A queniana Lydia: sua voz é o seu poder

Livro infantil Pendo's Power e liderança comunitária inspiram coragem, proteção e empoderamento de milhares de crianças e jovens contra abusos sexuais

Por Camila Batista | ODS 16ODS 5
Publicada em 15 de dezembro de 2025 - 10:04  -  Atualizada em 15 de dezembro de 2025 - 11:15
Tempo de leitura: 14 min

A queniana Lydia, com seu livro Pendo’s Power, e a filha Amira: empoderamento de crianças e adolescentes contra abusos sexuais (Foto: Arquivo Pessoal)

Imagine caminhar por vielas estreitas, entre telhados de metal, vendedores chamando pelo nome, crianças correndo. Entramos em Kibera, uma das maiores favelas da África, um lugar onde cada centímetro pulsa vida, comunidade e também contradição.

O cenário ao redor revela muito sobre o país que abriga Kibera. O Quênia está localizado na África Oriental, fazendo fronteira com a Tanzânia, Uganda, Sudão do Sul, Etiópia e Somália. Em Nairobi, capital do Quênia, arranha-céus convivem com o icônico Parque Nacional da cidade, um santuário urbano onde girafas e rinocerontes circulam a poucos quilômetros de grandes centros comerciais. 

É uma cidade que pulsa modernidade e diversidade, refletindo o ritmo do próprio país, um mosaico cultural formado por mais de 40 grupos étnicos. Embora o inglês e o swahili sejam línguas oficiais, dezenas de línguas locais mantêm viva a tradição oral e o senso de comunidade, uma riqueza que se manifesta em músicas, artes e modos de viver. 

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Kibera, um grande assentamento informal nos arredores de Nairobi, é considerada a maior comunidade de baixa renda do país e a segunda maior da África, com mais de 1 milhão de habitantes.

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É nesse território – intenso, vibrante e também desafiador – que começa a história de Lydia Matioli, a quem tenho a alegria de chamar de rafiki (amiga, em swahili).

Lydia, hoje com 31 anos, é a quarta filha de uma família de oito crianças, cinco meninos e três meninas, criada em um ambiente onde o senso de coletividade é tão presente quanto as desigualdades que atravessam o cotidiano. Em Kibera, quase tudo é compartilhado: água, comida, brincadeiras, medos. Mas nem tudo é repartido e distribuído de forma justa. E Lydia percebeu isso muito cedo.

É fundamental desconstruir o tabu de falar sobre o corpo e consentimento. As crianças, meninas e meninos, precisam saber que podem dizer não, que são donas do próprio corpo, e que expressar o que sentem é o primeiro passo para se proteger

Lydia Matioli
Ativista e escritora queniana

Na cultura estrutural ao seu redor, os meninos eram vistos como os “herdeiros naturais do futuro”. Aos seus cinco irmãos, incentivava-se o estudo, o trabalho e até a abertura de pequenos negócios. Para as três meninas, porém, muitas oportunidades simplesmente não chegavam. Havia sempre a ideia de que, um dia, elas se casariam e “pertenceriam a outra família”. Assim, a prioridade e o investimento não recaíam sobre elas. Essas negações costumam ser sutis, especialmente quando diluídas na rotina diária, mas carregam um peso imenso, capaz de limitar destinos individuais e, no longo prazo, condenar comunidades inteiras.

“Eu precisei aprender a advogar por mim mesma desde muito cedo”, conta Lydia. Foi essa necessidade e a sensação constante de portas fechadas para ela que moldou uma coragem teimosa. 

Lydia Matioli em Kibera, favela onde nasceu e cresceu nos arredores de Nairobi, capital do Quênia: no país, uma em cada seis meninas sofreu violência sexual na infância, de acordo com o Unicef (Foto: Arquivo Pessoal)
Lydia Matioli em Kibera, favela onde nasceu e cresceu nos arredores de Nairobi, capital do Quênia: no país, uma em cada seis meninas sofreu violência sexual na infância, de acordo com o Unicef (Foto: Arquivo Pessoal)

Ela me contou com humor que teve “sorte”, porque os meninos da casa não gostavam de estudar. Faltavam às aulas, desanimavam rápido. As meninas, ao contrário, permaneciam. E foi assim que, desde cedo, elas passaram a se destacar, quase sempre com os melhores desempenhos na escola primária. Era o futuro que Lydia construía por dentro, no seu próprio ritmo,  ignorando as regras e privilégios que cercavam os outros.

No entanto, em contextos como o de Lydia, crescer não traz apenas limitações silenciosas, mas também riscos concretos. No Quênia, a violência de gênero assume formas múltiplas e devastadoras.

Uma em cada seis meninas sofreu violência sexual na infância, e 62,6% delas vivenciaram esses abusos mais de uma vez antes dos 18 anos, de acordo com a Unicef.

Essa realidade cruel se soma a tabus profundos. 

“Eu tinha 5 anos. Sabia que algo estava errado, mas não sabia fazer perguntas”.

Silêncio, medo, vergonha: sentimentos grandes demais para caber em qualquer pessoa, sobretudo em crianças tão pequenas. 

Cinco ou seis anos mais tarde, ao aprender na escola os nomes das partes do corpo, as memórias começaram a se conectar. 

Na adolescência, a dor ressurgiu quando sua melhor amiga foi vítima de estupro. O pai da amiga não acreditou e esse descrédito, tão comum quanto devastador, despertou em Lydia o desejo de ação imediata. 

Ela passou a se engajar em trabalhos voluntários na comunidade, especialmente em projetos ligados à proteção de meninas e educação sexual. Foi assim que conheceu a organização Freely in Hope, uma organização sem fins lucrativos que oferecia bolsas de estudo para sobreviventes de abuso.

Lydia recebeu a bolsa para estudar na Egerton University e se dedicou intensamente aos estudos. No segundo ano, disse à coordenação que acompanhava de perto seu desempenho: “Não quero apenas estudar. Quero fazer parte da solução. Quero ajudar outras meninas com histórias parecidas com a minha”.

Lydia ao entrar na organização Freely in Hope em 2015: de estagiária a dirigente na área de prevenção ao abuso sexual da organização (Foto: Arquivo Pessoal)
Lydia ao entrar na organização Freely in Hope aos 21 anos: de estagiária a dirigente na área de prevenção ao abuso sexual da organização (Foto: Arquivo Pessoal – 2015)

Foi assim que iniciou como estagiária na área de prevenção ao abuso sexual da organização. Criou um programa para escolas de ensino médio sobre consentimento, abordando jovens em temas relacionados à construção de relações saudáveis. O programa cresceu, e com ele aumentou o número de sobreviventes que buscavam apoio da organização. Segundo Lydia, 90% dos casos envolviam abusos ocorridos antes dos 18 anos.

O cotidiano e os riscos enfrentados pelas crianças em Nairobi me lembravam histórias como a de Meri, protagonista de Fanta Groselha (Fanta Blackcurrant), conto da escritora queniana Makena Onjerika, vencedor do Prêmio Caine de Literatura Africana em 2018, que recomendo muito. 

Meri, uma garota das ruas, sonha com pequenas doçuras em meio à pobreza e à luta diária pela sobrevivência. Sua história ressoa com parte da realidade que Lydia me relatou encontrar em seu trabalho cotidiano. Assim como Onjerika captura a vida à margem com uma voz única e direta, Lydia coloca quem está à margem como protagonista, transformando silêncio em expressão e impotência em mobilização.

Os anos se passaram, e seu envolvimento e paixão pelo trabalho comunitário, junto a jovens e crianças, só se fortaleceram. Logo após ingressar no programa de bolsas de estudo, Lydia começou terapia e encontrou, finalmente, um espaço seguro para processar seu trauma, compreender como ele afetava seus estudos, sua autoestima e sua maneira de ocupar o mundo.

Foi nesse período que Lydia viveu mais um marco em sua trajetória: ao revisitar o passado e conversar com pessoas do seu bairro, Lydia descobriu que não era a única a carregar memórias difíceis relacionadas àquele homem. 

Em uma dessas conversas, ao comentarem sobre a falta de provas jurídicas para uma denúncia formal, uma vizinha disse: “Não importa. Vou procurá-lo e dizer que eu sei. Ele precisa saber que você não está sozinha”.

Após essa iniciativa da vizinha, Lydia descobriu que ele havia se mudado, e sentiu um grande alívio ao caminhar pelo bairro sem o constrangimento e medo de cruzá-lo na rua. Foi a primeira vez que alguém, fora da estrutura da organização que a acolheu, celebrou sua coragem em vez de questioná-la. Essa confiança, somada à percepção de que havia outras pessoas dispostas a apoiá-la, tornou-se combustível para sua luta.

Todas essas experiências pavimentaram seu caminho para a liderança, fortalecendo sua determinação em proteger e empoderar crianças e jovens.

Dois anos depois, Lydia tornou-se oficialmente parte da equipe da Freely in Hope, deixando de ser estagiária e assumindo o cargo de Oficial de Prevenção ao Abuso Sexual. Para ela, o título representava uma grande responsabilidade: todos os dias, acompanhava sobreviventes e sabia que seu trabalho era fundamental não apenas para prevenir novos abusos, mas também para apoiar jovens a lidarem com experiências de violência e a compreenderem e construírem futuras relações de confiança e respeito.

Naturalmente, Lydia considerava esse trabalho importante, principalmente diante das estatísticas do Quênia, onde 40% das mulheres relatam ter sofrido violência emocional, física ou psicológica por parte de um parceiro íntimo, e 34% das mulheres entre 15 e 49 anos já sofreram violência física.

No entanto, ela sentia que ainda faltavam ferramentas para apoiar crianças mais novas e sabia, pela própria experiência, que o empoderamento e a proteção deveriam começar o quanto antes.

O livro tem sido distribuído amplamente, mas também precisamos de mais ferramentas educativas e acompanhamento contínuo das crianças. Enfrentar temas difíceis, como a violência sexual, é urgente, porque uma vez que acontece, não se apaga

Lydia Matioli
Ativista e escritora queniana

Quando engravidou de sua filha, Amira, muitas memórias voltaram, trazendo uma inquietação constante: o que poderia fazer para garantir que sua filha não passasse pelas mesmas experiências? Como mãe, mesmo presente, e como mulher inserida no mercado de trabalho, Lydia sabia que não estaria 100% do tempo ao lado da filha para protegê-la. Então, a pergunta que a movia era: o que poderia ensinar a Amira para que ela mesma tivesse alguma autonomia e poder.

Foi dessa reflexão, junto à organização, que nasceu o livro Pendo’s Power, escrito por Lydia para crianças a partir de 4 anos: um guia sensível, ilustrado e corajoso, que ajuda a criança a conhecer o próprio corpo, compreender que ele é seu e identificar situações de abuso. Ao final, inclui um material completo para pais, cuidadores e professores, orientando conversas sobre proteção, sentimentos e vínculos seguros, para que a mensagem de empoderamento alcance todos os espaços possíveis.

“É fundamental desconstruir o tabu de falar sobre o corpo e consentimento. As crianças, meninas e meninos, precisam saber que podem dizer não, que são donas do próprio corpo, e que expressar o que sentem é o primeiro passo para se proteger”, afirma Lydia. “As famílias e educadores também precisam aprender a lidar com o tema: acolher a criança, respeitar seu poder de se manifestar e oferecer espaço para que cada um fale. Se não abrirmos esse caminho de comunicação, o silêncio continuará fazendo as pessoas sofrerem sozinhas e não impedirá que novos casos aconteçam”, acrescenta.

Lydia apresenta o livro Pendo's Power a crianças nos Estados Unidos: guia sensível para ajudar a criança a conhecer o próprio corpo, compreender que ele é seu e identificar situações de abuso (Foto: Freely in Hope)
Lydia apresenta o livro Pendo’s Power a crianças nos Estados Unidos: guia sensível para ajudar a criança a conhecer o próprio corpo, compreender que ele é seu e identificar situações de abuso (Foto: Freely in Hope)

Uma das escritoras quenianas que admiro é Grace Ogot, uma das primeiras mulheres do Quênia a publicar obras em inglês. Seus personagens femininos em The Rain Came (A Chuva Chegou) e The Empty Basket (A Cesta Vazia) são mulheres africanas corajosas, destemidas e responsáveis. Ao retratar figuras femininas fortes, Ogot desafiava o estereótipo da mulher tímida e frágil, abrindo caminhos para imaginar um mundo em que meninas e mulheres pudessem ocupar seu espaço sem limitações impostas pelo patriarcado.

Lydia, em Kibera, é um exemplo vivo dessa coragem. Mudanças estruturais muitas vezes surgem do ativismo cotidiano, de ações criadas por quem vive e compreende o território. A linguagem também é essencial para que a mensagem alcance cada público, de forma adaptada à faixa etária. Com seu livro, Lydia expandiu sua voz, delicada e cativante como sempre.

O lançamento no Quênia foi um marco. Escolas, centros comunitários e lares receberam sua mensagem direta e poderosa: a voz é um superpoder.  

“O livro tem sido distribuído amplamente, mas também precisamos de mais ferramentas educativas e acompanhamento contínuo das crianças. Enfrentar temas difíceis, como a violência sexual, é urgente, porque uma vez que acontece, não se apaga.”

Com o reconhecimento de que este é um desafio global, Lydia também foi convidada a lançar o livro nos Estados Unidos, visitando escolas, bibliotecas e espaços culturais. 

O livro Pendo’s Power, cujo título significa “o poder do coração” (“pendo” quer dizer amor em swahili) – narra a história de uma criança aprendendo a empoderar-se através da própria voz. O título destaca o poder de Pendo, a protagonista, de se expressar abertamente. A personagem é inspirada em sua filha, Amira, e reflete o amor e a determinação de Lydia de criar um mundo em que cada criança possa falar, sentir e existir plenamente.

Hoje, Lydia segue firme em seu trabalho cotidiano, implementando programas de conscientização e prevenção, além de atividades de fortalecimento emocional e oportunidades educacionais com sobreviventes. Ela enxerga seu livro como uma ferramenta poderosa, acessível a diferentes idades, gêneros e contextos sociais, capaz de abrir diálogos, romper silêncios e formar novas gerações mais conscientes. Lydia defende, com urgência, que mais meninos e homens participem dessa conversa, porque a verdadeira mudança cultural só será possível quando todos fizerem parte da solução.

Lydia transforma sua história em cura, prevenção e política pública. Ela carrega sua voz e impulsiona a de tantas outras. Para mim, ela carrega o futuro. Cada passo seu constrói um amanhã novo para Amira e para milhares de crianças que, como ela, merecem saber:

      • O corpo é seu.

      • Os sentimentos são seus.

      • E a sua voz é o seu poder.

Camila Batista

Camila Batista Pinto, advogada e ativista pelos direitos das mulheres, é uma empreendedora social brasileira e COO da Migraflix, organização que promove a inclusão social e econômica de migrantes e refugiados na América Latina por meio do empreendedorismo; também preside o Conselho Consultivo da Migration Youth and Children Platform (MYCP), plataforma global oficial de participação juvenil em processos intergovernamentais e no sistema das Nações Unidas, e é conselheira da organização Palhaços Sem Fronteiras Brasil

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