Mulheres negras e a (in) justiça no Brasil

Karen Pinheiro, juíza da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre: “Somos o susto de todo dia de alguém, mesmo que inconsciente”. Foto Divulgação

Para cada juíza negra, há 7,4 juízes brancos. E, para cada desembargadora negra, há 33,5 desembargadores brancos

Por Maria Fernanda Ribeiro | ODS 5 • Publicada em 20 de novembro de 2019 - 07:55 • Atualizada em 8 de março de 2023 - 10:06

Karen Pinheiro, juíza da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre: “Somos o susto de todo dia de alguém, mesmo que inconsciente”. Foto Divulgação

A testemunha foi orientada por uma funcionária do tribunal a sentar-se à frente da juíza Karen Pinheiro, da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, para que a sessão pudesse começar. A testemunha dirigiu-se até o lugar vazio que a esperava e, sem titubear,  virou a cadeira, de forma que  ficasse voltada para uma outra pessoa, que não a magistrada. Karen é uma juíza negra e situações como essa, em que as pessoas ignoram o fato de a maior autoridade do local ser uma mulher negra, não são nenhuma novidade para ela: “Somos o susto de todo dia de alguém, mesmo que inconsciente”, afirma.

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Juíza há 20 anos, ela está no grupo das exceções em um Judiciário elitizado e formado em sua maioria por homens brancos, mesmo que para cada mulher negra no Brasil haja 0,9 homens brancos. De acordo com a Justa, uma ferramenta, lançada em agosto de 2019 e que pretende ser um observatório permanente do sistema de Justiça brasileiro, para cada juíza negra há 7,4 juízes brancos. E para cada desembargadora negra, há 33,5 desembargadores brancos.

“Temos uma dinâmica de racismo estrutural casada com uma dinâmica patriarcal que ainda associa as mulheres negras a trabalhos menos valorizados, mais precários e mais informais, o que situa a mulher negra nesse lugar de subordinação estrutural, exatamente por sermos vítimas de múltiplos vetores de dominação, de abuso, de opressão, como a questão de classe, a de gênero e a racial”, afirma Isadora Brandão, a primeira mulher negra a assumir o cargo de coordenação no Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da defensoria pública do Estado de São Paulo.

Para a juíza federal Adriana Cruz, da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, a quantidade de mulheres negras em todos os 93 tribunais do Brasil não ultrapassa cem, o que deixa mais do que transparente uma discrepância absurda em um espaço de poder de extrema importância para a sociedade. “A gente está aqui arbitrando os conflitos da sociedade, mais de 50% da população é negra e o espaço onde os conflitos são solucionados, que são estruturados também por essa hierarquia racial, não reflete e não tem essa representatividade.”

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Temos uma dinâmica de racismo estrutural casada com outra patriarcal que ainda associa as mulheres negras a trabalhos menos valorizados, mais precários e mais informais

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Segundo Karen, a ausência de pluralidade traz uma perspectiva unidimensional para o Judiciário quando o correto seria ela ser multidimensional para refletir melhor os estratos da sociedade. “É esse homem branco, a partir das suas experiências, das suas vivências, da forma de ver o mundo que ele tem, que vai ditar o direito.”

Isadora Brandão, primeira mulher negra a assumir a coordenação no Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da defensoria pública do Estado de São Paulo. Foto Arquivo Pessoal

Os dados do Justa mostram ainda que as pessoas negras estão sub-representadas entre os magistrados em todos os estados brasileiros, sendo que em São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso do Sul, os juízes negros estão de 4 a 7 vezes menos representados do que em relação à sua proporção na população.

Para Luciana Zaffalon, pesquisadora e idealizadora da plataforma, a ideia do Justa é demonstrar com números a cruel realidade que qualquer um que chegue perto do aristocrático funcionamento do sistema de justiça pode enxergar. Segundo ela, não há neutralidade possível diante dessa configuração distorcida de um sistema que se pretende justo, mas que enriquece às custas da naturalização de políticas racistas, classistas e patriarcais.

“O objetivo é mesmo trazer à luz, com números e debates orçamentários, a política da justiça, que se estrutura a partir de um evidente racismo estrutural e se materializa com o encarceramento em massa efetivado, por exemplo, por meio de uma guerra às drogas, que jamais caberia ao sistema de justiça lutar”, afirma.

A ausência de juízas negras, segundo Adriana, deveria causar escândalo, mas mostra apenas quanto as mulheres negras estão marcadas. “Os números eram para incomodar, porque essa não é a composição da sociedade, mas as pessoas vivem numa bolha intencional, pois basta que você vire seu pescoço três milímetros para o lado que vai perceber. É uma cegueira deliberada, cômoda e confortável. Os números apenas revelam a dinâmica da sociedade.”

Os números do Justa, que cruzou dados do último censo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) com os números populacionais do IBGE ainda trazem à tona que homens brancos tem 37,8 vezes mais chances que mulheres negras de se tornarem desembargadores e que homens brancos tem 8,2 vezes mais chances de se tornarem juízes do que mulheres negras.

Para Isadora, é necessário ir além do que já foi conquistado para pensar de forma ampla como é que se promove a real democratização do sistema de Justiça e das instituições que a integram. Uma agenda, segundo ela, que passa por diversos campos, como a implementação de políticas de ações afirmativas para mulheres, para negros, para indígenas, mas não só.

O sistema de cotas é avaliado por todas como o mínimo de dignidade que a sociedade pode oferecer. No entanto, só ele não basta para que os números saltem da desigualdade para a equidade. Um exemplo claro é o número de vagas dentro do sistema de cotas nos concursos – exigido por lei – e que não é preenchido, mas não por falta de interessados. Mas sim pela ausência de ações de políticas afirmativas desde o começo do processo.

No último concurso realizado no Rio Grande do Sul, por exemplo, das 12 vagas dentro do sistema de cotas, apenas uma foi preenchida. Para as entrevistadas, isso acontece porque nem sempre os candidatos e candidatas negras têm a mesma condição de dedicação total e exclusiva aos estudos necessária para o ingresso na magistratura, quando as pessoas muitas vezes passam de dois a três anos apenas frequentando cursinhos preparatórios, que custam em média R$ 1.500 mensais, sem precisar trabalhar.

Adriana Cruz, da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro: “A quantidade de mulheres negras em todos os 93 tribunais do Brasil não chega a cem”. Foto Divulgação

Mylene Ramos Seidl, juíza aposentada da 20ª Vara do Trabalho da Zona Sul, afirma que a sociedade tem resistência em reconhecer no homem e na mulher negra a possibilidade de ocupar um espaço de poder. Ela conta que nunca pode parar de trabalhar para se dedicar exclusivamente aos estudos e que demorou três anos até passar. Era sua décima primeira tentativa. “Fiz questão de sempre pontuar o negro no judiciário, a mulher negra. A sociedade tem uma dificuldade em reconhecer a mulher negra nos centros de poder.” Para ela, as ações afirmativas incluem também pensar na melhoria do ensino público.

E é diante desse cenário que Karen Pinheiro empunhou a bandeira para bolsas de estudos para que pessoas negras, e também os indígenas, tenham chance de frequentar bons cursinhos para que alcancem os níveis de exigência e, aí sim, prestem concursos com o mesmo nível de igualdade dos demais.

Para Luciana, o sistema de Justiça precisa olhar para os seus processos de ações afirmativas com mais responsabilidade porque ele muda os desenhos e cria mais barreiras quando deveria assumir a sua parcela de responsabilidade e de culpa, com políticas de ações afirmativas desde o começo do processo.

“Ou a sociedade assume que somos efetivamente racistas e que tem um determinado grupo, que por causa da cor da pele, é menos capaz e por isso não consegue ou temos que reconhecer que efetivamente temos dificuldades de caráter estrutural que impedem essas pessoas de concorrem em condições de igualdade. Porque ninguém vai dizer que as mulheres do Brasil não querem ser juízas e que os estudantes não queiram acessar os espaços de poder. Seria um raciocínio ensandecido”, disse Adriana.

Maria Fernanda Ribeiro

É jornalista, roteirista e documentarista. Morou na Amazônia entre os anos de 2016 e 2018 para conhecer e compartilhar as histórias dos povos da floresta. Agora divide a vida entre o campo, a floresta e São Paulo sempre em busca de histórias para contar.

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