Mães tentam adiar o fim do mundo

Dia das Mães: das florestas às cidades, mulheres educam seus filhos para enfrentar um futuro, sob ameaça da crise climática, do racismo e de outras violências

Por Revista AzMina | ODS 15ODS 5 • Publicada em 10 de maio de 2024 - 13:37 • Atualizada em 15 de maio de 2024 - 10:34

Mães tentam adiar o fim do mundo (Arte: AzMina)

(Beatriz Jucá*) – A primeira gestação da indígena Walela Soeikigh Paiter Bandeira Suruí, de 24 anos, coincide com o momento em que seu povo, Paiter Suruí, mais tem sentido os efeitos da crise climática. Na Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, as ondas de calor estão intensas. Chuvas irregulares e secas prolongadas estão mudando o comportamento dos rios. Tudo afeta diretamente nas roças (área de cultivo) e na pesca, que alimentam a comunidade.

Walela deixou a aldeia provisoriamente para cursar Medicina Veterinária em Porto Velho. Também na capital, ela sente os efeitos da crise, com queimadas que encobrem a cidade de fumaça e causam problemas respiratórios. Quando descobriu que estava grávida, não demorou para que viessem à mente dela todas as preocupações possíveis de uma nova mãe. Como faria para estudar, trabalhar e criar um bebê? E mais: quais serão as dificuldades em meio às alterações do clima?

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“Não tem como não ficar ansiosa. A natureza é importante para nós, indígenas. É algo espiritual. Queremos que nossos filhos e netos sintam essa conexão que temos com ela, e não os impactos que vêm com a crise climática”, diz Walela.

Este sentimento de preocupação e angústia tem crescido em todo o mundo. A ansiedade climática ou “ecoansiedade” – como a Associação Americana de Psicologia define o “medo crônico” dos impactos climáticos sobre o futuro – vem levando algumas mulheres a optarem por não terem filhos, seja por acreditarem que vão sobrecarregar o planeta ou porque não querem ver os filhos sofrerem no futuro apocalíptico que se desenha.

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No mundo, 75% dos jovens veem o futuro como assustador, segundo mostra um estudo feito pela revista científica Lancet realizado em 10 países, incluindo o Brasil. Quase metade dos brasileiros entrevistados (48%) está receosa de ter filhos por conta das alterações climáticas.

Empurrar o céu!

A psicóloga Elisabeth Cimenti, que acompanhou por dois anos jovens do movimento da sociedade civil Fridays for Future, avalia que a pequena parcela da população brasileira que se deu conta da gravidade da crise climática está muito angustiada, mas a solução ao problema não está em não ter filhos.

“A questão não é o número de pessoas, mas como nós vivemos, atacando a natureza, imersos em uma cultura capitalista que não preserva o meio ambiente e valoriza ao máximo o consumismo”, considera. A solução, defende Elisabeth, passa pela mudança de valores por meio da educação.

Como uma mulher indígena, ter filho é um meio de resistência neste sistema em que a gente não é muito bem aceito e sofre preconceito. Com nossos filhos, o planeta vai estar mais protegido

Walela Soeikigh Paiter Bandeira Suruí
Estudante de Medicina Veterinária

Nestes tempos de incerteza sobre o futuro, a psicóloga lembra das palavras do escritor indígena Ailton Krenak na obra ‘Ideias para adiar o fim do mundo’: “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, empurre-o para cima”.

Nos escritos de Ailton, suspender o céu significa ampliar a percepção, o horizonte e se conectar com a terra. Das florestas às cidades, nas mais diversas partes do Brasil, há mulheres empurrando o céu. São mães que veem na maternidade uma forma de adiar o fim do mundo. Seus filhos são também caminhos para buscar possibilidades de futuro, hoje sob ameaça da crise climática, do racismo e outras violências.

Walela em família: "Na minha cultura, a criança é um ser protegido que vai virar guerreiro de forças" (Fotos de arquivo pessoal; Arte: Giulia Santos)
Walela em família: “Na minha cultura, a criança é um ser protegido que vai virar guerreiro de forças” (Fotos de arquivo pessoal; Arte: Giulia Santos)

Ter filho é um meio de resistência

A indígena Walela destaca que, para salvar o planeta, primeiro a gente tem que ter consciência de quem está causando essa crise, que são as grandes indústrias. “A gente vai parar de ter filho, mas eles não vão fazer nada, e aí não vai mudar. Não podemos assumir uma culpa que não temos”, defende.

Ela cresceu vendo invasores adentrarem a Terra Indígena Sete de Setembro para retirar madeira e minério. E aprendeu que é preciso ter coragem para resistir. Sempre viu seus pais, os ativistas Neidinha e Almir Suruí, não baixarem a cabeça para as ameaças de morte que sofrem ao lutar pela defesa do território.

Walela virou também ativista pelo clima, assumiu a coordenação do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia e se recusa a abraçar a narrativa do apocalipse. “Como uma mulher indígena, ter filho é um meio de resistência neste sistema em que a gente não é muito bem aceito e sofre preconceito”. Ela acrescenta que as próximas gerações podem ser as que vão conseguir mudar esse mundo.

As crianças são um símbolo de que a cultura Paiter Suruí vai seguir viva. Por isso, enquanto ainda estão no ventre, os pais deixam de comer pupunha e alguns tipos de peixe e caças para ajudá-las a nascerem bem. “Na minha cultura, a criança é um ser protegido que vai virar guerreiro de forças”, explica Walela.

O jeito que os indígenas respeitam a natureza e os ensinamentos são passados para os pequenos. “Com nossos filhos, o planeta vai estar mais protegido”, afirma. E, para a ativista, não se trata de colocar o peso da solução da crise climática nas próximas gerações, mas de educá-las para tentar amenizar os efeitos.

Karina e filhos: “As crianças trazem uma esperança muito forte” (Fotos: Arquivo pessoal; Arte: Giulia Santos)

Novas gerações e os frutos da luta

Do outro lado do país, Karina Ferro, de 32 anos, cria dois filhos em uma casinha azul de 68 m², erguida entre as verdes matas da Juréia, uma estação ecológica localizada no litoral sul paulista, a cerca de 300 quilômetros de São Paulo. Não há sinal para celular e os dois únicos acessos são por meio de barco ou de uma trilha por um morro. Ali, ela descobriu o que é conviver com a pressão de estar sendo expulsa do território, ao se casar com Edmilson Prado, descendente de uma família tradicional caiçara.

Ao longo dos anos, várias gerações dos Prado foram sendo empurradas para outras regiões, fora de seu território – primeiro, pela pressão da grilagem de terras; depois, pela restrição legal de suas atividades de sobrevivência e pela ausência de serviços básicos, como saúde e educação.

No dia 4 de julho de 2019, o mundo parecia que ia acabar para a família de Karina. Grávida de 4 meses, ela cozinhava arroz e linguiça enquanto ouvia o barulho das marretadas e picaretas que demoliam as casas construídas por dois primos de Edmilson. Sabia que a próxima seria a sua. “Nem tinha gosto a comida nesse dia”, lembra.

O governo paulista e a Fundação Florestal demoliram os imóveis sob o argumento da proteção ambiental e da falta de autorização para as edificações. Depois, a Justiça decidiu pela permanência da casa de Karina, a única que ficou de pé porque os agentes desistiram da ação ao saber da gestação dela. “O Martim teve esse poder de, desde a barriga, já ser um guerreiro, fazendo um papel fundamental na nossa luta pela permanência na comunidade”, conta Karina, que narra de forma lúdica essa história para ele, que hoje tem 4 anos de idade.

Crianças trazem esperança

Além da pressão constante pela expulsão, o povo caiçara da Juréia tem sentido cada vez mais os efeitos da crise climática, que os força a adaptar seus modos de vida tradicionais. Eles estão avaliando mudar o calendário da roça porque, com as chuvas e secas irregulares, vários plantios têm se perdido. Já são dois anos sem a colheita do arroz. O calor extremo também tem mudado os horários da pesca artesanal, e os peixes esperados para determinadas épocas do ano nem sempre são encontrados.

Apesar dos problemas, Karina decidiu ter outra filha, Joana, que tem hoje 1 ano e 10 meses. É que ela também vê na maternidade uma forma de “esperançar”. Karina fala que eles não sabem se vão colher os frutos dessa luta que travam pelo território e se vão poder viver a vida digna e com liberdade que sonham. “Se a gente não puder colher, que ao menos os nossos filhos colham. As crianças trazem uma esperança muito forte.”

Para lhes dar a melhor possibilidade de futuro, Karina está envolvida na discussão e luta pela formalização de uma escola tradicional caiçara na comunidade. Quer que os filhos aprendam a ler e respeitar a natureza. “As crianças estão crescendo no chão da floresta, aprendendo conhecimentos ancestrais. Vão saber fazer parte das soluções para o futuro”, acredita.

Na periferia, o mundo acaba todo dia

Maria Geórgia Pinheiro, de 27 anos, tem percebido ondas de calor cada vez mais intensas no apartamento onde vive com os dois filhos, na periferia de Fortaleza, capital do Ceará. As chuvas, que agora chegam em excesso, trazem medo de alagamento. “A gente enxerga muito o perigo em dias chuvosos por não ter uma limpeza contínua e os esgotos estarem sempre muito lotados de lixo.”

A falta de políticas públicas, Geórgia sente, agrava os efeitos da crise nas periferias das grandes cidades. Mesmo assim, vivendo desde sempre a iminência de um figurativo fim do mundo pelo racismo e violência que rodeiam sua história, ela decidiu que o caminho possível é ter esperança.

Geórgia cresceu entre a casa dos tios e da mãe, com quem tinha uma relação difícil e discussões violentas. Filha de um homem que nunca a assumiu, descobriu que estava grávida aos 17 anos. “Entendi o que era ter família. Esse amor se criou dentro de mim a partir do momento em que tive meu primeiro filho, o Caio”, diz.

Caio tinha dois anos quando o relacionamento de Geórgia acabou, e ela se mudou para a casa de uma amiga. Quando conseguiu um trabalho informal de babá, alugou um kitnet e começou a organizar a vida. Depois, descobriu o brega funk, virou princesinha do passinho e passou a ganhar algum dinheiro com apresentações de dança.

Engravidou novamente, entrou num relacionamento abusivo e o mundo pareceu desabar mais uma vez. Para fugir desse namorado, Geórgia mudou de bairro numa cidade sitiada por facções criminosas, onde circular por territórios rivais pode gerar sentenças de morte. Mas ela sobreviveu.

Georgia em família: “Eu sinto que mudei a minha rota de vida e, a partir dos meus filhos, consegui ser uma pessoa muito massa” (Fotos: Arquivo pessoal; Arte: Giulia Santos)

Mudando as rotas

Viver na periferia é ver muitos amigos (a maioria homens e pretos) enveredarem para o crime, mas Geórgia se orgulha de ter conseguido encontrar um caminho diferente. No ano passado, conquistou seu primeiro emprego CLT como produtora em um centro cultural, e, desde então, está feliz por poder dar mais oportunidades aos filhos do que as que ela teve. “Eu sinto que mudei a minha rota de vida e, a partir dos meus filhos, consegui ser uma pessoa muito massa.”

Geórgia admite que, apesar de ser uma mulher preta, reproduzia comportamentos racistas na infância. Por isso, ver o filho Caio, de 9 anos, assumir sua negritude nos cabelos desde pequeno, ou ver a filha Rihanna, de 3 anos, perguntar o gênero de pessoas não-binárias, com curiosidade e naturalidade, a faz pensar que o mundo há de melhorar.

Os estereótipos que são colocados para mulheres negras com filhos, reflete Geórgia, é sempre reforçando os problemas sociais, “mas temos muitas potências negras saindo das periferias. Os meus filhos também são potentes. Enquanto tiver planeta, eles vão mostrar isso.”

Myrian em família: “Filho não atrapalha a nossa vida, mas desacelera” (Fotos: Arquivo pessoal; Arte: Giulia Santos)

Entre o pânico e o compromisso com a continuidade

No Norte do país, a indígena tikuna Myrian Metchitüna, de 41 anos, vive um dilema entre o medo de um futuro assustador e o compromisso com a continuidade de seu povo. “Choro quando penso nas minhas crianças. Fico em pânico porque sei que talvez eu não vou viver o que está por vir, mas eles vão.”

Ela está cuidando de duas crianças (de 12 e 4 anos) e de um bebê na comunidade Filadélfia, território indígena espremido na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, na cidade amazonense de Benjamin Constant. É lá que o povo Tikuna vive da agricultura e da pesca. “Na última seca prolongada que teve, tivemos que evadir para o território peruano”, recorda Myrian.

Durante a vida toda, ela viu parte do território de seu povo ser invadido e virar fazenda. “A floresta foi ficando cada vez mais fina. Só tem uma mechinha nativa agora”, afirma. Lá, o dilema da parentalidade vai além da ansiedade climática: é que o território foi ficando pequeno e, com o aumento populacional, as famílias já não têm espaço para fazer suas roças.

A própria Myrian não planejou ter três filhos. Os dois mais novos vieram por descuido num momento em que ela queria estudar e trabalhar, mas assumiu a missão porque sabe que está na descendência a chance de seu povo continuar existindo. “Os sonhos ficaram devagar. Filho não atrapalha a nossa vida, mas desacelera”, explica ela, que abraçou o feminismo e integra a Rede de Mulheres das Águas e das Florestas.

Myrian está empenhada em buscar modos de vida mais sustentáveis na aldeia enquanto os filhos aprendem o idioma nativo e tudo o que for possível sobre sua cultura. “O jovem que não conhece sua identidade fica mais vulnerável e não encontra o futuro”, explica.

A maternidade também é um caminho para adiar o fim do mundo, na opinião dela. “Nossa terra ficou pequena e estamos estressados. Vivemos com muito calor, entre chuvas excessivas e secas prolongadas. Mas, sem filhos, nossa história acaba.”

*Beatriz Jucá, é jornalista, formada pelo Universidade Federal do Ceará, e escritora. Foi repórter do El País e editora no projeto transnacional Amazon Underworld 

Revista AzMina

Revista AzMina: Tecnologia e informação contra o machismo e pela igualdade de gênero, com recortes de raça e classe. Jornalismo independente para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres cis e trans, homens trans e pessoas não-binárias

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