessoa. Com essa alta recorrência, estamos entrando em um espaço historicamente negado às mulheres, e esse discurso tenta nos relegar ao lugar de ‘outro’.”

Algumas cidades se destacaram pelo uso frequente de termos ofensivos contra candidatas mulheres. Em Santos, a palavra “mentirosa” foi registrada 95 vezes, enquanto “nojo” aparece 25 vezes. Na cidade de Olinda, o termo “marionete” foi utilizado 93 vezes, e em Assú, “mentirosa” apareceu 19 vezes.

Michelle Ferreti, Diretora de Pesquisa do Instituto Alziras, alerta para as implicações psicológicas e políticas às candidatas vítimas violência política de gênero e raça, que empobrece a sociedade e a própria democracia. “Esse padrão normaliza e torna socialmente aceitável a violência e a misoginia contra todas as mulheres. O que acontece na política ajuda a moldar padrões de comportamento na sociedade”, analisa.

Raquel Branquinho, Procuradora da União e diretora-geral da Escola Superior do Ministério Público da União, complementa lembrando que os ataques podem influenciar diretamente a percepção pública da competência feminina, especialmente quando envolvem inferiorização e misoginia, indicando que a mulher é incapaz de desenvolver tarefas políticas. “Esses ataques criam uma percepção de inferioridade, seja intelectual, seja de gestão, que afasta as mulheres de espaços de decisão.”

Alvos mais frequentes de ataques

O recorte de gênero da violência política se evidencia nos ataques dirigidos a mulheres candidatas: foram 733 insultos e 462 ataques contra elas. Os candidatos homens, por outro lado, enfrentaram 417 insultos e 105 ataques.

Os ataques nos debates eleitorais assumem diversas formas, desde misoginia e inferiorização até preconceitos como homofobia, racismo, capacitismo e xenofobia. As candidatas foram frequentemente chamadas de “mentirosas”, “fracas” ou “despreparadas”, além de receberem ofensas relacionadas à aparência física e à faixa etária, como “nojenta” e “velha”, reforçando estereótipos de gênero.

Sobre como as instituições estão respondendo a esses ataques, Raquel Branquinho afirma que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Ministério Público Eleitoral trabalham nesse enfrentamento, envolvendo inclusive a polícia. “O TSE e o Ministério Público Eleitoral precisam entender o contexto de violência patriarcal em todas as esferas da vida das mulheres, como a violência psicológica, moral, física e simbólica. Essas agressões criam descrédito até mesmo perante o eleitorado, dificultando o livre exercício do mandato pelas mulheres eleitas”, analisa.

A jurista reforça a necessidade de capacitação do sistema de Justiça para uma perspectiva de gênero, como no protocolo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em fevereiro de 2021. Outro ponto relevante é a subnotificação dos casos do tipo. O Monitor da Violência Política de Gênero e Raça, do Instituto Alziras mostra que, nas ações penais eleitorais de violência política de gênero ajuizadas até janeiro de 2024, 100% são mulheres com mandato, 53% brancas. Isso indica que mulheres candidatas, particularmente as negras e indígenas, seguem enfrentando barreiras de acesso à justiça.

Segundo Michelle Ferreti, do Alziras, os dados públicos sobre violência política de gênero e raça são insuficientes, com baixa produção estatística e subnotificação. Na edição de 2022, o MonitorA investigou o uso da Lei de Violência Política de Gênero e, o relatório final recomendou a criação de um Portal Único de recebimento e cadastro de denúncias, a consolidação de dados sobre os casos judiciais para melhorar a compreensão do problema, a criação de protocolos interinstitucionais para acolhimento das vítimas e para o registro e encaminhamento das denúncias. O relatório indica ainda a criação de programas de formação continuada para dirigentes partidários, autoridades policiais, advogados e membros so sistema de Justiça.

“A Lei de Violência Política de Gênero ainda é muito recente. Precisamos compreender em quais casos em que ela é aplicada, como é interpretada e por quem é mobilizada. Não existe hoje nenhum portal unificado que permita a coleta de estatísticas sobre os casos ou sobre as decisões referentes à Lei. Para que haja um maior controle social e uma melhor compreensão do fenômeno, é fundamental que haja uma compilação destas informações”, afirma Clarice Tavares.

Desertos de notícias

Pare obedecer à metodologia do MonitorA, essa reportagem não conseguiu analisar comentários a debates do Norte. Na amostra, nenhuma das transmissões no YouTube na região tinha mais de 100 comentários. Uma das hipóteses para isso é a ausência de cobertura jornalística significativa, criando o que pesquisadores da área chamam de “desertos de notícias”. Eles agravam a invisibilidade de fenômenos importantes, como a violência política de gênero.

Natasha Vasconcelos, fundadora da Rede Amazônica de Política Para Mulheres, afirma que “a escassez de imprensa local prejudica o monitoramento da política e deixa os habitantes à mercê de processos digitais violentos de desinformação e práticas eleitorais abusivas”. Nessas localidades, aumenta a vulnerabilidade da população a crimes eleitorais como a compra de votos. “Às vezes [o momento da compra do voto] é a única presença do executivo ou legislativo no cotidiano”, denuncia.

Mesmo com os desafios históricos na região amazônica, dados do Atlas da Notícia mostram avanço: menos 30% de municípios classificados como desertos de notícias. O crescimento foi impulsionado pelo registro de 78 novos veículos online e 73 rádios.

Os desertos de notícias continuam presentes em boa parte da região Norte, como demonstra o MonitorA. Embora debates eleitorais tenham ocorrido em seis estados da região, apenas 13 cidades e 17 mulheres candidatas participaram. As transmissões no YouTube tinham poucas visualizações e quase nenhum comentário da audiência.

Metodologia

Foram monitorados os vídeos de 25 debates entre candidatas e candidatos a prefeituras de regiões metropolitanas e cidades do interior promovidos por emissoras de TV, rádio e veículos online. Entre os dias 10/08/2023 e 17/09/2024, quando aconteceram os confrontos, e o dia 18/09/2024, coletamos comentários potencialmente ofensivos feitos nas transmissões ao vivo e nos comentários fixos do YouTube. A definição de ofensa acompanha um léxico desenvolvido para essa pesquisa com palavras de variado potencial ofensivo, misóginas, sexistas, racistas, lesbo, trans e homofóbicas, entre outros. Excluindo linhas repetidas e termos que geraram altas taxas de falsos positivos, fizemos uma análise qualitativa de 5988 comentários. Todos foram lidos individualmente por um grupo de sete analistas, a fim de identificar se o conteúdo era ou não um ataque, ou insulto direcionado a candidatas, candidatos, jornalistas, políticos que não são candidatos, veículos de mídia, grupos políticos ou eleitores. Realizamos análises quantitativas após a codificação manual. As porcentagens apresentadas na matéria podem se referir ao total de comentários analisados ou ao total de ofensas identificadas, o que será sempre descrito ao longo do texto e infográficos.

*Gabi Coelho é jornalista, empreendedora, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e conselheira da Inova.aê

**Colaboraram nessa reportagem Ana Carol Branco e Sofia Schurig

Revista AzMina

Revista AzMina: Tecnologia e informação contra o machismo e pela igualdade de gênero, com recortes de raça e classe. Jornalismo independente para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres cis e trans, homens trans e pessoas não-binárias

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