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Ponte entre pessoas trans e o mercado de trabalho
Na empresa em que estagia, Patrícia encontrou um espaço que define como “minimamente saudável”, onde é respeitada, apesar de já ter sido chamada pelo seu nome de batismo. Teve que ser didática: “Falei: ‘olha, não sei se você percebeu, mas todo mundo me chama de Patrícia, eu uso o banheiro feminino… Então, não me chama no masculino’”. A jovem começou a se hormonizar há cerca de seis meses. Por causa do pouco tempo, ainda é encarada por muitos no ambiente de trabalho como um homem ou como uma pessoa andrógina que, segundo ela, “borra a expressão de gênero”.
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Veja o que já enviamosQuanto mais a mulher trans se parece com uma cis, menos violências vai viver, inclusive no ambiente de trabalho
[/g1_quote]A universitária acredita, porém, que não há como uma empresa controlar as ações de todos os seus funcionários, e reflete: “A experiência da maioria das pessoas trans é ser descartada de primeira, mesmo sendo uma pessoa qualificada. É passar constantemente por um tipo de constrangimento muito forte”. Ao mesmo tempo, afirma que se adaptou porque se expressa “da maneira que os padrões da normalidade do mercado de trabalho almejam”, como define. Para ela, a aceitação da mulher trans se dá conforme o grau de “passabilidade”: “Quanto mais a mulher trans se parece com uma cis, menos violências vai viver, inclusive no ambiente de trabalho”.
Seguindo a mesma lógica, o estudante de Gastronomia Leonardo Máximo Duarte, de 24 anos, também viveu na pele as implicações da passabilidade no ambiente de trabalho. Ele, um homem trans que iniciou sua hormonização em novembro de 2018, começou a trabalhar na rede de fast food KFC um mês depois, como operador de caixa. Os clientes o chamavam pelo pronome feminino, o que o deixava desconfortável, mas ele conseguiu se manter firme com o apoio de uma colega de trabalho, que corrigia os consumidores.
Com o tempo e com o avanço do tratamento hormonal, Léo foi adquirindo traços mais masculinos e, com isso, sendo mais “aceito”. O mesmo não aconteceu com outro colega de trabalho, que não fez hormonização e era tratado de forma diferente por funcionários: “Eu ouvia coisas horríveis sobre ele. Um gerente já chegou para mim e falou: ‘Ah, Léo, você eu consigo, ele eu já não consigo, porque ele tem aquela imagem feminina…’”, relembra.
Ciclo cruel de exclusão
O maior ou menor grau de passabilidade tem forte ligação com a independência financeira. É o que reforça Patrícia. “O corpo trans é caro, precisa de hormônio, de estética, que é uma coisa importante para a gente, porque isso também é se construir mulher trans e travesti. Ao passo que eu faço um laser na minha barba, que eu faço uma cirurgia, que eu ponho um silicone, que eu me hormonizo, isso também é construir ‘eu’, construir minha identidade, e isso é caro, e como a gente consegue esse dinheiro se a gente não têm trabalho, acesso à carreira, à vida profissional formal?”.
[g1_quote author_name=”Patrícia” author_description=”Estudante de História” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Sou uma mulher trans com formação. Sou uma exceção em uma comunidade em que a maioria não terminou o ensino básico. Então, se eu tenho essa ansiedade sobre o primeiro emprego, imagina o grupo em geral?
[/g1_quote]A jovem, de família pobre, tem consciência de que já é uma exceção dentro do grupo por ter a oportunidade de estar em uma faculdade e por ter um estágio. No outro lado da curva, estão 90% das pessoas trans que vivem da prostituição, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). O medo de não conseguir ser contratada por conta do preconceito e de ser empurrada para essa outra realidade fez Patrícia guardar sua identidade de gênero apenas para si por um ano e meio. Só em 2018, passou a ter orgulho de quem era e a não se sentir constrangida por sua aparência. O processo seletivo para o estágio atual foi o primeiro no qual se apresentou como mulher durante todo o processo. Ainda insegura, ela pediu que seu nome verdadeiro não fosse divulgado na reportagem.
[g1_quote author_name=”Maria Eduarda Aguiar” author_description=”Advogada” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Luto para que um dia isso [passabilidade] não seja relevante, e para que todos e todas possam ser respeitados e possam ter acesso aos direitos básicos”
[/g1_quote]A exclusão social e do mercado leva o grupo, em sua grande maioria, a se prostituir para sobreviver, fato que o deixa ainda mais exposto à violência. Dos 163 transexuais brasileiros mortos em 2018, mapeados pela Antra, 65% eram profissionais do sexo. Para a população trans, a entrada no mercado de trabalho é vista, muitas vezes, como uma questão de sobrevivência no sentido mais extremo da palavra. O Brasil é o país em que mais pessoas trans são assassinadas no mundo, de acordo com o relatório da ONG Internacional Transgender Europe, e a dificuldade do acesso ao mercado é um influenciador em todas as esferas de suas vidas. “Sou uma mulher trans com formação. Sou uma exceção em uma comunidade em que a maioria não terminou o ensino básico. Então, se eu tenho essa ansiedade sobre o primeiro emprego, imagina o grupo em geral?”, lamenta Patrícia.
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Obstáculos e soluções para a ascensão profissional
O desconforto da estudante em relação ao mercado de trabalho tem origem ainda na invisibilidade imposta às pessoas trans: afinal, onde estão essas pessoas? Patrícia provoca: “Quantas pessoas trans você vê no seu cotidiano? E eu falo dos trabalhos mais informais aos mais elevados”. Olhando ao nosso redor, mulheres trans e travestis geralmente estão na área da estética, em salões de beleza, ou em telemarketing. “São contratadas porque não são vistas, e são mal remuneradas. Eu não lembro a última vez que conheci uma pessoa trans inesperadamente em um espaço público de trabalho. Ou uma vez que fui a uma entrevista de emprego e vi uma mulher trans sentada trabalhando. E isso para mim é muito assustador”, reflete.
A compreensão crescente de que a diversidade nas empresas é um diferencial – e cada vez mais primordial -, é vista por Patrícia como uma esperança: “Quando você contrata uma pessoa trans, está salvando uma vida. Pesquisas mostram que empresas mais diversas lucram mais, isso está trazendo argumentos que vão para além da humanização, o que para mim é horrível. Mas a diversidade muda de fato a estrutura de uma empresa”.
No entanto, além da inclusão, a ascensão profissional desse grupo também é um grande desafio que deve ficar no radar das companhias. As pessoas que ultrapassam as barreiras e conseguem obter educação vivem a dificuldade de permanência, pois os ambientes profissionais são muitas vezes hostis e preconceituosos. A advogada Maria Eduarda Aguiar, mulher trans dona da primeira carteirinha da OAB-RJ com nome social e ativista pelos direitos de pessoas transgêneras, ressalta ser essencial a capacitação das empresas e da área de Relações Humanas, assim como uma consultoria em direitos humanos para diversidade, para que haja a inserção das pessoas trans no mercado de trabalho.
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De acordo com a especialista, as principais dificuldades na busca de emprego por esse grupo são o preconceito presente no mercado e a falta de conhecimento, por parte das empresas, sobre questões de diversidade para promover um ambiente saudável para pessoas trans. Quanto ao dia a dia de trabalho, para aqueles já empregados, Maria Eduarda acredita que os principais empecilhos encontrados são o uso do nome social e do banheiro. A advogada também reconhece a passabilidade como um fator infelizmente relevante na procura de trabalho pela população trans, e comenta: “Luto para que um dia isso não seja, e para que todos e todas possam ser respeitados e possam ter acesso aos direitos básicos”.