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Veja o que já enviamosPor que eu nunca vou conseguir usar o GymRats: a “derrota” contabilizada
E isso não tem nada a ver com o GymRats. Cria dos anos 1990, temo o assombro da obsessão por corpos magros e da gordofobia piscando na tela do meu celular
Faz uns bons anos já que eu abri mão do privilégio jovem do sedentarismo e me exercito com regularidade. Eu adoraria me apaixonar pela corrida e sair colecionando medalhas de diferentes cidades, e fotos dando mordida nelas. Ou até fazer meu alistamento voluntário, por prazer, em uma seita de crossfiteiros, falando um dialeto com wod, burpee, metcon, e outras palavras que ainda tenho que dar um Google pra entender. Infelizmente, minha vida de atleta amadora vem da lógica da vida adulta de que pra ter a vida que a gente gosta, é preciso fazer também o que a gente não gosta.
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Como também não sou maluca de tudo, óbvio que sinto os efeitos da atividade física no dia a dia: sono melhor; mais flexibilidade e disposição; menos dores daquelas que vêm com a idade: lombar, cervical e outros pontos da coluna que a gente nem sabia que tinha até doerem. Tampouco sou hipócrita, gosto de ver minha musculatura respondendo ao meu esforço, e gosto de gostar do que vejo no espelho como resultado – ainda que esse “gostar” venha atrelado a critérios do que dizem que é bonito e eu fui, como todo mundo, entubando.
Mas algum tempo atrás, um convite – como talvez você já tenha recebido – escancarou um gatilho que eu não sabia que tinha (mas não me surpreende ter): “Amiga, quer entrar no meu grupo do GymRats?”. Se você não se liga em aplicativos ou em fitness, o app, entre outras coisas, contabiliza treinos individualmente e, num grupo, você pode competir com as outras pessoas inscritas, tipo “quem vai mais na academia”. Daí vale pela brincadeira, pelo estímulo coletivo, ou até casar um dinheiro ou um prêmio, sei lá, para quem se exercitar mais. E é uma excelente ideia, um empurrãozinho que vem a calhar, principalmente nos dias em que bate a preguiça de calçar o tênis e mexer o corpo.
Mas diante do convite, eu logo refuguei: “Ih, amiga, pra mim não dá, não”. Não me acho uma pessoa competitiva, ficaria tranquila em ser a lanterninha do campeonato de malhação com outras pessoas. Mas, embora soe contraditório, a possibilidade de ver, minha “derrota” contabilizada num aplicativo ergueu uma bandeira vermelha na hora.

Explico: não se trata de perder para quem malhasse mais do que eu, mas perder para “a mão invisível da magreza”, aquela que assombra e esbofeteia as crias dos anos 1990 como eu, dizendo que você precisa ser magra, e que é aí que está o seu valor, e que não sê-lo é totalmente sua culpa, e que um dia sem ir à academia é um passo (ou mais) mais longe de ter o único corpo aceitável: o magro.
Parece que foi ontem que abríamos revistas voltadas para meninas adolescentes com seções de “certo” e “errado” onde o “X” de errado estava quase que invariavelmente em corpos que eram “grandes demais” para serem considerados corretos. E que as passarelas exibiam as coleções da estação em modelos cada vez mais esquálidas, o “chique a la heroína”. E que mulheres absolutamente magras eram consideradas “gordas” pela mídia, o que é um problema em si, mas sobretudo pelo fato de “gorda” ser tratado não só como um problema, mas a pior coisa que alguém – principalmente uma mulher – pode ser.
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Veja o que já enviamosAntes que a turminha do “Ah, mas é saúde” apareça, eu me refiro à obsessão pela magreza a qualquer custo, sobretudo sem detrimento dela, a própria saúde, como minha geração foi ensinada a entender. Perdi as contas de quantas dietas doidas, shakes milagrosos e remédios perigosos, entre tantas outras fórmulas, eu tentei em busca de um emagrecimento que nunca era suficiente. Flertei com a bulimia mais do que gostaria de ter que reconhecer. E vou me adiantar de novo: também fui pela via saudável, de equilíbrio alimentar e exercício, mas a questão é justamente essa, nada nunca era o bastante, e a indústria que se beneficia disso precisa que seja assim.
Bem disse Naomi Wolf (antes de seus despautérios antivax), em seu “O mito da beleza”, que “uma cultura focada na magreza não revela uma obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada”. É assim que o sistema nos quer: obedientes e com fome demais para questionar as injustiças que vivemos. Ou, como nos lembra a nutricionista Fernanda Imamura, “não se destrói o patriarcado com fome”. E o patriarcado sabe bem disso.
Sabe tanto que usa contra nós mesmas, reforçando mitos de que estamos umas contra as outras: nos vestindo para provocar as outras, emagrecendo para causar inveja umas às outras, buscando fórmulas doidas de rejuvenescimento que impeça que versões mais jovens de nós (como se fôssemos isso, protótipos de gente carregados por um corpo) “roubem nossos lugares”. A menos que apresentemos “nossa melhor versão”, que era, nos anos 1990 e reaparece, como um remake, magras, brancas, ocidentais, femininas, esguias, e por aí vai. E se falhamos nesta expectativa, a culpa é toda nossa: “falta de vergonha na cara”, “desmazelo”, “largada”.
Como alguém que muito fez terapia, eu entendo que parte do processo é reconhecer os próprios gatilhos e, na impossibilidade de impedir que eles sejam o que são – gatilhos! -, evitá-los. É como alguém que tem alergia evitar poeira, pólen ou aquilo que faz o nariz formigar.
Eu adoro que a tecnologia conte quantos passos eu dei no dia, meça a qualidade do meu sono e me ofereça, sim, a possibilidade de marcar minha frequência e a dos meus grupos nas atividades físicas. Mas me conheço demais para saber que entraria num efeito “Túnel do Tempo” de paranoia e culpabilização se não fizesse todo meu esforço para uma assiduidade perfeita. Não preciso de mais um atalho para este túnel no meu celular, como o GymRats,
Quando se trata dos corpos, ainda seguimos atualizando uma interface ultrapassada: cheia de bugs, hostil à diversidade, mas que insiste em rodar como se fosse padrão e melhorasse a vida de todo mundo. Pra mim, não dá. Prefiro não ver (e nem deixar) os rastros digitais dos meus tênis.
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