Prostituta, travesti e idosa: a história e as vitórias de Sissy Kelly

“O que me move é ter conseguido viver. Eu sou uma vitoriosa”, celebra Sissy no seu aniversário de 65 anos. (Foto: Yuri Alves Fernandes)

“Meu sonho é que as pessoas não me esqueçam”. Episódio especial da websérie “LGBT+60”, de Yuri Alves Fernandes, mostra a trajetória da ativista social no dia da celebração de seus 65 anos.

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 16ODS 5 • Publicada em 28 de outubro de 2023 - 12:31 • Atualizada em 24 de novembro de 2023 - 22:07

“O que me move é ter conseguido viver. Eu sou uma vitoriosa”, celebra Sissy no seu aniversário de 65 anos. (Foto: Yuri Alves Fernandes)

A história de Sônia Sissy Kelly pode ser semelhante a de outras travestis que precisaram encontrar nas ruas a sobrevivência. Assim como muitas, ela sentiu na pele toda a carga da intolerância e da consequente violação de direitos por sua identidade. Mas sua trajetória é única e revela marcas próprias. Contrariando estatísticas e seus algozes, conseguiu envelhecer – algo que para muitas de sua época seria um privilégio. Em seu aniversário de 65 anos, Sissy recebeu o #Colabora para a gravação do episódio especial de “LGBT+60: Corpos que Resistem” – websérie do jornalista e roteirista Yuri Alves Fernandes. O que mais chama atenção em Sissy é que ela transformou todos os obstáculos da vida em bandeiras.

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“O que me move é ter conseguido viver. Eu sou uma vitoriosa. Eu passei pela prostituição, passei pelo HIV/Aids, pela hepatite viral. Eu passei por situação de rua, pelo uso de álcool e outras drogas e venci essas barreiras e estou aqui hoje”, disse na entrevista feita um dia após a comemoração, em abril do ano passado. O vídeo só ficou disponível agora e você pode conferir completo abaixo. 

“Eu nasci no corpo certo, errado é o preconceito”

Mineira de Aimorés, Sissy cresceu em uma pequena comunidade de agricultores familiares com mais 13 irmãos. “Sou uma bicha do mato”, brinca. Nasceu em 1957 e já na infância percebia uma diferença em relação aos outros meninos. Um período sem amigos, já que não se sentia pertencente a nenhum grupo. “Eu não nasci num corpo errado, eu nasci no corpo certo, errado é o preconceito”, afirma. Estudou pouco, pois precisou ajudar com o sustento da família. 

A transição começou após sair de casa, aos 17 anos – ainda sem ter plena consciência do que estava acontecendo com seu corpo e sua mente. Mudou-se para Vitória (ES) onde começou a atuar como trabalhadora sexual. Mais tarde, foi convidada para trabalhar na Europa. De lá, vem as memórias mais prazerosas. 

O que me move é ter conseguido viver. Eu sou uma vitoriosa […] Venci essas barreiras e estou aqui hoje.

Sissy Kelly
Ativista pelos direitos humanos

Mas antes, no Brasil, de todas as lembranças negativas, tem a que mais gostaria de esquecer. Enquanto o país vivia e resistia à ditadura militar, Sissy foi internada no Hospital Galba Velloso, instituição para pacientes psiquiátricos em Belo Horizonte. Lá recebeu tratamento com eletroconvulsoterapia ou eletrochoque. A primeira vez ainda era adolescente. Mais tarde, outras internações por se manifestar fora do padrão heterocisnormativo. Além do Galba Velloso, também foi parar no Instituto Pinel, no Rio. “Por pouco não fui parar em Barbacena”, diz se referindo ao Hospital Colônia de Barbacena, considerado o Holocausto Brasileiro. 

“Isso foi uma das piores coisas que aconteceram na minha vida. Mas eu aprendi muita coisa ali, naquele submundo de pessoas doentes ou abandonadas por suas famílias por terem comportamentos diferentes”. 

“O HIV não foi meu inimigo”

Entre o final dos anos 80 e início dos anos 90, já na Europa, Sissy passou a viver com HIV. Voltou para o Brasil e não só enfrentou a condição, garantindo seu direito aos medicamentos antirretrovirais, como fez dela mais uma bandeira: se filiou à Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids. Faz questão de trazer a temática sob a perspectiva da narrativa da vida e não da sentença de morte – ideia que ainda se perpetua até hoje. 

A história e as vitórias de Sissy Kelly, travesti sexagenária que enfrentou a ditadura, a prostituição, o HIV e as ruas
“Que as pessoas não me esqueçam e nem o que eu fiz pelo movimento LGBTQIA+”. (Foto: Yuri Alves Fernandes)

“O HIV me salvou, me resgatou do fundo do poço, me ensinou a gostar e a cuidar mais de mim. A amar a vida e saborear as coisas em seus mínimos detalhes. O HIV não foi meu inimigo, é o meu amigo. É possível envelhecer e ter uma vida normal. O que não é possível é conviver com a sorofobia”. 

Para ser “aceita” no seio familiar, passou adotar um estilo andrógino, voltando para o “armário”. Mas logo reassumiu a identidade feminina. Desamparada pela família, Sissy fez uma longa jornada morando em diversas casas de apoio, de diferentes cidades brasileiras, após o ano de 1994. “Fui acolhida em albergues masculinos geridos por lideranças religiosas que não aceitavam minha identidade de gênero. Tinha que dormir junto com homens”, relembra. Também já viveu em situação de rua. 

Retornou para Belo Horizonte em 2013, quando começou sua luta junto à população em situação de rua pelo direito à moradia e os direitos da população LGBT+. Em 2018, conheceu a Ocupação Carolina Maria de Jesus, em Belo Horizonte – endereço de um antigo hotel. Morou no espaço por mais de quatro anos. Foi no salão da Ocupação onde comemorou os seus 65 anos em um ato político, como ela gosta de frisar. Recebeu vizinhos, amigos e alguns parentes – com quem voltou a se aproximar. Além do bolo, parabéns e salgadinhos, uma roda de conversa sobre resistência. Todos os presentes, cerca de vinte pessoas, tiveram um momento para falar da importância da Sissy no enfrentamento de diferentes lutas sociais. Lutas que são para o presente e para o futuro.  

“É um valor inestimável estar celebrando os 60 anos, apesar de não termos políticas públicas e sociais de acolhimento para pessoas trans e idosas. Eu não quero que minhas amigas que estão chegando aí venham a ter os mesmos problemas que eu estou tendo de envelhecer extremamente esquecida pelas políticas.”

A história de Sônia Sissy Kelly é contada no episódio especial da websérie “LGBT+60”. (Foto: Yuri Alves Fernandes)

“Acho que nasci para ser só”

O esquecimento também é sentido nas ausências físicas. Sissy diz ser acompanhada pela solidão. No aniversário, esperava mais pessoas. “Eu sou realmente muito só. Não foi a pandemia e nem a Ocupação que me deixaram só. Já sou só desde sempre, desde criança. Acho que já nasci para ser só. Mas eu tenho a mim, meus amigos, Deus e meus Orixás”, pontua ela, que segue a doutrina espírita. 

Não foi a pandemia e nem a Ocupação que me deixaram só. Já sou só desde sempre, desde criança. Acho que já nasci para ser só. Mas eu tenho a mim, meus amigos, Deus e meus Orixás.

Sissy Kelly
Ativista pelos direitos humanos

Apesar de todas as adversidades em mais de seis décadas de vida, Sissy relembra com um sorriso no rosto os motivos que a fizeram e ainda a fazem celebrar. Faz questão de deixar cair por terra o imaginário coletivo de que a vida de pessoas trans ou de trabalhadoras sexuais é apenas sofrimento. Para ela, os momentos mais gratificantes estão nas coisas mais simples. 

“Contemplar o pôr do sol, o nascer do sol, as viagens, “ô” meu Deus! Que maravilha é viajar nacionalmente, internacionalmente…Comprar uma joia bonita, um perfume. Lembrar de que você teve no Corso Buenos Aires, em Milão. Que você passou dois verões em Rimini, na Itália, que você morou em Firenze, na Itália, que você morou em Madri e que você passou pela Alemanha, pela Suíça, que você viajou à Europa de carona, como mulher! Esses momentos ficam guardados em nossa memória”, conta ela que conseguiu se aposentar por invalidez e vive hoje com um salário mínimo + 25%.

“Que as pessoas não me esqueçam”

Ao ser perguntada sobre seus sonhos, Sissy sorri e diz já estar fazendo hora extra. Para ela, estar viva já é um feito alcançado. Muitas amigas trans não conseguiram o mesmo. Afirma ter medo do asilo, “mas fazer o quê?”, aceita como quem já estivesse prevendo o destino. Meses depois do aniversário, Sissy se mudou para a instituição de longa permanência Cidade Ozanam, na capital mineira. De lá, ela, agora aos 66, gravou um vídeo e postou nas redes sociais. Fez um pedido, como quem acaba de soprar as velas ou partir um bolo: “Que as pessoas não me esqueçam e nem o que eu fiz pelo movimento LGBTQIA+”.

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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