“Quer coisa mais política do que a gente poder pautar o afeto?”, questiona Liniker, cantora brasileira e primeira artista transgênero a receber um Grammy — Grammy Latino por Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, em 2022. Em conversa com a cartunista Laerte Coutinho no quadro “Transando Com Laerte”, do Canal Brasil, a artista apresenta a dimensão do afeto como um espaço de debate político para a comunidade LGBTQIAPN+, sobretudo transexual e travesti, que, em muitos casos, passam pela negação da identidade de gênero e pela quebra de vínculos afetivos assim que iniciam seu processo de transição. Muitas vezes, para mulheres trans, homens trans e travestis, esse vínculo só é reconstruído em casas de acolhimento.
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Psicanalista e graduando em Psicologia pelo Centro Universitário Academia (UniAcademia), Kael Durante traz que os motivos que levam as famílias a negarem pessoas transexuais e travestis são diversos, indo desde a não compreensão a não aceitação da identidade de gênero daquele indivíduo. Nesse sentido, Kael Durante destaca que se faz necessário observar outra perspectiva desse cenário, sendo as famílias que as acolhem.
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Veja o que já enviamosPlanejadas e geridas por organizações sociais não governamentais, as casas de acolhimento para a população LGBTQIAPN+ atuam como moradia provisória para pessoas que passaram por situação de violência ou em situação de vulnerabilidade. São definidas como um espaço acolhedor e seguro, com uma estrutura semelhante à de uma residência compartilhada, onde, além de alimentação e higienização, podem ser oferecidos serviços de assistência social, psicológica e oficinas culturais. Diretora do Fórum Estadual de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro (Fórum TT RJ) e acolhida por um período pela Casa Nem, no Rio de Janeiro, Wescla Vasconcelos argumenta que “as casas de acolhimento LGBTQIAPN+ fazem uma “escola da vida” para quem nunca esteve antes em uma sala de aula ou nunca teve uma oportunidade de trabalho. “O acolhimento surge como essa formação de vida que a pessoa nunca teve oportunidade de encontrar ou acessar em outros lugares”, argumenta.
De acordo com a Rede Brasileira de Casas de Acolhimento (Rebraca), no Brasil há 23 espaços de acolhimento para a população LGBTQIAPN+. Mesmo nem todas funcionando como abrigo, são esses ambientes que em muitos momentos garantem o mínimo para pessoas trans e travestis em situação de vulnerabilidade, como argumenta Becca Carnavale, pesquisadora formada em Direito pelo Centro Universitário Geraldo Di Biase e aluna do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). “São elas que vão garantir um banho, um café, um almoço, uma troca de roupa, coisas que o Estado deveria proporcionar para todas as pessoas, mas não proporciona”, defende.
Casa Florescer: acolhimento que depende de doações
Um exemplo é o Centro de Acolhimento Especial (CAE) Casa Florescer, em São Paulo, voltado para o acolhimento de mulheres trans e travestis. Com quatro unidades, sendo uma especificamente para homens transexuais — o Centro de Acolhida Especial para Homens João Nery —, o espaço é administrado pela Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (OSC CROPH), em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência de Desenvolvimento Social e com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos da Prefeitura Municipal de São Paulo. Como a Casa Florescer, alguns abrigos contam com parcerias com as gestões municipais, mas muitas dependem de campanhas de doações e voluntários para manter suas atividades. “Percebemos essa segregação, essa falta de recursos destinados para esses lugares que impactam diretamente na vida das pessoas trans e travestis que utilizam esses espaços”, comenta Carnavale.
Casa Nem: a luta de Indianarae Siqueira por mulheres trans e travestis
Esses ambientes também são fundamentais porque surgem como uma forma da comunidade LGBTQIAPN+ fortalecer a si mesma, já que se tratam de espaços construídos por ela própria. No Rio de Janeiro, Indianarae Siqueira, presidente da Rebraca e coordenadora da Casa Nem, que se desenvolve como um espaço de acolhimento a partir do Prepara Nem — pré-vestibular social com foco em preparar mulheres trans e travestis para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e garantir o certificado de conclusão do Ensino Básico, como era possível na época, além do ingresso na universidade —, traz que muitos pensam o espaço como a primeira casa de acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+ no Brasil, mas muito antes já havia abrigo para pessoas que conviviam com HIV no Palácio das Princesas, casa de apoio criada pela ativista Brenda Lee, assassinada em 1996.
Localizada na Rua Dois de Dezembro, no bairro do Flamengo, a Casa Nem foi primeiramente uma ocupação na luta por moradia em um edifício em Copacabana. Após uma ação de despejo, hoje o espaço onde atua a Casa Nem funciona como uma seção do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Para realizar suas atividades, o espaço conta com uma rede de financiadores, que doam para a casa materiais de limpeza, alimentos, cestas básicas e móveis. “Esses móveis, quando não precisamos mais, doamos para pessoas que estão saindo do acolhimento e formando seus espaços de residência”, comenta a coordenadora.
A ativista explica que as dificuldades enfrentadas por casas de acolhimento e espaços de convivência no país são, principalmente, financeiras. No caso da Casa Nem, além da rede de apoiadores, o espaço mantém uma campanha de financiamento pela plataforma Evoé. “Um financiamento pelo poder público deveria existir. Conseguimos agora pelo Acolher+ — programa do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) com o propósito de fortalecer e implementar casas de acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+ —, que deve resolver esse problema, mas precisamos de financiamento constante para manter as atividades”.
Siqueira explica que grande parte das acolhidas são mulheres trans e travestis. A ativista compartilha que, graças aos colaboradores voluntários com os quais a casa conta, o espaço conseguido se manter nos últimos anos. Todos os professores do Prepara Nem, por exemplo, são voluntários. “Já conseguimos inserir mais de 40 pessoas nas universidades. Agora, queremos provar que faltam oportunidades para essas pessoas e implementar uma universidade própria”, comenta.
aKasulo: lazer e convivência
Em Belo Horizonte, Gab Lamounier, com formação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e representante da aKasulo – Centro de Convivência LGBTQIA+ — que, diferente da Casa Florescer e da Casa Nem, não oferece abrigo temporário, mas sim lazer e convivência —, argumenta que mesmo existindo aparelhos das prefeituras para o acolhimento de pessoas LGBTQIAPN+ em condição de rua ou perda de vínculos, as casas de acolhimento e os centros de referências costumam ser mais procurados pela facilidade dos processos de atendimento.
No caso da capital mineira, “para uma pessoa poder morar na Casa de Acolhimento LGBT há todo um procedimento burocrático e uma análise rigorosa. Não funciona como os outros equipamentos da assistência social, que são por demandas, tornando necessário ter um perfil específico para acessar a Casa LGBT, o que avaliamos como muito negativo”. Na visão de Lamounier, o processo sistematizado pode, senão impedir, dificultar o acesso de uma pessoa LGBTQIAPN+ vulnerável ao abrigo, podendo levar a casos em que uma pessoa, mesmo que extremamente suscetível, não consiga uma vaga no espaço pelo perfil não corresponder ou por não por cumprir com todas as etapas do processo.
Como na Casa Nem, a maioria das frequentadoras da aKasulo são mulheres trans e travestis, algumas egressas do sistema prisional e com longa trajetória de rua, que buscam o espaço principalmente para participar das atividades culturais oferecidas. Além da importância para a sobrevivência dessas pessoas, ao oferecer um local para descanso, alimentação e higienização especialmente, Lamounier destaca que ambientes para essa comunidade também são importantes para reafirmar a presença dessas pessoas que expressam uma identidade de gênero feminina na cidade. “A questão sensorial muda. Quando chegamos no ano passado, houve um pouco de estranhamento, porque não era comum ver travestis andando na rua. Desde que o espaço foi inaugurado, tem sido cada vez mais comum os nossos corpos circulando pelo bairro e as participantes relatam olhares e comentários quando chegam”, observa.
‘O medo se transforma em coragem’
Kael Durante resume que ter tempo para construir um futuro, por não precisar estar diariamente lutando para conseguir o mínimo para sobreviver, é fundamental para pessoas trans e travestis sem moradia. Para o psicanalista, quando existem movimentos de acolhimento, em que os indivíduos sabem que possuem um espaço onde podem dormir e se alimentar, mesmo que não seja permanente, o medo se transforma em coragem. “Quando sozinhos, o medo nos torna mais suscetíveis, mas o medo, porque ele nunca deixa de existir, aliado ao afeto e ao amor, se transforma em uma força de sobrevivência”, avalia.
Esta reportagem faz parte da série especial “Com Nome, Mas Sem Endereço”. Clique na foto abaixo para conferir mais histórias.