As mulheres brasileiras diante de um desafio histórico

Apesar de conquistarem espaço no mercado de trabalho, elas pagaram o maior preço pelos custos da crise econômica

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 5ODS 8 • Publicada em 7 de março de 2019 - 08:00 • Atualizada em 6 de abril de 2020 - 13:05

Mulheres realizam um protesto contra a violência, exploração e sexismo marcando o Dia Internacional da Mulher em São Paulo (Foto: Nelson Antoine/AGIF/AFP)

Mulheres realizam um protesto contra a violência, exploração e sexismo marcando o Dia Internacional da Mulher em São Paulo (Foto: Nelson Antoine/AGIF/AFP)

Apesar de conquistarem espaço no mercado de trabalho, elas pagaram o maior preço pelos custos da crise econômica

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 5ODS 8 • Publicada em 7 de março de 2019 - 08:00 • Atualizada em 6 de abril de 2020 - 13:05

Mulheres realizam um protesto contra a violencia, exploracao e sexismo marcando o Dia Internacional da Mulher em São Paulo (Foto: Nelson Antoine/AGIF/AFP)
Mulheres realizam um protesto contra a violência, exploração e sexismo em São Paulo (Foto: Nelson Antoine/AGIF/AFP)

As mulheres brasileiras sempre foram tratadas como cidadãs de segunda classe, mas nunca deixaram de lutar e, com esforço, obtiveram inúmeras conquistas ao longo do século XX. Destaca-se três vitórias fundamentais que ocorreram em três grandes áreas da sociedade: na saúde, na educação e no mercado de trabalho.

LEIA MAIS: Confira todas as reportagens do especial “Feminismo na Prática”

Até o ano de 1940, o Brasil tinha mais homens do que mulheres na distribuição por sexo da população, pois existia maior imigração masculina, e a mortalidade materna ceifava a vida de milhões de grávidas. Com as transições epidemiológica e demográfica, ambos os sexos tiveram ganhos significativos na esperança de vida, mas os femininos foram exponenciais, o que possibilitou que as mulheres, atualmente, correspondam a 51% da população, 52,5% do eleitorado e vivam sete anos, em média, a mais do que os homens.  

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Na educação, as conquistas foram ainda mais impactantes, pois as mulheres brasileiras, praticamente, não tinham acesso à escola, antes do esforço pioneiro de Nísia Floresta (1810-1885) para criar oportunidades educacionais ao sexo feminino. As mulheres avançaram no Ensino Fundamental, no decorrer do século XX, mas permaneceram uma pequena minoria nos cursos universitários até o início da década de 1960. Contudo, o quadro educacional mudou radicalmente nos últimos 50 anos, e as brasileiras ultrapassaram os brasileiros em todos os níveis educacionais, inclusive no mestrado e no doutorado. Mais de 60% dos estudantes de Ensino Superior no Brasil, atualmente, são mulheres. Hoje, o hiato de gênero (“gender gap”) é favorável às mulheres e se amplia à favor do sexo feminino.

No mercado de trabalho, as conquistas femininas foram parciais, pois os homens continuam apresentando maiores taxas de atividade e se beneficiam da segregação ocupacional e da discriminação salarial. Mas as diferenças de gênero foram reduzidas de forma substancial, embora em ritmo inferior ao que seria desejável para se obter a paridade nas taxas de participação e a equidade nas condições de trabalho. Muito ainda precisa ser feito para se conseguir igualdade de oportunidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Mas as conquistas obtidas entre 1950 e 2010 foram extremamente relevantes e estavam no rumo correto para reduzir as desigualdades e para se atingir a convergência de relações de gênero mais equitativas.

Feministas promovem protestam na Avenida Paulista no Dia das Mulheres do ano passado (Foto: Fábio Vieira / FotoRua / AFP)

A marginalização feminina no mercado de trabalho em função do desenvolvimento urbano-industrial não ocorreu no país, pelo menos até 2010. Na prática, felizmente, não houve a confirmação da hipótese de exclusão das mulheres dos empregos urbanos, abordagem sistematizada pela socióloga e feminista Heleieth Saffioti, no livro “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”. Nas palavras da autora, o objetivo do livro era: “Apreender os mecanismos típicos através dos quais o fator sexo opera na sociedade de classes de modo a alijar da estrutura ocupacional grandes contingentes de elementos do sexo feminino”.

Ao contrário, com as transformações econômicas, sociais e demográficas ocorridas na segunda metade do século XX, juntamente com a maior escolaridade feminina, houve uma entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho. Isso possibilitou que, cerca de vinte anos após a publicação do livro de Saffioti, outra socióloga e feminista, Cristina Bruschini, no texto “O trabalho da mulher brasileira nas décadas recentes”, fizesse uma constatação oposta àquela da tese da exclusão feminina do mercado de trabalho na sociedade de classes:

“O crescimento da participação feminina no mercado de trabalho brasileiro foi uma das mais marcantes transformações sociais ocorridas no país desde os anos 1970. Fartamente documentada pelos estudos sobre o tema e apoiada em dados, a presença das mulheres no mercado de trabalho brasileiro, sobretudo o urbano, vem sendo cada vez mais intensa e diversificada e não mostra nenhuma tendência a retroceder, apesar das sucessivas crises econômicas que têm assolado o país a partir dos anos 80”.

Bruschini tinha razão, pois o Brasil seguiu mais a linha da China – que tem taxas recordes de participação feminina no mercado de trabalho urbano – do que a linha da Índia – que tem taxas de participação feminina no mercado urbano menores do que no rural. Durante décadas, grande parte das mulheres brasileiras foram conquistando, pouco a pouco, o direito ao trabalho. E o mais importante, elas foram as principais responsáveis pelo aproveitamento da janela de oportunidade demográfica no Brasil e, portanto, pelo crescimento econômico e pela melhoria das condições de vida de toda a população.

O bônus demográfico feminino 

Toda nação rica e com alto nível de desenvolvimento humano passou por um mudança na estrutura etária e aproveitou o bônus demográfico, isto é, quando o percentual de pessoas em idade ativa é muito maior do que o percentual de pessoas dependentes (crianças e idosos). O bônus demográfico no Brasil começou em 1970 e deve se encerrar na década de 2030. Uma forma de medir o bônus é analisar a relação entre a população ocupada (PO) e a população total. Nota-se, no gráfico abaixo, que esta relação estava em torno de 32% (quase um terço da população estava ocupada) entre 1950 e 1970, sendo que o percentual de homens ocupados estava caindo e o percentual de mulheres estava subindo ligeiramente. Entre 1970 e 2010, o país colheu os frutos do bônus demográfico, pois, juntamente com o avanço na educação, o percentual da população ocupada passou de 32% para 45,3%. Antes de 1970, cada pessoa que trabalhava tinha de sustentar outras duas (a relação era de 1 para 3). Em 2010, a relação ficou quase 1 para 1, significando um aumento da renda per capita pelo fato de haver uma maior proporção de pessoas trabalhando efetivamente.

Info

Isto quer dizer que, uma maior proporção de pessoas foram incorporadas ao mercado de trabalho, sendo, no geral, pessoas com maior qualificação. O Produto Interno Bruto (PIB) de qualquer país é formado, exatamente, pela multiplicação do número de trabalhadores pela produtividade do trabalho. Assim, indubitavelmente, o Brasil aproveitou “parte” da sua janela de oportunidade demográfica. Considera-se “parte”, porque os ganhos seriam maiores se o percentual de trabalhadores fosse mais elevado e se a produtividade dos fatores de produção fosse maior.

O fato é que o Brasil obteve ganhos em decorrência das condições demográficas favoráveis e, cabe destacar, estes ganhos vieram principalmente da parcela feminina da sociedade. Como mostra o gráfico abaixo, o percentual de homens ocupados ficou estagnado (em torno de 26%) entre 1970 e 2010, enquanto o percentual de mulheres ocupadas passou de 6,6% para 19,2%.  A economia brasileira avançou, neste período, graças ao maior número de mulheres no mercado de trabalho e ao fato de serem mulheres com maiores níveis educacionais.

O gráfico acima também mostra que o Brasil poderá aproveitar os últimos momentos do bônus demográfico se houver um crescimento inequívoco do mercado de trabalho. As linhas pontilhadas são uma projeção até 2040 e mostram que o percentual de pessoas ocupada poderia ser de 48% em 2020, 50% em 2030 e 51% em 2040. Esses percentuais são perfeitamente possíveis, como mostram os exemplos da Coreia do Sul e da China que chegaram a ter percentagens ainda maiores.

Na projeção, nota-se que o percentual de homens (em relação à população total) ficaria em torno da sua participação histórica, algo próximo de 26 ou 27%. Já as mulheres teriam os percentuais elevados de 19,2%, em 2010, para 23,5% em 2040, seguindo a tendência histórica de crescimento da força de trabalho feminina, ao mesmo tempo em que os diferenciais de gênero na taxa de participação seriam reduzidos. Esse seria o cenário ideal para o Brasil manter a economia crescendo, com aumento da renda, com inclusão social e com maior igualdade nas taxas de atividade entre homens e mulheres. Lembrando que a autonomia financeira propiciada por uma carreira própria é uma condição essencial para o empoderamento das mulheres, para relações pessoais e sociais mais justas e até para a redução da violência e do feminicídio.

O atual desperdício do potencial produtivo das mulheres

Mas fazendo uma analogia com a  música, “Você não ouviu” de Chico Buarque: “As rosas vão murchando e o que era doce acabou-se”. A afirmação otimista de Bruschini – “a presença das mulheres no mercado de trabalho brasileiro, sobretudo o urbano, vem sendo cada vez mais intensa e diversificada e não mostra nenhuma tendência a retroceder” – deixou de ser realidade após o início da mais profunda e mais longa crise econômica da história da República no Brasil. A economia brasileira teve três anos de recessão (2014 a 2016) e dois anos de lenta recuperação (2017 e 2018). O resultado foi uma profunda retração do mercado de trabalho, nos fazendo recordar que o pessimismo da exclusão feminina, indicado por Saffioti, ainda continua pairando sobre a sociedade brasileira.

O fato é que o tempo de crescimento contínuo das taxas de atividade das mulheres ficou para trás. Como mostram os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do IBGE, a taxa de ocupação feminina (população feminina ocupada sobre população total) que chegou a 19,5% em 2014, caiu para 18,9% durante a recessão e teve uma leve recuperação para 19,1% em 2018 (dados do segundo trimestre do ano). A taxa de ocupação masculina também caiu e passou de 26,1% em 2014 para 24,6% em 2018. Desta forma, a taxa de ocupação para ambos os sexos caiu de 45,6% em 2014 para 43,8% em 2018, conforme mostra o gráfico acima.

Protesto em São Paulo, em agosto do ano passado (Foto: Dario Oliveira/NurPhoto / AFP)

Ou seja, para o Brasil colher os frutos do bônus demográfico, a taxa de ocupação total deveria estar próxima de 48%, mas estacionou mais de quatro pontos percentuais abaixo desta meta. Pode parecer pouco, mas isto significa milhões de empregos que evaporaram com a crise econômica. Por exemplo, logo depois das eleições presidenciais de outubro de 2014, o mercado de trabalho formal teve uma queda de 555 mil empregos em dezembro de 2014, continuou caindo forte em 2015 e 2016, teve uma ligeira queda em 2017 e uma pequena recuperação em 2018. Mas considerando todo o período entre dezembro de 2014 e dezembro de 2018, a redução foi de 3,1 milhões de vagas do mercado de trabalho formal, em 49 meses, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), do Ministério do Trabalho.

Segundo o IBGE, a taxa composta de subutilização da força de trabalho (que inclui a taxa de desocupação, a taxa de subocupação por insuficiência de horas e a taxa da força de trabalho potencial, pessoas que não estão em busca de emprego, mas que estariam disponíveis para trabalhar) estava em 14,9% em 2014 e passou para 23,9%, no quarto trimestre de 2018, o que representa 27 milhões de pessoas sem condições adequadas de sustento, um número nada desprezível para um país com tantos problemas sociais e que precisa gerar renda para sustentar as pessoas, as famílias, a iniciativa privada e o governo (especialmente a previdência social).

[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

A não inserção dos jovens e das mulheres no processo produtivo, via pleno emprego e trabalho decente, compromete o próprio futuro nacional

[/g1_quote]

Confirmando os problemas acima, a PNADC também aponta a diminuição do emprego formal e o aumento do emprego informal (ou precário e sem proteção social). O número de pessoas com carteira de trabalho assinada (no setor privado e no trabalho doméstico) que estava em 38,5 milhões em 2014, caiu para 34,8 milhões em 2018. No mesmo período, o emprego informal (trabalhadores sem carteira no setor privado, no trabalho doméstico e mais os conta própria) subiu de 35,7 milhões em 2012, para 38,9 milhões em 2018.

Isto mostra que, depois da mais profunda e mais longa crise econômica da República, o mercado de trabalho ainda não recuperou o nível de ocupação formal pré-recessão e a lenta criação de emprego, dos últimos dois anos, basicamente, ocorreu no mercado informal. E são os jovens e as mulheres que mais sofrem as consequências do desemprego e da informalidade do mercado de trabalho.

O Brasil não será uma sociedade próspera e com igualdade de oportunidades para todos se a juventude e as mulheres continuarem pagando o maior preço pelos custos da crise econômica. Não se trata apenas de discriminação por idade (“idadismo”) e discriminação por sexo (“sexismo”). A não inserção dos jovens e das mulheres no processo produtivo, via pleno emprego e trabalho decente, compromete o próprio futuro nacional. O trabalho produtivo é a base da riqueza das nações, e a criação de emprego deveria ser a prioridade número um, pois a falta de oportunidade de trabalho é o direito humano mais desrespeitado atualmente no país. Sem trabalho para todos, os demais direitos ficam comprometidos, a economia não melhora e a qualidade de vida tende a cair para toda a população, aumentando, em todos os seus aspectos, a anomia social.

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Um comentário em “As mulheres brasileiras diante de um desafio histórico

  1. Pingback: O bem-estar não é amigo das mulheres: é uma distração das aflições femininas – #Colabora – Space Tuga

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile