Trans e travestis na Sapucaí: holofote invisível

Dandara Vital como destaque da alegoria “Euroca”, do desfile da São Clemente em 2023: trans, travestis e invisibilidade na Sapucaí (Foto: Arquivo Pessoal)

Presença trans e travestis na história dos desfiles foi episódica, efêmera, e, às vezes, apagada, subdimensionada e transformada em algo caricato

Por Dandara Vidal | ODS 10ODS 5 • Publicada em 27 de fevereiro de 2023 - 10:50 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:18

Dandara Vital como destaque da alegoria “Euroca”, do desfile da São Clemente em 2023: trans, travestis e invisibilidade na Sapucaí (Foto: Arquivo Pessoal)

Sou travesti, atriz e há anos trabalho no carnaval como assistente dos carnavalescos nos barracões. Estive na Viradouro, na Mangueira, na Inocentes de Belford Roxo e no Império Serrano, e este ano tive a alegria de ser campeã assessorando Leandro Vieira em seu trabalho para a Imperatriz Leopoldinense. Por tudo isso, gostaria de celebrar a folia e de falar de visibilidade, ainda mais depois de ter sido convidada pelo carnavalesco Jorge Silveira a ocupar o lugar de destaque em uma de suas alegorias no desfile da São Clemente, na Série Ouro. Mas vou falar do que é invisível.

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Eu também gostaria de falar de amor, mas falarei da falta dele. “No carnaval, ninguém é de ninguém”, dizem. E a chance de sermos beijadas e abraçadas é maior. O carnaval é ainda marcado por uma impressão de protagonismo da comunidade LGBTQUIA+, sustentada pela presença de nossos corpos como destaques de alegorias ou passistas, e, antes disso, como um grande grupo que frequenta ensaios de quadra e rua.

Mas já passamos da Quarta-Feira de Cinzas, e talvez seja um bom momento para enfrentar a realidade que existe além dos holofotes da Sapucaí. Em minha vida íntima, já amei e fui amada. Mas dificilmente fui assumida como namorada. Falta aquela mão dada na volta pra casa, falta dividir aquela casquinha de sorvete no shopping, falta aquele beijo roubado na porta do metrô, falta selinho na despedida de um casal entre os ramais dos trens da Supervia. Imagina só como seria sermos amadas a tal ponto que um craque do futebol pudesse dedicar um gol para sua namorada mulher trans ou travesti?

Mbappé, Ines Rau e uma mulher cis para ‘limpar a barra’

Desde a Copa do Mundo do Catar uma coisa martela na minha cabeça. Para além do fato de nossos corpos terem sido desconvidados para o evento, tenho refletido sobre o craque francês Mbappé e a modelo trans Ines Rau. São namorados? Não sei. Muita especulação. Porque ainda falta o “Pega na mão e assume”, né, Ludmilla?

Quando li a manchete das matérias de Mbappé e sua “namorada modelo trans”, vibrei por ver uma mulher como Ines sendo assumida por um homem público, que vem de um ambiente extremamente machista. Está acontecendo – pensei – uma mulher trans sendo amada e assumida publicamente, em escala planetária.

A alegria murchou ao ler o teor das reportagens. Nas matérias, antes das palavras “namoro” e “namorada modelo trans”, vinha sempre “suposto” ou “suposta”. Mbappé nunca falou sobre o namoro, nunca assumiu a modelo e agora surgiu com uma nova namorada, uma mulher cis que muitos sites e jornais dizem, sem preocupação com o preconceito contido na linguagem, que é para “limpar sua barra”.

Minha presença no mundo do carnaval, este acontecimento cultural tão ligado à manifestação de nossas fantasias e desejos, acompanha essas reflexões. Na minha atuação nos bastidores, e especificamente no barracão da Imperatriz, trabalho em um ambiente respeitoso e igualitário, valorizada nas minhas funções. O convite para ocupar um lugar de destaque na avenida, no entanto, me fez pensar na presença trans e travestis na história dos desfiles. Em como ela foi episódica, efêmera, e às vezes apagada, subdimensionada e transformada em algo caricato.

Eloína dos Leopardos na Beija-Flor, nos anos 1970; Roberta Close no Império Serrano, em 1986; Rogéria na Comissão de Frente da São Clemente, em 2008 (Fotos: Reprodução)
Eloína dos Leopardos na Beija-Flor, nos anos 1970; Roberta Close no Império Serrano, em 1986; Rogéria na Comissão de Frente da São Clemente, em 2008 (Fotos: Reprodução)

Eloína dos Leopardos, a primeira Rainha

Penso em Eloína dos Leopardos*, primeira mulher a ocupar um lugar à frente de uma bateria em um desfile do Rio de Janeiro, posta ali por Joãosinho Trinta, nos anos 1970, em um momento em que o título “Rainha de bateria” ainda não existia. A primeira majestade foi ela, uma mulher trans. Mas a história deu por muito tempo o título de pioneira a Monique Evans*, uma mulher cis, e apenas recentemente a importância de Eloína vem sendo resgatada.

Penso em Rogéria, Jane di Castro, Brigitte de Búzios, Roberta Close e tantas outras de nós que passaram na avenida destacadas pela imprensa e formadores de opinião como um elemento bizarro, dissonante, e não como o que eram – corpos foliões, corpos do samba, corpos da performance.

Precisamos disso para que resistamos na alegria de sermos quem somos. Ou seremos encontradas mortas por não termos mais forças, como Brigitte de Búzios foi, em 2018, mesmo depois da valorização carinhosa de Leandra Leal no filme Divinas divas. O afeto é condição de nossa sobrevivência, e ele começa com o gesto de nos botar em cena, na luz, sem reservas. Mas não pode terminar aí.

Escrevendo essas linhas, me vem à memória a Camilla de Castro, que foi a primeira travesti que vi falando em rede nacional sobre amar e ser amada. Camilla falava abertamente que tinha como o grande sonho de sua vida casar, de véu e grinalda. Por conta disso, era tratada com diversos adjetivos capacitistas, que não devemos usar; também era tida como “bêbada demais”, “drogada demais” – afinal, só sendo bêbada ou drogada para falar aquelas coisas. Em 2005, algo que doía noutras travestis e mulheres transexuais era trazido à tona por ela, que mostrava como estávamos presas em um sistema que se negava a falar sobre os nossos direitos. E que julgava Camilla, a que reivindicava o direito de falar de afeto, como uma “sem juízo”.

Em um dos seus manuscritos – ela sempre foi de colocar suas emoções e sentimentos no papel – retirado do livro “A inevitável história de Letícia Diniz”, ela diz:

“Passamos nossos dias amontoadas em guetos, escondidas da sociedade. Vivemos nossas vidinhas exóticas no curto espaço da madrugada. De madrugada a cidade é nossa! Porque é o nosso único momento de glória: desfilar na passarela da Lapa, pro embasbacamento das mariconas em seus carrões. É pra isso no fundo que a gente acaba vivendo. Por esses “momentozinhos” de ilusão, de glamour… A gente passa a apreciar até mesmo os clientes mais nojentos, porque eles tiveram o bom gosto de escolher a gente entre um monte de outras beldades… Porque eles desejam a gente, ficam de pau duro por causa da gente… E tem sempre uns que são mais carinhosos, te fazem um afago, conversam, dizem umas palavras bonitas no teu ouvido, prometem coisas… E por esses… Por esses eu sempre me apaixono… Sempre… E quebro a cara, sempre… Porque esses, que valem a pena, nunca aparecem de novo… Não tem coragem de assumir uma travesti por mais que gostem dela de verdade. Travesti é uma raça muito, muito carente… Uma raça sem amor… Para quem o amor é negado… Sempre… Para sempre…”

Em um trecho da sua carta de despedida, Camilla afirma que “não suportou”. Escreveu antes de se jogar do 7o andar do prédio onde morava. Que esse não seja o destino de Ines, ocultada como “suposta” namorada de Mbappé.

A questão é que pessoas trans, mesmo que a passos lentos, vêm conquistando seu espaço, mas esta luta ainda é desafiadora, tendo em vista que muitos brasileiros ainda querem dizer quais banheiros devemos usar, assim como alguns foliões nos consideram adornos exóticos e ocasionais da passarela, uma ficção que deve ser descartada ao terminar o desfile. Na Sapucaí, tudo bem; na macarronada de domingo, de jeito nenhum. Se essas coisas ainda não barreiras a serem transpostas, imagina o quanto ainda falta para o entendimento de quanto nós somos minadas do amor e colocadas em um lugar de desilusão, porque nos fazem acreditar que não somos sequer dignas de sermos amadas.

Camilla de Castro partiu há 17 anos. Suas solitárias denúncias relacionadas à saúde mental de pessoas trans ainda são espelho para o que muitas de nós passamos. Não queremos ser apenas um amor de carnaval.

*Notas da edição:
1-Eloína dos Leopardos chegou à Beija-Flor para o desfile Sonhar com rei, dá leão (1976), o primeiro cantado por Neguinho da Beija-Flor (que originalmente assinava como Neguinho da Vala). Joãosinho Trinta queria alguém novo, de fora do circuito dos desfiles, para estar à frente da bateria. Foi então que Viriato Ferreira lembrou de Eloína, que conhecia de espetáculos de revista no Teatro Rival e nas boates de Copacabana, muitos deles produzidos por Carlos Machado. A vedete ficou à frente da bateria da escola de Nilópolis até 1978. Em 2023, desfilou pela Beija-Flor cercada de reconhecimento e afetos.

2-Há muita controvérsia em torno do posto de Rainha de Bateria. Alguns defendem que apenas com Monique Evans, que estreou à frente dos ritmistas da Mocidade em 1984, a figura existe, já que Chacrinha cunhou o termo. Antes disso, em 1981, Adele Fátima já tinha ocupado o posto na mesma escola, sem, no entanto, ser chamada com este nome. Em São Paulo, Nanãna da Magueira, mãe do compositor Ivo Meireles, havia desfilado de biquini e tocando tamborim, abrindo caminho para bateria, em 1973. A Revista Caju entende que Nãnãna é a primeira Rainha de Bateria da história, e que Eloína dos Leopardos, que estreou três anos depois de Nãnãna, é a indiscutível pioneira do posto no Rio de Janeiro.

**Este texto faz parte de série produzida em parceria pelo #Colabora – Jornalismo Sustentável e pela Revista Caju

Dandara Vidal

Dandara Vital é atriz, já trabalhou nos barracões de Inocentes de Belford Roxo, Viradouro, Mangueira e Império Serrano, e atualmente é assistente do carnavalesco Leandro Vieira na Imperatriz Leopoldinense

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