Candidatas a prefeituras são alvo de misoginia e transfobia após debates na TV

MonitorA – observatório de violência política de gênero online - analisa ataques nas redes sociais contra mulheres na corrida eleitoral em seis capitais

Por Revista AzMina | ODS 10ODS 5 • Publicada em 13 de setembro de 2024 - 13:23 • Atualizada em 18 de setembro de 2024 - 09:51

MonitorA: candidatas a prefeituras são alvo de misoginia e transfobia nas redes sociais após debates na TV (Arte: AzMina)

(Gabi Coelho*) – Em um cenário eleitoral dominado por homens cisgêneros, poucas mulheres atualmente candidatas não só enfrentam a pressão das urnas, mas também uma enxurrada de ataques nas redes sociais. No debate para as prefeituras das grandes capitais brasileiras, candidatas como Tabata Amaral (PSB-SP), Maria do Rosário (PT-RS) e Duda Salabert (PDT-MG) viram suas propostas ofuscadas por comentários misóginos e transfóbicos. Insultos que deslegitimam não apenas suas campanhas, mas também a trajetória pessoal e profissional de cada uma.

É o que mostram os resultados da terceira edição do MonitorA – observatório de violência política de gênero online desenvolvido pelo Instituto AzMina, InternetLab e Núcleo Jornalismo. Em 2024, a primeira etapa do projeto analisou mais de 4.700 comentários potencialmente ofensivos feitos durante e após os debates da TV Band em seis capitais brasileiras, no canal do YouTube da emissora.

(Atenção – Esta reportagem mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e transfóbico. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento na internet, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, como podemos identificá-la)

O MonitorA coletou dados de transmissões oriundos de Natal (RN), Goiânia (GO), Belo Horizonte (MG), São Paulo (SP), Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS). Ao todo, foram 18 homens candidatos e apenas 8 mulheres candidatas: Juliana Brizola (PDT-RS), Maria do Rosário (PT-RS), Andrea Caldas (PSOL-PR), Maria Victoria (PP-PR), Natália Bonavides (PT – RN), Adriana Accorsi (PT – GO), Duda Salabert (PDT-MG) e Tabata Amaral (PSB-SP).

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Entre todo o conteúdo analisado, 1.680 comentários eram de fato ofensivos: 11% foram classificados como ataques diretos e 24,3% como insultos – é importante dizer que vários usuários cometem mais de uma agressão no mesmo texto. A cidade de São Paulo concentrou quase metade (49,4%) do total dos comentários analisados, seguida por Porto Alegre com 22,6%. O debate com menos participação da audiência foi o de Goiânia, com 133 comentários (3,4% do total).

A cada edição, o MonitorA classifica milhares de conteúdos ofensivos dirigidos a candidatas em redes sociais, e diferencia o que é insulto ou ataque. Os insultos são expressões desagradáveis, e até inadequadas, mas que fazem parte do jogo político no limite da liberdade de expressão. Já os ataques, que podem ser infantilização, misoginia, assédio e incitação à violência, entre outros, tem recomendação de exclusão das redes.

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“Ao buscarmos o equilíbrio entre um olhar para violência política e a necessidade de fazermos a manutenção das redes sociais como espaço que acolhe a liberdade de expressão, passamos a diferenciar o que são insultos – comentários hostis que compõem o cenário de disputa eleitoral – e os ataques. Os ataques extrapolam a hostilidade, conectando-se com discriminações a grupos historicamente marginalizados, como as mulheres, as pessoas LGBTQIAP+ e as pessoas negras. No último caso, defendemos a remoção desses conteúdos e um aprimoramento das políticas das plataformas para que ataques como esses sejam removidos de forma célere”, explica a antropóloga Fernanda K. Martins, diretora de Pesquisa e Desenvolvimento do InternetLab.

Yasmin Curzi, pesquisadora do Karsh Institute of Democracy da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, explicou à reportagem que muitos dos ataques e insultos captados pelo MonitorA persistem porque encontram “apoio nos estereótipos de gênero” já presentes e aceitas na sociedade, como é o caso da infantilização das mulheres. Ela recorda a visão histórica das mulheres como incapazes para atos políticos e até cognitivamente, enquanto os homens seriam “mais livres intelectualmente”.

Tabata Amaral chamada de “menina” e “coitada”

A deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), candidata à prefeitura de São Paulo, foi uma das figuras mais atacadas durante o debate na capital paulista, recebendo quase a metade dos comentários ofensivos direcionados aos cinco candidatos presentes. Os outros quatro eram homens. Dos 289 insultos ou ataques que a paulistana recebeu, 73 foram classificados como inferiorização, 34 misoginia e 34 etarismo.

A parlamentar comentou o impacto desses ataques em sua campanha e na percepção da participação feminina na política: “A violência política contra mim não é novidade. No dia a dia do Congresso recebo ataques diários. Apesar de eu estar acostumada, isso não pode ser tolerado. É um ambiente tóxico e é preciso estabelecer mecanismos de denúncia, proteção e enfrentamento. Na campanha, tenho respondido a esses ataques desmascarando quem me ofende.”

Ataques a Tabata Amaral, candidata a prefeita de São Paulo (Infografia: AzMina)
Ataques a Tabata Amaral, candidata a prefeita de São Paulo (Infografia: AzMina)

Tabata Amaral foi chamada 39 vezes de “menina”, 33 vezes de “coitada”, e 19, de “fraca”. O termo “batata” aparece em 49 comentários como forma de zombaria ao seu nome, e teve até eleitores sugerindo que a deputada deveria passar a vender conteúdo adulto na internet: “Vai pro Only, mulher não presta pra política.”

Segundo Yasmin Curzi, que tem pesquisado o que ela chama de desinformação generificada, a infantilização pode ser considerada um tipo de inferiorização, e é uma estratégia narrativa frequente nos ataques a mulheres na vida pública. Seria uma forma de atingir aquelas que não estão performando o papel de gênero que deveriam na sociedade patriarcal, que é estar na vida privada.

Tabata também foi alvo de insultos de ordem ideológica, com associação pejorativa a movimentos de esquerda, rotulando-a como “esquerdista”. Esses ataques vieram acompanhados frequentemente de viés misógino, associando sua ideologia política à sua aparência ou comportamento, como em:

“Essa moça é tão linda, pena que é esquerdista.”

“Tabata, esquerdista que se faz de boa moça, precisa dos pobres, que continuem pobres, para ter algum voto… é a receita da esquerda.”

“Essa Tabata é uma comédia de feministinha chata. Quem aguenta essa mala. Não basta ser feia ainda é chata.”

Em suas redes sociais, a candidata falou dessas tentativas de deslegitimação da perspectiva feminina, especialmente na política. “Cada uma tem uma forma de lidar, mas como representante das mulheres no Parlamento e na campanha política, encaro como uma obrigação me colocar de forma contundente”.

Transfobia em Belo Horizonte

A análise do MonitorA também identificou que Duda Salabert (PDT-MG), uma das primeiras mulheres trans eleita para o Congresso Nacional (posto que divide com Erika Hilton, do PSOL-SP), enfrentou uma onda de ataques transfóbicos no debate da Band em Belo Horizonte. Aproximadamente 84,6% dos ataques nos comentários do vídeo são contra ela, quase todos sobre identidade de gênero.

Duda Salabert também foi muito atacada nas eleições de 2022. Segundo Leandro Marinho, sociólogo e pesquisador de violência política no Observatório de Favelas , “esses ataques expressam a dominância do poder masculino e branco (…), reforçam preconceitos e violências estruturais”. Ele explica que o fenômeno tem duplo efeito, fragilizando a imagem das mulheres perante a opinião pública e, ao mesmo tempo, cultivando a hostilidade a elas nos espaços de poder.

Ataques a Duda Salabert, candidata a prefeita de Belo Horizonte (Infografia: AzMina)
Ataques a Duda Salabert, candidata a prefeita de Belo Horizonte (Infografia: AzMina)

“A extrema-direita desde o primeiro dia que eu lancei minha candidatura tem feito piadas, memes e me atacado com todo tipo de preconceito e ódio, tudo relacionado a quem eu sou e sabe por quê? Porque eles não tem nada a dizer sobre meu preparo, meu trabalho e minhas propostas”, afirma a candidata Duda Salabert em suas redes sociais.

O impacto psicológico dessas agressões é devastador para as candidatas, conforme explica Yasmin Curzi. “A gente tem uma sociedade estruturalmente machista, que não quer a promoção de mulheres no debate público; não só na política, mas também no jornalismo e na produção da ciência”. Ela conta que também é alvo de ataques ao falar em público ou dar entrevistas, com questionamentos sobre sua aparência jovem ou formação. “Não se espera que mulheres estejam nessa posição, porque a mulher nunca vai ter uma opinião sensata e racional”, critica.

Para a antropóloga Fernanda K. Martins, a desumanização é uma estratégia recorrente nos ataques aos grupos que historicamente foram constituídos como inferiores. “Nas últimas edições do MonitorA, ao trabalharmos com uma perspectiva interseccional de gênero, notamos que esse modo de atacar candidaturas se direciona, especialmente, às mulheres, pessoas trans e negras”.

Principais tipos de ataques

Os tipos de ataques mais comuns contra mulheres incluíram inferiorização (32,7% dos casos, especialmente em Natal e São Paulo), misoginia e etarismo (18,67% e 14,67% dos ataques, respectivamente, com destaque em São Paulo). A transfobia apareceu somente em Belo Horizonte, mas respondeu por 87,88% de todos os comentários ofensivos naquele debate.

Sobre o impacto desse tipo de agressão, a candidata de Porto Alegre, Maria do Rosário (PT-RS), reconhece que causam certo debate emocional, mas afirma que, a longo prazo, fortalecem seu “compromisso com a luta pela igualdade. Cada vez mais, a sociedade entende que esses ataques são fruto do machismo e da tentativa de nos tirar do espaço que conquistamos”.

Os dados mostram que as candidatas mulheres foram as mais ofendidas nas capitais analisadas. Em Natal, 76,36% dos comentários foram direcionados a mulheres, seguida de Belo Horizonte, com 64,44%, e Porto Alegre, com 61,1% . Em Goiânia e São Paulo, os números foram de 50% e 44,5%, enquanto Curitiba ficou com 19,6%. De forma geral, as mulheres foram alvo de 51,1% dos comentários ofensivos, embora fossem apenas 44,4% das candidatas.

Especificamente sobre os ataques, em Belo Horizonte, 91,7% deles foram voltados contra as candidatas, enquanto em Natal o percentual foi de 91,3%, e em Porto Alegre, 85,9%. Goiânia apresentou 81,8% dos ataques contra mulheres, seguida por Curitiba com 68,4%, e São Paulo com 56,8%. No total, 66,6% dos ataques nas capitais analisadas foram direcionados a candidatas, confirmando que as mulheres são o principal alvo de agressões nos debates eleitorais online.

Medidas que podem ajudar

Todas as pesquisadoras e os pesquisadores entrevistados pela reportagem concordam que é preciso agir para combater a intensa violência política de gênero no Brasil. Isabela Xavier defende que, além de políticas de cotas, é preciso investir em “educação afirmativa” e na qualificação da moderação de conteúdo e responsabilização das plataformas digitais.

Yasmin Curzi acredita que, para gerar um ambiente mais seguro para as mulheres, é necessário abordar a responsabilidade dos partidos políticos – muitas vezes os principais atores das violências partidárias de gênero – antes de discutir o papel das das empresas de tecnologia. Além do suporte institucional e jurídico nos partidos, a pesquisadora considera fundamentais os treinamentos para os homens afiliados.

Ela também acredita que as plataformas precisam revisar seus métodos de moderação de conteúdo, frequentemente baseado em contratos terceirizados, uso de inteligência artificial e detecção automática, em vez de uma abordagem mais humana e contextualizada. Curzi também destaca os protocolos de segurança de emergência, acionados em caso de ataques coordenados, além da permissão às e aos usuários para proteger suas próprias páginas.

Ainda segundo a pesquisadora, poucas plataformas possuem políticas específicas para abordar a violência de gênero, que tende a aparecer diluída em medidas contra bullying e assédio, ainda assim, adotando a abordagem dos Estados Unidos, que prioriza a liberdade de expressão.

O Google, a quem pertence o YouTube, recebe críticas pelos sistemas de moderação que lidam com conteúdos violentos na plataforma. Uma delas é a falta de medidas específicas contra as práticas de deadnaming (usar o nome de registro de uma pessoa trans) e misgendering (identificar uma pessoa trans pelo gênero oposto).Em 2021, um relatório da organização Media Matters for America apontou limitações nas ações do YouTube para proteger pessoas trans, permitindo, por exemplo, que vídeos e comentários transfóbicos continuem online.

Metodologia
Foram monitorados os vídeos de seis debates entre candidatas e candidatos a prefeituras de capitais brasileiras promovidos na TV Band, transmitidos pelo YouTube. Entre os dias 8 de agosto, quando aconteceu o confronto, e o dia 21 de agosto, coletamos 154.754 comentários feitos na transmissão ao vivo e nos comentários fixos do YouTube. A partir de um léxico composto de palavras potencialmente ofensivas, misóginas, sexistas, racistas, lesbo, trans e homofóbicas, coletamos 10.521 comentários neste mesmo intervalo, que passaram por um olhar humano e contextualizado para selecionar o que de fato eram ataques e insultos. Excluindo linhas repetidas desta amostra inicial, além de alguns termos que geraram altas taxas de falsos positivos, fizemos uma análise qualitativa de 4.759 comentários. Todos foram lidos individualmente por um grupo de 6 analistas, a fim de identificar se o conteúdo era ou não um ataque, ou insulto direcionado a candidatas, candidatos, jornalistas, políticos que não são candidatos, veículos de mídia, grupos políticos ou eleitores. Realizamos análises quantitativas após a codificação manual. As porcentagens apresentadas na matéria podem se referir ao total de comentários analisados ou ao total de ofensas identificadas, o que será sempre descrito ao longo do texto e infográficos.

*Gabi Coelho é jornalista, empreendedora, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e conselheira da Inova.aê

**Colaboraram nessa reportagem Ana Carol Branco e Sofia Schurig

Revista AzMina

Revista AzMina: Tecnologia e informação contra o machismo e pela igualdade de gênero, com recortes de raça e classe. Jornalismo independente para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres cis e trans, homens trans e pessoas não-binárias

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