Quem descobriu as aulas de yoga pela via online, na quarentena, não deve estar entendendo nada. Praticantes antigos e até professores também estão confusos e exaltados. Nas últimas semanas, posts de denúncia e protesto contra abuso e assédio sexual no meio, que já vinham pipocando, explodiram. O estopim foi a repercussão de uma live no Instagram, em que a youtuber Raissa Zoccal, criadora do canal de yoga e meditação Yogamudrá, recebeu o professor de Vedanta (estudo dos Vedas, textos hindus considerados sagrados e relacionados à origem do Yoga) Jonas Masetti. Em um trecho, replicado sob críticas e indignação, Masetti, em trajes característicos (o doti), chama o movimento, que vem tomando corpo nas redes, de histeria. Argumenta que uma mulher, tocada intimamente em aula, que volta a praticar com o mesmo instrutor, provavelmente gostou e até ficou feliz. Ri. Minimiza abordagens desrespeitosas por parte de professores chamando-as de “abuso leve”. Em resposta, centenas de professoras e praticantes aderiram à hashtag #nãoexisteabusoleve. Um vídeo em que algumas ironizam as falas viralizou. Organizações como a Aliança do Yoga publicou nota em que condena a postura e chama a atenção para o seu código de ética. Estúdios e professores como Pedro Kupfer e Mahavir Thury se posicionaram contra a fala.
A live que tirou o sono de Jonas e Raissa aconteceu logo depois de uma outra, promovida em 11 de dezembro pelo perfil @yoguinis.subversivas (que foi desativado, pois as autoras disseram ter sido ameaçadas). Nesta, a advogada e professora de yoga Thalita Behn Immich esclareceu dúvidas do tipo: O que configura crime ou como denunciar e, ainda, como desabafar nas redes sociais sem fornecer motivos para ser acusada de linchamento moral? Marcella Zamarioli, psicóloga e professora de yoga, viu a situação se inverter quando apontou um abusador que agiu em seu próprio estúdio. “Ele conseguiu assediar alunas online. Dava zoom na câmera. Não orientou nenhum ajuste, mas disse a uma delas que ela parecia deusa em Sirshasana (a famosa postura de cabeça para baixo), ficou enviando mensagens para outra, perguntando onde ela morava…”. Movida pelo desejo de alertar, Marcella postou, e está sendo processada. “Tive que tirar todos os meus vídeos do ar e não posso falar o nome dele”, conta. Em contrapartida, o Ministério Público aceitou a denúncia, feita por Marcella junto com quatro alunas, contra o ex-colega e ex-professor. Morando em Araraquara, a santista começou a receber relatos de abusos do país inteiro.
De Brasília, a paulistana Larissa Farias, do perfil @yogandobr, foi quem editou o vídeo resposta e agora organiza outra live, com a youtuber Luciana Prakash, do canal Yoga pra Você, sobre Assédio, Abuso e Yoga. Larissa é outra que já perdeu a conta dos desabafos que recebeu em dois anos e meio de canal. E diz que nunca entendeu a passividade com que estúdios recebem denúncias. Marcella acha que alguns não se posicionam para não perder contratos e alunos, outros realmente não se importam. Thalita diz que as escolas precisam se responsabilizar. Mahavir Thury acha que a cultura indiana, fonte do yoga, “é muito machista e patriarcal, o que acaba gerando essas distorções de conduta e avaliação”.
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Veja o que já enviamosJonas Masetti, respondeu dizendo que se referiu a casos específicos, como o do professor que tocava o períneo das alunas, “o que é um absudo”, e admitiu: “existe um machismo intrínseco na maneira como eu me comuniquei, a respeito do qual eu não tinha a menor consciência. Me sinto profundamente envergonhado”. O episódio ganhou notoriedade devido ao momento, aos seus mais de 34 mil seguidores no Instagram, e ao seu prestígio inclusive junto ao governo indiano, que chegou a homenageá-lo pela dedicação em divulgar a cultura do país. E ilustra como denúncias são ignoradas e o abuso normalizado em um ambiente teoricamente espiritualizado.
[g1_quote author_name=”Jonas Masetti” author_description=”Professor de yoga” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Existe um machismo intrínseco na maneira como eu me comuniquei, a respeito do qual eu não tinha a menor consciência. Me sinto profundamente envergonhado
[/g1_quote]Patthabhi Jois, referido na live por tocar os genitais das alunas, morreu em 2009. Desde então surgiram relatos chocantes e as fotos e vídeos não deixam dúvidas. A professora Karen Rain, ex-aluna, escreveu ter ouvido de colegas que Jois transferia energia de cura para ela, tal um João de Deus de samba canção. Mas o propagador do Ashtanga Yoga continua cultuado, inclusive sua foto é exposta em altares, em muitas escolas pelo mundo. E está longe de ser um caso isolado. Osho e Choudhury Bikram, ambos retratados em documentários desconcertantes, seguem influentes. O segundo, ainda vivo, continua faturando com franquias de seu método de yoga em salas aquecidas. No Brasil temos os exemplos de Prem Baba e Deva Nishok, acusados sem maiores consequências. Seria injusto e desproporcional comparar abuso e assédio a declarações, por mais machistas e misóginas que sejam. E Jonas Masetti não é o único, pois muita gente, como se diz atualmente, “passa pano” no meio iogue. Ele, após a repercussão, primeiro alegou, em vídeo, que suas falas estavam fora de contexto, e pediu desculpas por não ser empático. Depois escreveu que errou na forma de se comunicar mas é “totalmente contra o abuso”. Este post, de 16 de dezembro, é ilustrado por uma foto em que o professor aparece de costas, usando camiseta, e começa dizendo que não quer se desculpar ou despertar empatia. No dia seguinte, mais de 2600 pessoas haviam curtido e quase mil comentado, a maioria em seu apoio, muitas argumentando que ele errou, mas, quem nunca? Mulheres inclusive.
Raissa Zoccal divulgou um vídeo em que diz, chorando, que errou por ignorância e tem recebido ataques cruéis. Ela também escreveu que está constrangida, não compactua com abuso e está em contato com feministas “para estudar conteúdos que a ajudem a tirar o véu da ilusão”, uma alegoria cara à filosofia. Enquanto isso, as professoras à frente dos protestos elaboram um manifesto. Alguns tópicos já foram definidos: fim da era dos mestres e gurus; mulheres líderes e influentes; posturas, atitudes e discursos que não serão mais aceitos; diferença entre assédio sexual e importunação sexual; como denunciar; aviso sobre rede de apoio e cartilha. A lista chama a atenção para uma particularidade. Nas aulas de yoga, para além da relação entre aluna e professor, que já seria desigual, há a tendência a ver o instrutor como uma espécie de mestre iluminado. “Só que alguns são bem o contrário e, inclusive, tem homem repostando meu vídeo e dizendo que repudia o abuso, mas já foi denunciado”, diz Larissa. Quantos véus precisarão cair para acabar com o machismo combinado de duas culturas?