Mesmo antes da partida de estreia contra a equipe da Índia no domingo (05/10), as atletas da seleção brasileira de futebol de cegas já são pioneiras. Pela primeira vez na história, o Brasil vai participar da Copa do Mundo da modalidade. Potência mundial no futebol de cegos, o país disputa a competição com outras sete seleções entre os dias 5 a 11 de outubro, em Kochi, na Índia.
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“Treinamos muito e queremos muito estar aqui. É muito importante para a gente tudo isso que está acontecendo com o nosso esporte no Brasil. Vamos dar o nosso melhor”, afirma Eliane Gonçalves Silva, 39 anos. A moradora de Goiânia (GO) é a mais experiente do grupo de dez jogadoras da seleção brasileira de futebol de cegas, a primeira organizada pela Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais (CBDV).
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Veja o que já enviamos“Não vou mentir que é um susto. Foram apenas quatro fases de treinamentos e já vem o Mundial, algo que eu esperei durante minha vida inteira”, conta Sarah Santana, 22 anos. A jovem de São Paulo (SP) já praticava outros esportes paralímpicos, como o atletismo e o goalball, mas o futebol de cegas é sua paixão. A ansiedade de Eliane e Sarah também tem a ver também com o fato de ser a primeira vez que vão competir na modalidade.
Apesar do futebol de cegos ter surgido em meados de 1950 e a primeira Copa do Brasil ter sido disputada em 1984, até pouco tempo, a modalidade era praticada apenas pelos homens, reflexo da soma do capacitismo – que afeta pessoas com deficiência – com a desigualdade de gênero. Somente em 2022, a CBDV organizou o I Festival de Futebol de Cegas e a modalidade começou a receber mais incentivos.
Está sendo um momento histórico e incrível para mim. Estou muito feliz mesmo. É um esporte onde eu realmente me encontrei
A Copa do Mundo de Futebol de Cegas 2025 será a segunda edição da competição, organizada pela Federação Internacional de Esportes para Cegos (IBSA, na sigla em inglês). A primeira foi disputada em 2023 na cidade de Birmingham, na Inglaterra. Na ocasião, também foram oito seleções que participaram e a Argentina, então única da América Latina, foi campeã.
Além de Brasil e Índia, as outras seleções que disputam a competição são Inglaterra, Polônia, Argentina, Canadá, Japão e Turquia. Na primeira fase, as brasileiras estão no Grupo A, ao lado de Índia, Polônia e Inglaterra. Depois da estréia contra as anfitriãs, o Brasil enfrenta a Inglaterra na terça-feira (07) e a Polônia na quarta-feira (08). A classificação dos grupos determina os confrontos da próxima fase entre as oito seleções. Todas as partidas serão transmitidas pelo YouTube da IBSA e a final será no sábado (11).
Em busca de mais recursos
Assim como no futebol convencional, as mulheres cegas enfrentam diversos desafios para praticar a modalidade. “Sempre gostei de esporte, mas nunca fui de alto rendimento e me tornei uma atleta com cobranças e treinos mais intensos”, menciona Geisa Farini, 37 anos. Carioca e apaixonada pelo Vasco da Gama, ela relata a luta das atletas por condições para praticar o futebol de cegas.
Diferente do que acontece em outros esportes paralímpicos, as atletas do futebol de cegas não recebem a Bolsa Atleta do governo federal. Assim, boa parte dos custos para participar da Copa do Mundo e mesmo dos treinamentos no Brasil, precisa sair do bolso das próprias jogadoras. Em alguns casos, como no de Sarah, ela recebe incentivo apenas pelo atletismo.
A CBDV admite as dificuldades para trabalhar com o futebol feminino, principalmente, em relação à captação de recursos. “Todo o processo ainda é muito novo, mas estamos indo para a Índia com uma expectativa muito positiva nessas meninas. Existem outros países já com histórico de muitos anos no futebol feminino, como Argentina e Japão”, explica Helder Maciel Araújo, presidente da entidade.
No caso da participação brasileira na Copa do Mundo da Índia, a CBDV conta com apoio do Comitê Paralímpico e do Ministério do Esporte. Segundo Helder, a intenção é que esse seja um pontapé para o crescimento do futebol de cegas e a criação de um Campeonato Brasileiro de Clubes, assim como ocorre no masculino.
Seleção de expectativas
Sarah começou a praticar o goalball (esporte voltado para pessoas cegas) em 2019, no Colégio Vicentino de Cegos Padre Chico, instituição filantrópica que atua com a inclusão e educação. Devido a um glaucoma congênito, ela perdeu a visão do olho esquerdo e possui limitações severas na visão do olho direito. O contato com o futebol começou em 2021 após a pandemia e se intensificou depois de participar do Festival de Futebol de Cegas, no ano seguinte.
“Está sendo um momento histórico e incrível para mim. Estou muito feliz mesmo. É um esporte onde eu realmente me encontrei”, enfatiza Sarah. Segundo ela, a adaptação ao futebol de cegas foi bastante natural. Na modalidade, as atletas jogam com uma venda nos olhos e a bola possui um guizo que orienta a sua posição. “Meu foco mesmo é o futebol, só estou no atletismo para manter a bolsa mesmo”, complementa a ala ofensiva/pivô da seleção brasileira.
Estou muito confiante de que não vai parar por aqui, pelas conversas e reuniões que tivemos – de que estão investindo mesmo no esporte
Para Eliane, o futebol de cegas surgiu durante a reabilitação e como uma forma de recuperar uma paixão da infância e adolescência. Casada e mãe de uma jovem de 16 anos, ela perdeu a visão há cerca de 1 ano e meio, por conta de uma retinose pigmentar. O contato com o paradesporto ocorreu na Associação Paralímpica do Estado de Goiás (Aspaego).
“As pessoas não têm noção da dificuldade que é jogar um futebol de cegas: você tem que ter muita noção de espaço e de domínio com a bola. Comecei por querer aprender e a convivência com outras pessoas com deficiência também me ajudou demais na fase da reabilitação”, relembra Eliane. A ala ofensiva não esconde a ansiedade em disputar a Copa do Mundo, mas ressalta a confiança e a união das jogadoras como pontos fortes da equipe.
Também integram a seleção brasileira de futebol de cegas, as goleiras Bruna Almeida de Oliveira e Ligia Nogueira (ambas videntes). As demais jogadoras de linha convocadas para a Copa do Mundo são: Andreza Lima da Silva, Beatriz da Rocha Silva, Erivanha de Moura Sousa, Rafaela Paulino Silva e Tamiris Silva Souza.
Futuro do futebol de cegas
“Para o futuro, pensamos em promover clínicas em vários estados para atrair mais mulheres a praticar o futebol e fortalecer cada vez mais a modalidade”, afirma Helder Araújo, da CBDV. A preparação faz parte de uma caminhada para participar dos Jogos Paralímpicos de 2032, quando o futebol de cegas passará a fazer parte da principal competição paralímpica mundial.
Como a atleta mais experiente da seleção convocada para a Índia, Eliane também orienta as colegas para aproveitar ao máximo as oportunidades e seguir na modalidade. “Estou muito confiante de que não vai parar por aqui, pelas conversas e reuniões que tivemos – de que estão investindo mesmo no esporte”, acrescenta, sobre o futuro do futebol de cegas no Brasil.
“Imagino o futebol de cegas sendo algo visto igual o futebol de cegos e o futebol convencional. Somos muito esperançosas para que isso aconteça e que a gente possa ser incluída em diversos campeonatos”, aponta Sarah. E por que não sonhar com esse futuro? Afinal de contas, o Brasil é o país de Marta, Pelé e Ricardinho (três vezes melhor do mundo no futebol de cegos).