(Por Ana Beatriz Caparroz, Júlia Miranda, Bruna Aragão, Liz Dias, Cassiane Souza e Daniel Henrique) – Datado de 1625, o Quilombo do Camorim, um dos mais antigos do estado do Rio de Janeiro, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, perpetua a história de Zeferino, um escravizado liberto que, por receber salário, comprou a liberdade dos demais escravizados que existiam na área do antigo Engenho do Camorim, construído em 1622 por Gonçalo de Sá. A área do bairro de Camorim foi alvo de disputas, ao longo do século XVII, entre duas famílias coloniais: a família Sá e a Ordem Beneditina. Hoje, a disputa é contra a especulação imobiliária, que invade e destrói o território que deveria ser preservado.
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Algumas dessas histórias só são possíveis de serem contadas graças à cartografia social, uma das etapas de reconhecimento para a titulação dos territórios quilombolas. Por meio da cartografia social, os povos reconstituem a memória de seus ancestrais e ganham protagonismo que nunca tiveram na história oficial. O Camorim é um dos quilombos que passou por esse processo.
Em vez de mapas oficiais, a cartografia social trabalha com a identificação de territórios em disputa e sua demarcação. É um mapeamento feito de forma participativa, que permite às comunidades, com a ajuda de profissionais, desenhar mapas dos territórios que ocupam . Esse tipo de técnica geralmente envolve populações tradicionais e é um instrumento para fazer valer seus direitos. No caso dos quilombolas, a cartografia social é usada no processo de titulação dos territórios.
O objetivo da chamada Cartografia Social é que a história da comunidade seja contada por seus próprios protagonistas, destacando as relações ambientais, culturais, sociais, políticas e econômicas dos quilombolas em seus territórios, a partir dos seus próprios pontos de vista e depoimentos. “Em nossa história, trazemos a trajetória das famílias Caetano dos Santos e Sebastião dos Santos. Por eu ser um pesquisador e trabalhar com as universidades, como a UFF, resgatei os nomes dos primeiros escravizados, como Zeferino dos Santos”, conta Adilson Almeida, fundador e atual liderança do Quilombo do Camorim.
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Veja o que já enviamos“Ubuntu: resistir para existir” é a frase destacada na cartografia realizada pela Associação Cultural Quilombo do Camorim. “Ubuntu”, ainda que não tenha tradução literal, pode ser compreendida como “sou o que sou pelo o que somos” na língua Zulu, de origem africana. Adilson reforça a importância da cartografia social do território para identificar e representar, no mapa, lugares e estruturas que foram destruídos, além de servir para reivindicar o reconhecimento oficial do espaço. “Localizamos as ruínas da casa e o galpão do antigo engenho, assim como, também, os caminhos que nossos antepassados percorreram. Essa história não pode cair no esquecimento e, com a cartografia, temos um instrumento para reforçar e passar essas informações de geração para geração”, explicou Adilson.
O fundador do Quilombo do Camorim é também o griô, palavra de origem africana usada para designar as pessoas que têm a missão de receber e transmitir ensinamentos como um fio condutor entre gerações e culturas. A partir de 1998, quando iniciou o trabalho voltado às pesquisas, Adilson começou a entender mais a história e o próprio território por meio de entrevistas com os mais velhos. “Quando eu comecei o trabalho, tive que praticamente engatinhar buscando toda essa trajetória, por causa do apagamento histórico que se deu pela questão do silenciamento racista que meus antepassados sofreram. Lá atrás, eles não tinham como se movimentar para contar a própria história e manter o povo unido, mas, hoje, nós temos como nos posicionarmos; nós temos mídia, nós temos celular, nós temos um coletivo”, aponta Adilson.
O coletivo a que Adilson se refere é a Associação Cultural do Camorim (ACUCA), um projeto pedagógico coordenado por Lúcia Garcia, assistente social e educadora ambiental. Ela explica que o surgimento do projeto, em 2004, se deu quando as brincadeiras das crianças no quilombo despertaram uma vontade de resgatar histórias que Lúcia e Adilson não tiveram acesso até irem atrás das informações sobre seus antepassados.
“Quando o Quilombo do Camorim foi se tornando um quilombo urbano, foram se extinguindo os costumes. Então, para resgatarmos esses costumes, a cultura e até mesmo para que as crianças começassem a se referir como quilombolas, iniciamos as atividades com professores voluntários da rede pública de ensino, onde trabalhamos o território; apenas nós por nós”, disse Lúcia, evidenciando a falta de apoio governamental.
As atividades do projeto acontecem todos os sábados, às 10h, no Quilombo do Camorim, onde as crianças inscritas aprendem os saberes ancestrais e os costumes dos quilombolas que um dia viveram naquele território. “O meu desejo é que eles não percam suas identidades, como já foi feito antigamente, mas principalmente que suas histórias não se apaguem”, concluiu a coordenadora do projeto.
Livretos com histórias dos quilombos
Para que a história ultrapasse as barreiras étnicas e culturais, o Quilombo do Camorim também vem trabalhando junto às universidades, como a Universidade Federal Fluminense (UFF), e com coletivos de apoio jurídico, como o Juristas Negras. Adilson acrescenta ainda a sua vontade de repassar essa história de forma completa para o Brasil através de um livro que está escrevendo: “O que eu estou passando para você é uma prévia da nossa história que nem nas nossas redes está, mas a história completa, datada desde 1412, que eu tenho documentado”, afirma o líder quilombola.
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Adilson afirma que o processo de documentação dos territórios deveria ser levado mais a sério, pois documentos, como a cartografia social e a certificação emitida pela Fundação Palmares, comprovam a existência dos povos remanescentes de quilombos naquela terra, mas ainda não garante a preservação histórica do local. Desde o início dos anos 2000, a especulação imobiliária vem modificando o terreno, um reflexo da colonização ainda nos dias atuais. “Para os meus antepassados viverem em uma suposta liberdade, eles precisavam fugir e se reunir em comunidades. Hoje, a gente faz o mesmo aqui. O que temos é uma sensação de liberdade. Mas temos inúmeros conflitos ainda como tínhamos antigamente”, acrescentou o pesquisador, lamentando a especulação imobiliária, que começou na década de 1980, mas se acelerou devido aos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. Parte do território reivindicado pelo Quilombo do Camorim foi desmatado para dar lugar a condomínios e a instalações olímpicas.
No estado do Rio e Espírito Santo, a cartografia social já produziu 14 livretos com histórias de quilombos. O projeto se chama Quilombos no Projeto de Educação Ambiental (Quipea) e é patrocinado pela Shell como parte das medidas legais exigidas pelo Ibama para o licenciamento de atividades de impacto; no caso, a exploração de petróleo. Em contrapartida às atividades econômicas desenvolvidas, as empresas precisam implementar projetos de educação ambiental. No caso da Bacia de Campos, a Shell promove o Quipea, com a participação de 21 comunidades remanescentes de quilombos certificadas pela Fundação Cultural Palmares.
A atividade do Quipea, que é coordenada pelas antropólogas Eliane Cantaria O’Dwyer e Deborah Bronz, da UFF, acontece em quatro etapas. A primeira é chamada de “campo de reconhecimento”, que permite o contato inicial dos pesquisadores de campo com as comunidades quilombolas. A segunda etapa são as oficinas de Cartografia Social, onde acontece a interação e o compartilhamento da história dos quilombos. Depois disso, vem o campo de mapeamento, em que ocorrem conversas e reflexões coletivas entre os participantes sobre seus territórios, história, modos de vida, obstáculos e potencialidades. Por último, vem a apresentação do esboço de fascículos com os mapas de cada território. Os primeiros 14 livretos estão prontos e foram aprovados pelas associações de quilombolas . Em novembro de 2022, o Quipea retomou a Cartografia Social em outras sete comunidades remanescentes na área de atuação do projeto, onde ainda não puderam ser concluídas por conta da interrupção dos trabalhos presenciais provocada pela pandemia de Covid-19.