(Por Bruna Gomes, João Pedro Ramalho, João Pedro Sabadini, Júlia Zanon e Kézya Alexandra) – Embora o maior símbolo de resistência dos quilombolas seja expresso na figura masculina de Zumbi dos Palmares, a cultura quilombola é notadamente matriarcal. As mulheres ocupam grande parte dos cargos de liderança nos quilombos, embora os dados do primeiro Censo quilombola não tenham metrificado quantas elas são. “Elas estão à frente das lutas travadas pela conquistas de direitos, atuam para melhorar as condições de vida dentro das suas comunidades, preservam tradições ancestrais e são essenciais para a manutenção dos quilombos ao executarem tarefas relacionadas ao cuidado”, diz a jornalista Maryellen Crisóstomo, líder da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Tarefas domésticas, atenção aos familiares e participação nas discussões comunitárias são algumas das funções exercidas pelas mulheres que fazem a diferença nesses territórios cerceados de direitos.
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No entanto, as histórias das mulheres quilombolas são negligenciadas. Um exemplo pouco celebrado de liderança feminina quilombola vem do próprio Quilombo dos Palmares, maior território de resistência afro-brasileira durante o período colonial. Palmares é descrito nos livros de história como um quilombo liderado e protegido por Zumbi, mas, na realidade, teve outra liderança forte, resistente e determinada: Dandara. A esposa de Zumbi dos Palmares ocupava, lado a lado com ele, o papel de liderança no quilombo.
“A gente vê que esse esse papel de protagonismo, de liderança, sempre existiu. O que a gente vai perceber ao longo desse tempo é que a história nem sempre contou o que realmente aconteceu”, afirma Ana Beatriz Nunes, presidente da Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj) e liderança do quilombo Maria Conga, em Magé. “Num universo machista, como se colocaria essas mulheres como protagonistas na frente dos homens? Ou elas estavam ao lado ou atrás desses homens. Mas a mulher quilombola sempre trouxe um protagonismo muito grande de liderança dentro dos territórios”, sustenta Ana Beatriz. “O olhar da mulher não é somente para o futuro dos filhos, mas também para o futuro dos filhos das outras mulheres dentro do território, como trazer a educação para dentro da comunidade e como levar esses filhos e jovens até a educação”, pontua a liderança quilombola.
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Veja o que já enviamosSe a desigualdade de gênero está na pauta dos movimentos feministas, ainda é difícil mensurá-la nos quilombos se não há números suficientes que ajudem a contabilizar dados de assassinatos, mortes e nascimentos de mulheres quilombolas. O Censo 2022 ainda não apresentou um recorte de gênero da população identificada como quilombola. A falta da posse das terras agrava ainda mais o problema das matriarcas quilombolas, aponta Ana Beatriz Nunes, do quilombo Maria Conga, que ainda não é titulado (última etapa do reconhecimento dos territórios quilombolas). “Enquanto não tiver o título da terra, conforme manda a lei, o conflito vai continuar. E principalmente as mulheres vão continuar sendo mulheres ameaçadas. Mulheres que têm dupla jornada por serem mulheres e ainda têm a jornada de serem a liderança da sua comunidade”, pontuou Ana Beatriz.
Nos quilombos, as mulheres são guardiãs das tradições afro-brasileiras, do sagrado, da língua e saberes tradicionais e, principalmente, do cuidado da terra e da família. A contação de histórias é essencial para a construção das relações sociais e a emancipação sociocultural de mulheres negras. “Eu acho que se a gente ainda está nessa luta pela cultura ancestral, pelas práticas, pelos saberes, pelos fazeres desse local, nós temos que agradecer muito às nossas mães, às nossas avós e à nossa ancestralidade. Esses saberes se perpetuaram por meio de formas práticas orais. E esses saberes orais, elas souberam passar para suas filhas, para suas netas e chegaram até hoje”, comenta a quilombola Leonídia de Carvalho, representante do Quilombo Dona Belina, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ela lembra do legado das primeiras líderes de sua comunidade: “Nós tínhamos Dona Fezinha, Dona Ninola, Dona Belina, Dona Candoca, entre outras mulheres que, nas década de 1960 e 1970, fizeram muita diferença. Então influenciam até hoje”.
A alimentação dos quilombolas também está diretamente ligada às tradições que conectam a terra, a cultura e o sustento da comunidade. A importância das mulheres para a alimentação nos quilombos transcende o ato de preparar as refeições. São elas que garantem a segurança e a soberania alimentar por meio do plantio, da colheita e da escolha dos alimentos que chegam à mesa. É a partir do trabalho coletivo das mulheres do Quilombo Dona Belina que a comunidade é alimentada. Leonídia conta que a horta funciona como uma espaço para várias ações e que, durante a pandemia, os alimentos da horta eram distribuídos em cestas básicas para a população que ficou desempregada.