Em meia década, a média anual de assassinatos de quilombolas quase dobrou no Brasil. Mais de 30 integrantes de quilombos foram executados entre 2018 e 2022, de acordo com a segunda edição da pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, lançada nesta sexta-feira, dia 17, pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Terra de Direito. Por ano, em média, foram apuradas 6,4 mortes. Esse número é quase o dobro do registrado na primeira edição do estudo, que contabilizou 3,8 assassinatos anuais, de 2008 a 2017.
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O aumento dos assassinatos fica ainda mais evidente quando o número de mortes é analisado por ano. De acordo com a pesquisa, a maior quantidade de homicídios foi registrada em 2019 e 2021, com oito em cada ano. Por outro lado, quatro assassinatos aconteceram em 2018, ano com o menor número. Já na década analisada na 1ª edição, a maioria dos anos teve menos de quatro homicídios, com exceção de 2017 que somou 18 mortes.
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Veja o que já enviamosO Nordeste foi a região mais afetada, com 65,6% das mortes, especialmente no Maranhão, estado onde mais se matou quilombolas no período pesquisado. Foram nove assassinatos de integrantes de quilombos maranhenses. Na sequência, aparecem Bahia, Pará e Pernambuco, com quatro casos cada. Selma Dealdina, secretária executiva da Conaq, ressalta que “além de liderar o número de assassinatos de quilombolas, o Maranhão ocupa o primeiro lugar na lista de pessoas ameaçadas, ou seja, que correm o risco de serem assassinadas a qualquer momento. Basta lembrar o caso do seu Doka, que foi morto no final de outubro, em Itaipuaçu-Mirim (Maranhão) e a Dona Bernadete que foi assassinada na Bahia, em agosto”.
Na última quinta-feira (16), a Justiça da Bahia recebeu a denúncia encaminhada pelo Ministério Público do estado contra os cinco suspeitos de envolvimento no assassinato da Mãe Bernadete, a líder quilombola na região metropolitana de Salvador, em agosto. O MP da Bahia denunciou Arielson da Conceição Santos, Josevan Dionísio dos Santos, Marílio dos Santos, Sérgio Ferreira de Jesus e Ydney Carlos dos Santos de Jesus por homicídio qualificado motivado por motivo torpe.
Assassinada no dia 17 de agosto, na sede da associação quilombola, em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador, mãe Bernadete era coordenadora da Conaq e Yalorixá. Ela era mãe de Flávio Gabriel Pacífico dos Santos – o Binho do Quilombo –, outra liderança quilombola, assassinado em 2017 em uma situação de conflito e luta pelo território. Ainda que o assassinato de mãe Bernadete não esteja no período analisado na pesquisa, dados ainda parciais de 2023 revelam que 7 quilombolas foram mortos este ano.
Com relação às motivações dos assassinatos, a defesa do território é a principal causa identificada pelo estudo. Das 32 mortes, pelo menos 13 quilombolas tiveram suas vidas tiradas em meio a conflitos fundiários. Outro dado que chama a atenção é que 15 desses crimes foram contra lideranças reconhecidas pelas comunidades.
“A titulação integral dos territórios é garantia de segurança à vida dos quilombolas, uma vez que retira suas terras do mercado e aumenta a autonomia de gestão das áreas, e com isso diminui o assédio de grileiros e da especulação imobiliária. No entanto, para enfrentar a violência contra os quilombos é necessário também que os territórios quilombolas sejam locais de desenvolvimento de políticas públicas, como de prevenção à violência contra a mulher, de proteção a defensores e defensoras de direitos humanos, e outras políticas em que se reconhece as realidades específicas deste público”, avalia Kathleen Cristina, quilombola e assessora jurídica do Movimento Terra de Direitos.
O segundo maior motivo das mortes é a alta ocorrência de feminicídios. Em todos os casos, as mulheres quilombolas foram mortas pelos atuais ou pelos ex-cônjuges. Da mesma maneira que os dados gerais, o número de crimes de gênero que vitimaram integrantes de quilombos dobrou. Foram nove assassinatos registrados em cinco anos (2018 a 2022), na segunda edição, frente a oito (2008 a 2017), na segunda. “As lideranças locais, em sua maior parte, são exercidas por mulheres quilombolas. E, em razão da interseccionalidade, elas foram fatalmente atingidas pelos efeitos do machismo, que se demonstra de forma específica nessa violência. Por isso, as políticas de enfrentamento à violência de gênero quilombola não podem seguir um padrão generalizado”, explica Kathleen.
O estudo apontou ainda uma série de recomendações para acabar com a violência contra as comunidades quilombolas. Dentre elas, a pesquisa cita o fortalecimento da política de regularização fundiária, com metas concretas anuais, orçamento adequado e estrutura administrativa. Além disso, o relatório destacou a proteção de lideranças quilombolas, especialmente com a revisão da política de defensores de direitos humanos e a criação, por parte do Ministério Público Federal e estaduais, de comissão ou grupo de trabalho para acompanhar os casos de assassinatos das lideranças quilombolas.
“É possível apontar os fatores que contribuíram para o aumento no número de crimes contra quilombolas, como a ausência de política de Estado. A partir de metas e planos para o desenvolvimento dos territórios quilombolas que abrangem desde a titulação dos territórios às políticas públicas específicas de educação escolar quilombola. Políticas que precisam ser pensadas a partir dos territórios e para os territórios, não como público participante de políticas macro para populações distintas. Em comparação à pesquisa anterior, o que ainda se tinha era política de governo com ações pontuais que cessaram completamente após o Golpe e Gestão do Governo Bolsonaro”, avalia Kathleen.