*(Com colaboração de Thaís Britto)
“Quais vidas negras importam?”, questiona Bruna Benevides em uma rede social após Iyanna Dior, mulher negra e trans de 21 anos ter sido espancada no primeiro dia de junho por cerca de 30 homens em Minneapolis, nos EUA. O crime ocorreu em meio aos protestos antirracistas contra o assassinato de George Floyd. “Certeza que não são todas. Muito menos as nossas”, responde a ativista após afirmar que não existe nenhum lugar seguro para mulheres trans. O Brasil está entre os piores espaços. Aqui, o caso de Iyanna, que já é chocante, poderia ter outro desfecho. Ela teria quatro vezes mais chances de ser morta de forma violenta, confirmam as estatísticas dos dois países.
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Levando-se em consideração a questão racial, a realidade mostra mais uma face cruel. No ano passado, vítimas negras ou pardas representaram 82% da população trans assassinada no Brasil. Os dados são do dossiê da Antra (Associação Nacional de Trans e Travestis) sobre a violência contra a comunidade trans em 2019. Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da entidade, é uma das autoras do relatório que aponta 124 mortes ao todo. Embora o número seja bem maior em razão da subnotificação e da completa ausência do poder público na quantificação dos casos. Desse contingente levantado pela Antra, 60% tinham entre 15 e 29 anos e 97,7% dos assassinatos foram contra pessoas trans do gênero feminino.
O medo, portanto, passa a ser permanente para muitas dessas vidas. A cantora Karol Vieira, mais conhecida como Mc Xuxú, sofreu uma tentativa de assassinato em 2013. Sobreviveu. Amigas também foram violentadas. Algumas não resistiram. A música veio para transformar o temor em esperança e alerta. “Eu corro esse risco todos os dias, mas eu não posso ter medo disso. A gente é o alvo principal. É muito preconceito, o tempo inteiro. Então, eu agradeço a minha arte porque através dela eu consigo falar sobre isso para as outras meninas”.
[g1_quote author_name=”Mc Xuxú” author_description=”Cantora” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu corro esse risco todos os dias, mas eu não posso ter medo disso. A gente é o alvo principal. É muito preconceito, o tempo inteiro.
[/g1_quote]Aos 30 anos, a artista juiz-forana usa do seu trabalho para dar visibilidade e ecoar vozes de mulheres, que assim como ela, são trans, negras e periféricas. Nesse sentido, ela se junta a Liniker, Linn da Quebrada, Jup do Bairro, Danna Lisboa, Mel, Urias e Danny Bond, entre outras cantoras trans, que transformam o microfone em arma para falar sobre a violência na qual a comunidade é submetida diariamente: “Mulher de peito, pau e seu conceito não me abala. Eu sou favela, sei do brilho da senzala”, canta Xuxú na música Senzala, faixa-título do seu primeiro álbum lançado em 2018, sobre a luta pela sobrevivência e pela reconstrução da autoestima da comunidade.
Desde 2008, segundo dados internacionais da ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil segue à frente no ranking mundial de assassinato de pessoas trans no mundo.
Heranças de luta
Conterrânea de Mc Xuxú, Dandara Oliveira leva a força de uma guerreira negra no nome. Dandara dos Palmares é descrita como símbolo da resistência quilombola no período colonial brasileiro. Cercada de mistérios sobre a sua vida, a mulher de Zumbi dos Palmares teria lutado em muitas batalhas geradas por ataques ao quilombo, sobretudo a partir de 1630, com a invasão holandesa. Preferiu a morte à voltar para a escravidão. Mulher preta e travesti de 39 anos, Oliveira transporta um pouco dessa luta para os dias atuais, ainda carregados da herança do sistema escravocrata brasileiro.
[g1_quote author_name=”Bruna Benevides” author_description=”Secretária de Articulação Política da Antra” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A população, em sua grande maioria, não quer pessoas trans nos espaços sociais e determina esse lugar [a prostituição] como único para podermos coexistir. E impede que nos organizemos a partir desse espaço para alcançar outros
[/g1_quote]“O Brasil é um país onde as mulheres negras são a maior e a mais baixa parte da pirâmide de salários. Começa com o homem branco, a mulher branca, o homem negro, e por último, a mulher negra. Agora, imagina para uma mulher trans negra o que é a vida”, levanta a ativista e mestranda de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Para Dandara, o racismo permeia o universo trans assim como permeia a sociedade em geral. Segundo o Atlas da Violência, 75,5% das vítimas de homicídio no país, no ano passado, eram indivíduos negros – considerando a população como um todo. “Temos uma sociedade que trata a violência com muito mais violência. Se existe um genocídio da população negra no Brasil, isso obviamente iria respingar na população jovem trans negra”. Mas, por conta da transfobia, as raízes do problema são ampliadas e criam um sistema ainda mais opressor.
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“A violência já começa dentro de casa e da escola, são vidas que não são reconhecidas, literalmente. O censo costuma dizer que evadimos a escola, mas a verdade é que somos expulsas. Isso fortalece o mito de que gostamos da prostituição. Mas não, é exatamente o contrário. Somos jogadas para fora porque não somos aceitas, porque os alunos fazem bullying, porque apanhamos e porque não podemos usar o banheiro do gênero ao qual nos identificamos. Por conta disso, a mulher trans é colocada numa situação de enfrentamento de violência muito grande”.
O perigo está na esquina
Além da menor escolaridade, mulheres trans têm menor acesso ao mercado formal de trabalho e às políticas públicas. O sistema excludente faz com que elas sejam inseridas no contexto da prostituição – 90% sobrevivem da atividade. Consequentemente, são essas as que carregam os maiores índices de violência e assassinatos. Nota-se que 80% dos casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade e 64% aconteceram nas ruas, principalmente à noite.
“A gente vê tudo isso atrelado a esse ódio à prostituição, sendo que elas foram colocadas ali pela própria sociedade. A população, em sua grande maioria, não quer pessoas trans nos espaços sociais e determina esse lugar como único para podermos coexistir. E impede que nos organizemos a partir desse espaço para alcançar outros”, pondera Bruna Benevides. Ela menciona ainda uma espécie de “limpeza urbana” no processo discriminatório. “E isso é feito por meio da violência e, algumas vezes, pela própria violência estatal, pelos agentes da segurança pública”.
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Dandara Oliveira observa que os ataques às mulheres negras trans que atuam na profissão são constantes também por conta da associação da beleza ao padrão cisgênero-branco: “Você escuta coisas como: ‘preta imunda, preta suja, ganha pouco porque é preta, devia procurar faxina pra fazer’”.
“Estamos no mês do Orgulho LGBT+ e é muito bonito observar todas as manifestações que celebram Marsha P Johnson, mas ignoram a travesti preta que está́ na esquina, perto da sua casa”, provoca Bruna, em referência à ativista norte-americana trans, símbolo da luta pelos direitos LGBT+ no país. “À noite, quando estamos sozinhas, é tudo diferente”, relembra Mc Xuxú, que antes da carreira musical, se prostituía para viver.
Pela elucidação dos crimes
Muitos dos crimes cometidos contra pessoas trans não são elucidados. Segundo a Antra, apenas 11 dos 124 casos tiveram os suspeitos identificados, o que representa 8% dos dados. Bruna Benevides explica que a falta de uma estrutura de apoio faz com que não haja tantas reinvindicações pela análise ou aprofundamento dos processos. “Muitas vezes, soa que o assassinato de uma pessoa trans é favorável para a maioria da população e não seria diferente pelos agentes de segurança pública. Tudo isso é atrelado justamente por conta da baixa escolaridade, dos processo de exclusão social e das famílias, que vai criando pessoas solitárias e independentes, que ficam à mercê da sua própria sorte”.
[g1_quote author_name=”Dandara Oliveira” author_description=”Mestranda em Serviço Social” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Somos jogadas para fora [da escola] porque não somos aceitas, porque os alunos fazem bullying, porque apanhamos e porque não podemos usar o banheiro do gênero ao qual nos identificamos. Por conta disso, a mulher trans é colocada numa situação de enfrentamento de violência muito grande
[/g1_quote]Com a criminalização da LGBTfobia, aprovada há um ano pelo STF, e a retificação do nome social, a ativista vê a materialização da garantia de alguns direitos e aponta para uma esperança – ainda que distante – no processo de retirada de pessoas trans da vulnerabilidade. “A gente começa a pensar em uma cobrança organizada e política, mas ainda é um processo lento. Esperamos que com a criminalização possam ser feitos novos protocolos de atendimento e identificação dos casos de assassinatos e seus algozes, porque a impunidade favorece com que os crimes passam desapercebidos e continuem com as taxas elevadas”.
Sociedade CIStematizada
É unânime entre os ativistas do movimento que a criação de políticas públicas que incluam pessoas trans é a principal forma de reverter o quadro de marginalização no qual elas foram inseridas. Em paralelo, mostra-se de extrema importância a quantificação de pessoas trans no Censo 2020 para a maior eficácia da luta pelos direitos da comunidade. “De quantas pessoas estamos falando? A sociedade é sistematizada com c, para a população cis”, afirma Dandara.
Dados governamentais sobre a violência contra a população também são uma cobrança de Bruna, que reforça que os relatórios das ONGs muitas vezes são desqualificados pelo governo. “Não fazer esse levantamento é muito cômodo para o Estado. Dizer zero casos ou poucos casos para justificar sua omissão. Ele próprio assume o papel de não levantar esses dados para dizer que eles não existem”.
Em um de seus dossiês, a Antra descreve uma série de propostas de ações a serem construídas no enfrentamento da violência. Entre elas, a capacitação de todos os agentes, operadores e pessoas que compõe os órgãos de segurança pública sobre como lidar em casos de ataques e violações contra a população LGBT+. Além da realização de campanhas efetivas e regulares de combate da LGBTfobia em parceria com o Disque 100.
“São muito importantes o protagonismo, a visibilidade das pessoas trans e a participação social nos espaços de disputa, de poder, de construção política e na esfera educacional. Precisamos garantir essa representação para que a naturalização da existência de pessoas trans passe a se dar no dia a dia e, com isso, a gente possa enfrentar, principalmente, a desinformação e esse pânico que é criado por conta de narrativas que criminalizam a nossa existência”, defende Bruna.
[g1_quote author_name=”Bruna Benevides” author_description=”Secretária de Articulação Política da Antra” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A desumanização dos nossos corpos permite que a população se sinta, agora mais ainda com representantes do poder chancelando ideias preconceituosas, que está mais do que liberado violentar, assassinar corpos de pessoas LGBT+, sobretudo trans
[/g1_quote]No entanto, o conservadorismo na política atual brasileira joga contra, observa: “A desumanização dos nossos corpos permite que a população se sinta, agora mais ainda com representantes do poder chancelando ideias preconceituosas, que está mais do que liberado violentar, assassinar corpos de pessoas LGBT+, sobretudo trans, que muitas vezes não podem contar com o apoio familiar, com o apoio institucional ou da própria sociedade, pelo processo de exclusão que está estruturado nas cadeias de hierarquia”.
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Veja o que já enviamosÉ por esses inúmeros motivos apresentados que Dandara Oliveira sempre lança nos congressos que participa a frase que dá título à reportagem: “A carne mais barata do mercado é a carne trans negra”. Uma adaptação da canção “A Carne”, composta por Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, e que ganhou repercussão na poderosa voz de Elza Soares. A obra critica a estrutura social brasileira que coloca o corpo negro como o menos importante. A música diz que a briga é por respeito e por justiça, seja ela sutil ou bravamente. “As opressões não se hierarquizam. Se somam e eclodem na violência que nos mata a cada dia. E por isso devem ser enfrentadas conjuntamente em todos os espaços, inclusive os nossos”, arremata Bruna.
Sou Renata Borges, a travesti que LUTA pela pauta TRANS no ESTADO do Paraná, pauta essa miseravelmente invisível.
Nossos descarecterizadas como cidadã.
Perdemos o direito da humanidade por simplesmente “SER”.
MATÉRIAS como essa leva nossa voz mesmo que SEJA sussurrada por falta de força.
Gratidão
Por esses motivos idealizou a marcha da visibilidade TRANS e travesti do Paraná e a PARADA LGBT de Apucarana.