A temporada progressista, crítica e questionadora da maior festa brasileira ganha novo personagem – e uma protagonista do paticumbum. Rufem os tambores da diversidade, porque Mariana Ribeiro de Oliveira, a Mari Mola, é a primeira rainha do Carnaval assumidamente da comunidade LGBTQIA+. Passista profissional, musa do Paraíso do Tuiuti, ela entende a vitória no concurso realizado pela Riotur como um passo adiante na tolerância e na inclusão.
Moradora da favela que dá nome à escola, e onde nasceu 25 anos atrás, Mari é professora de educação infantil, mas teve de abandonar o ofício pelo preconceito de pais e mães com os shows de samba e as fotos de biquíni. Em quase três horas de entrevista, a nova majestade exibiu maturidade improvável para a idade, ao narrar com serenidade e bom humor dores e delícias de seu cotidiano.
O enredo da vida dela conjuga alegria e coragem no permanente enfrentamento a racismo, machismo, colorismo, preconceito e intolerância. As conquistas se materializam no ritmo de passos precisos, típicos das estrelas forjadas na Sapucaí. Agora, realiza o sonho de quase todas as dançarinas da festa – chegar à corte do Carnaval, após vencer disputado concurso, realizado no fim de 2022. Justo; Mari Mola merece nota 10 em todos os quesitos.
#Colabora – Quando o samba entrou na sua vida?
Meu avô era português e adorava Carnaval. Minha avó, mangueirense, sempre desfilou no Tuiuti. E minha primeira recordação é botar o colchão no chão da sala, eu e meu avô, para assistir à escola, em 2001, primeiro ano no Grupo Especial. Lembro do sol batendo na parede da vila em frente à janela, o dia amanhecendo, e eu admirada: “Caraca, desfila até o sol nascer”. Três anos depois, eu estava na quadra do Tuiuti, com meus avós me levando para a ala das crianças.
#Colabora – Alguém ensinou você a sambar?
Tenho uma tia passista, a Clara Oliveira. Quando era criança, queria ser porta-bandeira, achava mais bonito. Era fã da Cris Caldas (hoje na Vila Isabel). Comecei a ver várias rainhas, muitas passistas e entendi que as vagas para porta-bandeira eram poucas, uma ou duas por escola. Quando botei na cabeça que queria ser passista, minha mãe disse que eu precisaria ter aula. “Você vai ter que sambar muito”. Somos muito disciplinados aqui em casa (risos). Entrei para o Projeto Primeiro Passo, no Sesc Madureira, com a Nilce Fran (passista número 1 da Portela) e o Valci Pelé (coreógrafo da Viradouro). Foi o divisor de águas para mim. Fiz teste para passista três vezes mas não passei e acabei entrando por ser do morro. Na estreia, no ensaio técnico, minha avó, que é costureira, fez a minha roupa.
#Colabora – Qual a origem do seu apelido?
Do Salgueiro, em 2014. Sempre fui muito boa em sambar solta, mas com coreografia sou um caos. O coreógrafo passava as caminhadas de entrada e eu não conseguia. Entrei sacudindo o quadril, ele adorou e disse: “Parece que você tem mola no quadril”. Virei Mari Mola.
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Veja o que já enviamos#Colabora – Como você se define sexualmente?
Sou bissexual. Eu me interesso tanto por homens como por mulheres. Não tenho preferência de gênero, gosto dos dois.
#Colabora – Quando você descobriu?
Em 2017. Tive preconceito comigo mesma. Sou de comunidade, o lugar onde mais existe discriminação contra os LGBTQIA+. É o mundo onde a mulher tem que ficar com o homem independentemente de sentimento e o homem tem que ser o brabo, dono do território, provedor. Mas minha irmã, a Carol, falou que era normal – ela também é bissexual.
#Colabora – Como sua família soube?
A gente mantém a tradição de botar o colchão na sala para ver o desfile aqui em casa. Uma menina com quem eu estava ficando veio como amiga. Em abril, me deu um chocolate de Páscoa e aproveitei para entrar no assunto com a minha mãe, disse que uma amiga me deu. “Mariana, uma amiga não ia dar esse chocolate. Já sei que ela não é só isso, entendi e está tudo bem”.
#Colabora – Nesses seis anos, você teve mais namoradas ou namorados?
Minha última relação com homem foi bem tóxica. Acabou na pandemia e passei a ficar só com mulheres, até conhecer Laísa (Lima, ritmista da Beija-Flor). Tive que batalhar para ficar com ela, corri atrás nas redes sociais até me aproximar. Fiquei com ela a primeira vez no ensaio do Salgueiro. Minha primeira relação homoafetiva assumida. As pessoas ficaram sabendo da minha bissexualidade ali. Namoramos cinco meses, hoje somos amigas e parceiras de trabalho. Minha história com ela me fez acreditar que eu merecia coisas boas. Uma relação que me libertou de certas amarras no samba.
#Colabora – Como assim?
As mulheres hoje me olham sem medo: “ela é passista, mas não vai dar mole pro meu marido”. Escutei isso no concurso (de rainha do Carnaval). Na semifinal, uma concorrente me abraçou e disse: “Mari, para mim a coroa é sua e vai ser legal porque vai todo mundo saber que você não precisou ficar com ninguém, porque você não gosta”. Esperava rejeição, mas acabou sendo o contrário. As passistas ainda sofrem muito com esse estigma de que atacam os homens. Muitas vezes, em casamentos, a noiva exige que a gente vá de vestidinho, não pode biquíni. já tomei tapa na mão de uma mulher enciumada, porque o marido tirou foto comigo num show. Foi uma confusão. As mulheres não somos unidas. Os homens são, nós não.
#Colabora – Na loucura do preconceito, acaba sendo melhor ser uma pessoa LGBTQIA+.
Para mulher sim. Nunca passei por situação constrangedora, todos me acolheram, lamentaram quando eu e Laísa terminamos. Mas com uma porta-bandeira, acho que não seria bem aceito. Conheço algumas, que acabam vivendo escondidas, uma das piores coisas pra mim.
#Colabora – São muitas pessoas LGBTQIA+ no Carnaval que não se assumem?
Muitas, especialmente meninas, que são bissexuais e se escondem por medo das reações. Recebi muitas mensagens de garotas com relacionamentos escondidos de oito, dez anos. Elas ficaram felizes com minha decisão de falar.
#Colabora – Foi importante para você?
Sim, foi uma das coisas que me fizeram dar essa entrevista. Sei que tive mais aceitação por ter um nome no carnaval. Uma pessoa que está começando ficará marcada.
#Colabora – Você se incomoda de ser chamada de sapatão, expressão depreciativa para as lésbicas?
Não sou lésbica, mas como estou me envolvendo basicamente com mulheres, os amigos me chamamassim. Sou muito de boa com essas coisas.
#Colabora – Qual a importância dessa posição?
É uma das bandeiras que carrego. Sou mulher, preta, favelada, LGBT+ e rainha do Carnaval do Rio. Ainda tem pessoas com preconceito. No concurso, falei pela bandeira, pela causa. Quero que seja algo significativo, porque tem muita gente que se vê representada por eu ser rainha do Carnaval e bissexual. E agora, com a faixa e a coroa, falo sem medo, pela representatividade.
#Colabora – É importante que o maior Carnaval do Brasil tenha uma rainha LGBTQIA+?
A importância começa no fato de o Brasil ser o país que mais mata pessoas LGBTs. Sou alvo, o que torna possível passar alguma mensagem de tolerância, por eu estar nesse lugar. Somos fortes e estamos no topo. Precisamos nos unir e exigir justiça para esses crimes. A união e o respeito farão as tragédias diminuírem e pessoas em cargo de destaque potencializam isso. Estou nesse lugar e sou uma mulher preta, de comunidade, com corpo bonito, mas que ama homens e ama mulheres. Uma mulher que consegue caminhar por todo o universo que ela quiser. Ser rainha do Carnaval é grande demais, tenho responsabilidade muito grande, às vezes fico até meio perdida. Muita gente foi coroada junto comigo.
#Colabora – Você quer se tornar uma liderança LGBTQIA+?
Hoje, entendo somente da bissexualidade que vivo. Tenho muita vontade de compreender a comunidade como um todo. É um passo que preciso dar. Tenho sonho de cursar História para poder entender o que sou e todo esse universo. O Carnaval carioca ainda é muito carente de representatividade e a bissexualidade é mais aceita quando envolve mulheres. Para os homens é bem mais difícil. Conheço muitos bissexuais que sofrem muito. O Carnaval é carente de conhecimento.
#Colabora – Como foi quando a escola descobriu?
Meu presidente (Renato Thor) sempre soube. A escola tratou como um relacionamento convencional.
#Colabora – Você foi vítima de racismo em algum momento?
Acredito que sim, mas é algo tão velado que a gente deixa passar. Em diversas situações, sinto olhares, afastamento, sou seguida no supermercado, entro na loja e ninguém vem atender. Evito certas lojas pra não passar por esses constrangimentos. Numa blitz, sou a única revistada. Mas nunca sofri racismo pesado, explícito.
#Colabora – Além de todo o racismo e machismo que afetam as mulheres negras no Brasil, as passistas ainda encaram o estigma da exposição do corpo e da prostituição. Como você enfrenta essas situações?
Minha mãe até brinca comigo, porque não tenho problema nenhum com nudez. Nunca fui confundida com prostituta, mas já passei por situações constrangedoras de a pessoa passar a mão, apertar etc. normalmente homem. Minha mãe não vai ao samba porque se incomoda com os olhares, acha muito pesado. Fora do Brasil, a maioria das pessoas acha que somos garotas de programa. Por isso, é importante a atitude de rainhas como Evelyn Bastos (Mangueira), que explicitam a condição das passistas, a importância da função, nossa dignidade. Ela se posicionam e incentivam outras a fazer o mesmo.
#Colabora – O que você acha da imposição por mudanças no corpo das passistas?
Ainda não me sinto 100% empoderada. Quem normalmente está na mídia, tem mais convite de trabalho, são as pessoas mais inseridas nesses padrões. Vi uma entrevista da Egili (Oliveira, rainha de bateria da Acadêmicos de Vigário Geral), muito mais retinta do que eu, em que ela questiona qual é a negra como ela à frente de uma bateria.
#Colabora – Existe colorismo no mundo das passistas?
Sim. Entre as passistas e entre as rainhas. Sou um pouco mais retinta e meu samba é considerado bruto. Ouvi muito que não seria rainha por isso. Se eu fosse mais negra, seria mais difícil ter destaque no samba. Apesar de ser cultura nossa, tem um padrão que vem de fora até em relação ao corpo. O movimento para mudar isso é muito necessário. Quero fazer coisas no meu corpo pela minha vontade. Antes, pensava em fazer porque outras faziam.
#Colabora – O que você acha que vai acontecer depois dessa entrevista?
Fui criada para ser quem sou e acreditar no que eu quiser. Sempre fui firme, de opiniões sólidas e até de brigar por elas. Se eu tivesse que largar um cargo desses por ser bissexual, tudo bem. Não vou deixar de ser quem sou para agradar a quem quer que seja. Só não aceito decepcionar as pessoas que importam pra mim. Por elas, faço tudo.