(Beatriz Riscado, Camila Saggioro, Larissa Vitória, Letícia Simeão e Paulo Queiroz) – Os finais de semana no Quilombo do Grotão, na região oceânica de Niterói, são marcados por samba e feijoada, que atraem centenas de pessoas da cidade e até mesmo de outros estados. O que nem todos sabem, no entanto, é que, por trás do clima festivo, existe uma disputa territorial no local. O quilombo está localizado dentro do Parque Estadual da Serra da Tiririca, o que motiva há anos um embate ambiental entre os quilombolas e os órgãos ambientais.
A morosidade da titulação das terras quilombolas é apenas uma das manifestações de um problema maior. Existem hoje cerca de 600 questões territoriais de “sobreposição de empreendimentos” em áreas quilombolas. São regiões onde há disputa com a iniciativa privada e /ou o governo federal, estadual e municipal pelas terras. É o caso do quilombo do Grotão, surgido na antiga fazenda Engenho do Mato.
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Em 1991, com a criação do Parque Estadual da Serra da Tiririca, a especulação imobiliária – que até então era o principal problema dos quilombolas do Grotão – deixou de ser uma preocupação, mas novos desafios foram impostos e persistem até hoje. Primeiramente, os moradores do Grotão precisaram lutar pela permanência no seu território.
Com o acesso às reuniões do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) dificultadas e a burocratização do processo, a criação da Associação das Comunidades Tradicionais do Engenho do Mato tornou-se uma urgência. “Quando eu comecei a frequentar as reuniões do Inea, eles nos tratavam de uma forma agressiva e nos chamavam de ‘os invasores da Serra da Tiririca’. Disseram que, para continuarmos participando, precisávamos ter alguma associação representativa. Fui atrás, mas os custos eram muito altos”, conta José Renato Gomes, neto de Manoel e Maria, fundadores do quilombo. “Tínhamos 16 casas, mas ninguém tinha o valor. Conversei com minhas irmãs e tivemos a ideia de começarmos a fazer o feijão na lenha”, acrescenta.
A comunidade surgiu em meados da década de 1920, quando o casal Manoel Bonfim e Maria Vicência, descendentes de negros escravizados no Sergipe, chegou a Niterói para trabalhar na fazenda Engenho do Mato, uma das principais responsáveis pela produção de banana no município. Quase trinta anos depois, com a falência da propriedade, os dois foram presenteados com seis alqueires e meio de terra e duas mil mudas de banana, dando início a um negócio familiar que seguiu adiante por muitos anos.
Até a criação do parque estadual, o quilombo era vítima da especulação imobiliária. “Nosso antigo território ia até o divisor de águas entre Niterói e Maricá. Hoje, nós só temos as casas”, diz Renato. “Quando construíram os condomínios aqui na região, várias pessoas vieram aqui tentando nos comprar. Foi uma briga muito grande e, de 1958 para 1960, até colocavam fogo nas plantações”, lembra.
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Veja o que já enviamosRenato também conta que, para viver dentro da Serra da Tiririca, é necessário assinar um termo de condições. Segundo o líder do Grotão, isso impede a comunidade de receber benefícios e de ser um espaço oficialmente turístico no interior do parque. “As relações com o Inea hoje são um pouco melhores, mas eu não assinei o termo. Ele proíbe qualquer tipo de manifestação cultural”, diz.
Além da feijoada e da roda de samba, há também capoeira entre as atrações do Grotão. Quem comanda as rodas de samba é Mariana Braga, sobrinha de Renato. “Hoje faço parte de três projetos diferentes no quilombo. Participo das rodas de samba do Samba de Fé, que homenageia um orixá a cada mês, Samba das Mulheres e o Samba da Comunidade”, diz, com orgulho. “O quilombo cuida e preserva muito o espaço. Tem muito cuidado com a terra. Faz ações com escolas e grupos de estrangeiros. Planta árvores”, explica Mariana.
Uma outra condição para permanecer na área ambiental é o impedimento da construção de novos imóveis. Hoje o Grotão abriga 16 famílias, mas muito mais gente está espalhada por Niterói. Ao todo, a árvore genealógica conta com 103 pessoas. “Quem casa não pode mais construir aqui. Existe um mapa de todas as casas. Se algo mudar e um telhado novo surgir, eles vão saber”, afirma Renato . Procurado, o Inea citou que “orgulha-se de proteger, além da biodiversidade, aspectos do patrimônio cultural e imaterial da região”. A nota afirma que, nesse sentido, a gestão do Parque Estadual da Serra da Tiririca “busca manter uma relação harmônica e de parceria com o quilombo, inclusive envolvendo membros da comunidade no programa de formação de guias e condutores”.
Quilombolas na preservação ambiental
Entre os aliados conquistados na luta pela permanência no território estão as universidades, diz Renato. Ele cita os cursos de Antropologia e História da UFF e um programa de estágio da UFRJ, imprescindíveis na ajuda pela delimitação do território e pela conquista da certificação, em 2016, pela Fundação Palmares, primeiro passo na titulação de territórios quilombolas. Renato conta que a preservação ambiental do território atravessa, inclusive, questões religiosas. “Meu avô dizia que os orixás não iriam a um lugar que não fosse preservado”, afirma.
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O papel dos quilombolas na preservação do meio ambiente em meio à emergência climática foi reconhecido por Ronaldo dos Santos, secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiro e Ciganos, do Ministério da Igualdade Racial. “As comunidades quilombolas estão em todos os biomas brasileiros. Elas conservam o meio ambiente. Em tempos de emergência climática, a gente precisa falar sobre isso, quem ainda conserva os ecossistemas e as comunidades quilombolas estão nesses lugares”, afirmou, ressaltando que o Estado precisa ser atuante para garantir os direitos dos quilombolas.
Na COP 27, realizada em novembro de 2022, no Egito, os territórios quilombolas também foram tema na discussão de direitos socioambientais. O ativista Antônio João Mendes, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), lembrou do papel dos quilombos na preservação ambiental. A representação quilombola no maior fórum internacional de mudanças climáticas trouxe alertas para os riscos enfrentados por essas comunidades e também chamou a atenção para a contribuição dos quilombolas para o meio ambiente, que permanece invisibilizada.
Distante 1.800 quilômetros do Grotão, o quilombo Baião, localizado no município de Almas, no Tocantins, se vê ameaçado por crimes ambientais e pelo agronegócio. Uma mineradora foi construída a cerca de quatro quilômetros de suas terras. A implantação da empresa canadense Aura Minerals aconteceu em 2021 sem que a comunidade fosse consultada ou sequer alertada sobre os verdadeiros riscos do empreendimento. Apesar de ser um direito reconhecido por lei desde 2004, a consulta livre, prévia e informada aos povos originários e tradicionais não aconteceu.
Para a jornalista Maryellen Crisóstomo, integrante do Conaq e representante da delegação quilombola na COP27, a morosidade do Estado em garantir os direitos dos quilombolas coloca os moradores e o território em situação de vulnerabilidade, não apenas diante dos avanços da mineradora, mas também do agronegócio. Maryellen é originária do quilombo Baião. “A gente enfrenta essa dificuldade perante o Estado, onde o nosso processo não avança. Existe uma falha em reconhecer o nosso território e em preservar a segurança do nosso povo quilombola. Infelizmente essa atuação só acontece depois que as tragédias ocorrem”, expõe Maryellen sobre o medo dos moradores de que um possível rompimento venha a acontecer.
A expansão do agronegócio também impacta diretamente a vida dos moradores do Baião, seja através da pulverização de agrotóxicos que contaminam solo e água ou pelo desmatamento, que também ocasionou a perda da principal atividade extrativista e de renda de muitos trabalhadores do quilombo: o pequi. Além disso, o principal e único rio do Quilombo, o Riachão, que secava apenas em períodos de pouca chuva, agora não dá mais vazão às necessidades dos residentes, que precisam muitas vezes pagar um alto valor para construir poços artesianos. O município disponibiliza caminhões-pipa para os moradores que não têm condições de arcar com os custos, e em casos extremos, famílias decidem se mudar para a cidade pela dificuldade de acesso à água.
Estes e diversos outros problemas acabam por provocar uma migração de pessoas rumo à cidade. “Para muitas famílias, esse é o último recurso, já que o desabastecimento dificulta demais a vida nos quilombos. Na busca por trabalho e escola para as crianças, ir para a cidade acaba se tornando a melhor opção”, lamenta Maryellen.