ODS 1
Nas favelas do Rio de Janeiro, violência doméstica é silenciada
A existência de um poder paralelo nas comunidades desestimula mulheres a denunciar agressores. Pretas e pardas são alvo dos crimes mais graves
Ao trocar o Ceará pelo Rio de Janeiro, a jovem foi morar em uma favela da Zona Norte e, logo que chegou à cidade, se apaixonou por um rapaz da comunidade. Casaram-se. Veio a gravidez. À medida que a barriga crescia, a violência aflorava no comportamento do parceiro afetivo. O bebê nasceu. Uma menina. A contragosto, o pai da criança saiu de casa após o nascimento da filha. Três anos depois da separação, o agressor continuava inconformado. Com o início da pandemia, intensificou a violência e as ameaças de levar a menina embora e matar a ex-parceira.
No começo de julho, X. (seu nome foi preservado por motivo de segurança) rompeu com o ciclo da violência doméstica do qual era vítima. Cruzou a cidade na companhia da filha pequena – de quem não se separa com medo do pai da criança levá-la embora – e dirigiu-se a uma das 14 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam) existentes no estado. Fez um Boletim de Ocorrência. Em 48 horas, ganhou uma Medida Protetiva de Urgência.
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Veja o que já enviamosDe março, quando teve início o período de isolamento social no estado, até agosto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) emitiu12.352 Medidas Protetivas de Urgência (MPUs), ou seja, pouco mais da metade das 18.291 MPUs concedidas nos oito primeiros meses do ano. Ainda que possa estar havendo subnotificação de casos, como já virou consenso entre os especialistas no tema, uma análise mais minuciosa dos números ajuda a descortinar a realidade que se esconde atrás dos indicadores oficiais de violência doméstica contra a mulher durante a pandemia.
[g1_quote author_name=”Juíza Adriana Mello” author_description=”Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]As falhas do sistema de Justiça e de segurança na assistência à população em favelas agrava a situação das mulheres vítimas de violência
[/g1_quote]“As falhas do sistema de Justiça e de segurança na assistência à população em favelas agrava a situação das mulheres vítimas de violência”, diagnostica a juíza Adriana de Mello, do TJ-RJ e presidente do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
Cálculos do TJ-RJ indicam que, em agosto, dobrou o número total de prisões em flagrante convertidas em preventivas em todo o estado: 155 detenções contra 74 ocorrências registradas em julho. Nos oito primeiros meses do ano, o total de prisões em flagrante convertidas em preventivas somou 874 – o maior número de ocorrências foi registrado em agosto.
Se é verdade que o Rio de Janeiro ficou entre os 12 estados que tiveram redução na taxa de feminicídio entre março e agosto; no período de maio a agosto, ou seja, o segundo quadrimestre da pandemia no país, o estado registrou alta de 13% neste indicador. Foram registradas três mortes a mais do que mesmo período do ano anterior. Os dados fazem parte do monitoramento quadrimestral da série de reportagens “Um vírus e duas guerras“, uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, Azmina, #Colabora, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo. O monitoramento está sendo publicado ao longo de 2020, a cada quatro meses.
Entre 13 de março, quando teve início a quarentena no Rio de Janeiro, até 31 de agosto, o ISP apurou que aumentou a proporção de crimes mais graves dentro de casa. No período estudado, 67,1% dos crimes de violência sexual e 66% dos de violência física contra 58,3% e 60,2% respectivamente, em relação ao mesmo período do ano passado. As ligações para o 190, serviço da Polícia Militar (PM), que deve ser acionado em casos gerais de necessidade ou socorro rápido, também aumentaram: 12,12% em relação ao mesmo período de 2019. Os dados da PM se restringem à região Metropolitana do estado, ou seja, capital, Baixada Fluminense e Grande Niterói.
Ainda segundo o ISP, crimes de lesão corporal dolosa e ameaça apresentaram queda de 9,5% e 11%, respectivamente, no número de vítimas mulheres em agosto em comparação a 2019. Já o crime de estupro teve um aumento de 6,5% no número de vítimas mulheres, quando comparado com julho.
Em meio ao emaranhado de estatísticas sobre violência de gênero e tendo em mãos o principal instrumento de defesa da mulher em situação de risco, X. acreditou estar sob os cuidados da Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006). Só que não. Considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações em nível mundial para o enfrentamento da violência contra as mulheres; nem toda vítima, independentemente de classe, raça, etnia e orientação sexual, goza do direito da proteção garantida pela lei.
[g1_quote author_name=”Rosangela Pereira da Silva” author_description=”diretora do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) Chiquinha Gonzaga” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Estamos aconselhando X. a jamais deixar a filha sozinha, já que a patrulha Maria da Penha não entra na comunidade onde elas moram
[/g1_quote]“Estamos aconselhando X. a jamais deixar a filha sozinha, já que a patrulha Maria da Penha não entra na comunidade onde elas moram”, admite Rosangela Pereira da Silva, diretora do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) Chiquinha Gonzaga. A vítima vive numa favela dominada pelo Terceiro Comando, onde a patrulha Maria da Penha, a quem cabe fiscalizar o cumprimento da Medida Protetiva de Urgência, não é bem-vinda.
Ainda que a violência de gênero não seja uma exclusividade brasileira; por aqui, ela assume contornos próprios. “Embora a Lei Maria da Penha tenha muito sucesso na redução do índice de violência contra a mulher, quando fazemos a separação por raça e cor, percebemos que racismo e sexismo andam de mãos dados”, analisa Flávia Brasil, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ).
[g1_quote author_name=”Flávia Brasil” author_description=”coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ)” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]As mulheres brancas acabam sendo mais protegidas do que as pretas e pardas
[/g1_quote]Como as violências mais graves alcançam mais as mulheres pretas e pardas e as menos graves, as mulheres brancas, a defensora pública faz uma analogia com a seletividade penal e quem o sistema seleciona para encarcerar quando fala sobre o tema. “Essa seletividade protetiva também vem ocorrendo quando analisamos a violência doméstica contra a mulher”. E completa: “As mulheres brancas acabam sendo mais protegidas do que as pretas e pardas”. X. se autodeclarou parda quando denunciou o ex-parceiro.
Como a pandemia não alterou substancialmente o perfil da vítima e nem o comportamento do agressor, o Dossiê Mulher 2019 é um diagnóstico importante para entender o que ocorria e continua acontecendo entre quatro paredes durante a quarentena. Entre as vítimas de homicídio doloso, as mulheres pretas e pardas representaram 59% dos casos, enquanto as brancas 33%. Do total das vítimas de violência doméstica em 2019, 52,2% delas eram pretas e pardas e 45,5% eram brancas.
A existência de um poder paralelo nas comunidades, seja o tráfico ou a milícia, costuma desestimular às denúncias de violência doméstica. X. é uma exceção à regra. Além do mais, muitas das vítimas desconfiam da segurança pública como uma alternativa de proteção. Não sem motivos. Elas já assistiram policiais agredindo seus filhos, irmãos, sobrinhos, maridos, vizinhos… Das 12,3 milhões de pessoas que moram nas favelas, 6,3 milhões delas são mulheres e, segundo o Data Favela, 59% dessa população são negros.
[g1_quote author_name=”Marisa Chaves” author_description=”coordenadora licenciada do Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida, vinculado a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O problema não está na Lei Maria da Penha, mas na ausência de políticas públicas que assegurem a segurança dessas mulheres, que vivem em territórios conflagrados
[/g1_quote]O caso de X. é emblemático para analisar a situação da invisibilidade da violência doméstica contra a mulher moradora de favela. “O problema não está na Lei Maria da Penha, mas na ausência de políticas públicas que assegurem a segurança dessas mulheres, que vivem em territórios conflagrados”, analisa Marisa Chaves, coordenadora licenciada do Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida, vinculado a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela vai além: “Na medida em que o agressor sequer é notificado, ele não é obrigado a cumprir a medida”.
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Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.