Desde que o site Politico publicou o vazamento da minuta de uma decisão da Suprema Corte dos EUA sobre a intenção de derrubar Roe vs Wade, o célebre julgamento de 1973 tornando legal a prática do aborto, muito tem se falado sobre suas possíveis implicações. O autor do texto vazado, o juiz conservador Samuel Alito, indicado ao cargo durante a presidência de George W. Bush, pontua que a decisão de 1973 foi “flagrantemente errada desde o início” e responsável por “inflamar os debates e aprofundar as divisões” nacionais.
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O argumento de Alito foi apoiado por quatro de seus pares conservadores, juízes também indicados para a Suprema Corte durante administrações republicanas: Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Para todos, Roe vs Wade é uma decisão que “deve ser anulada”. Se Roe vs Wade for de fato revertida, estima-se que pelo menos 26, de 50 estados, sobretudo no Sul e no Meio Oeste, irão banir em definitivo o aborto em seus territórios. Desses 26, 11 discutem a hipótese de torná-lo ilegal até mesmo em casos de estupro e incesto.
A oposição conservadora a Roe vs Wade existe pelo menos desde o primeiro dia de sua aprovação. Aliás, essa oposição à legalização do direito ao aborto é historicamente a principal cola responsável pela aglutinação do movimento conservador nos EUA. Ela forneceu aos libertários uma desculpa conveniente e que é usada até hoje: não é que eles sejam contrários à pauta dos direitos reprodutivos em si, eles argumentam; sua crítica é específica à competência de revisão judicial exercida pela Suprema Corte. Para eles, a ideia de que uma instância do governo que não é eleita democraticamente, mas sim indicada de cima para baixo, faça o controle da constitucionalidade de atos do Executivo e do Legislativo, é uma grave distorção da democracia norte-americana.
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Veja o que já enviamosPor outro lado, grande parte da oposição à Roe vs Wade sempre veio da direita religiosa — sobretudo de setores evangélicos, invariavelmente mobilizados pela pauta de costumes e por guerras culturais que não têm qualquer aceno de fim. Não é por acaso que foi justamente ao longo da década de 1970 que a direita religiosa conseguiu ascender como uma das principais forças do Partido Republicano e do movimento conservador nos EUA.
Se a oposição aos direitos reprodutivos uniu desde o início libertários (com a sua crítica de natureza legal sobre o funcionamento da Suprema Corte) e a direita religiosa (com a sua oposição moral e social ao aborto) e conseguiu fortalecer o movimento conservador e dá-lo uma cara, digamos assim, mais coerente, além de um senso de propósito, é importante lembrar também que o direito ao aborto sempre foi uma questão de saúde pública de contornos raciais evidentes. As mulheres negras nos EUA são o grupo demográfico desproporcionalmente mais impactado por qualquer tipo de política pública de entrave ao aborto. E, é claro, qualquer liderança conservadora que se lançou contra essa pauta jamais ignorou esse dado.
É importante, entretanto, entender as fontes intelectuais dos argumentos conservadores. O juiz Samuel Alito subscreve a doutrina legal do Originalismo, segundo a qual advoga um entendimento literal da Constituição dos EUA, de acordo como foi redigida no século XVIII. Na minuta vazada, a ausência de qualquer menção expressa na Constituição a respeito do direito ao aborto é automaticamente interpretada como a certeza absoluta de que esse direito sequer existe e que, portanto, não deve haver qualquer tipo de proteção legal codificada para protegê-lo. O problema é que a doutrina Originalista parte de um pressuposto cínico e avesso à História. Como disse Jill Lepore, em texto recente publicado na New Yorker, a ausência de menção às mulheres na Constituição norte-americana é “um problema para ser remediado e não um precedente para honrar”. Afinal de contas, no momento da redação da Constituição dos EUA, em 1787, as mulheres não tinham sequer existência legal.
O problema principal do argumento de Alito é o fato de estar amparado em uma lógica manca, que dificilmente se sustenta e fica de pé. Quando atribui peso definitivo a ausência de documentação legal que embase historicamente o direito ao aborto, ele ignora intencionalmente o fato de que as mulheres naquele período histórico não possuiam qualquer tipo de respaldo jurídico à sua própria autonomia e liberdade. Raciocínio equivalente, nos lembra Jill Lepore, seria fundamentar uma decisão sobre direitos civis e raça a partir de uma interpretação legal da Suprema Corte que levasse em conta meramente leis e estatutos redigidos pré-emancipação.
Um dos muitos problemas da possível revogação de Roe vs Wade, algo que deveria estar sendo discutido com atenção não apenas por feministas e por progressistas mas igualmente por liberais e conservadores, é o cenário de insegurança jurídica que vai se precipitar a partir de agora nos EUA. Não apenas porque a Suprema Corte tem a maioria conservadora necessária para banir o direito ao aborto, em descompasso com a vontade da maior parte dos americanos, mas por conta da precariedade da fundamentação legal que deverá ser utilizada. A partir daí, será inaugurado um vale-tudo jurídico que poderá ser fonte de instabilidade legal e política como jamais se viu.
Não é de hoje que os EUA são considerados um país dividido em dois. O primeiro é multirracial, secular, urbano e progressista. O outro é branco, cristão, rural e varia entre o conservador e o reacionário. Com a remoção, integral ou mesmo parcial, de Roe vs Wade, essa divisão será acelerada e sancionada legalmente por uma Suprema Corte de maioria conservadora — que nem conservadora de fato é, porque não busca conservar as instituições e sim dinamitá-las, à moda dos reacionários. Além disso, a atual baixa popularidade do presidente Joe Biden somada às eleições de meio de mandato que se aproximam talvez sejam, ao que tudo indica, a confirmação tardia de que os boatos sobre a morte do trumpismo foram amplamente exagerados.