Tem vaga para trans na universidade

Matheus da Silva Gomes vai cursar o bacharelado em ciência e tecnologia no período noturno. Foto Arquivo Pessoal

Instituição do ABC paulista reserva cotas para pessoas transgêneras, mas oferta foi maior do que a procura

Por Vanessa Fajardo | ODS 4 • Publicada em 2 de março de 2019 - 08:19 • Atualizada em 5 de abril de 2019 - 12:50

Matheus da Silva Gomes vai cursar o bacharelado em ciência e tecnologia no período noturno. Foto Arquivo Pessoal
Matheus da Silva Gomes vai cursar o bacharelado em ciência e tecnologia no período noturno. Foto Arquivo Pessoal
Matheus da Silva Gomes vai cursar o bacharelado em ciência e tecnologia no período noturno. Foto Arquivo Pessoal

O auxiliar administrativo Matheus Raphael da Silva Gomes, de 18 anos, morador de Interlagos, na Zona Sul de São Paulo, está entre os primeiros alunos beneficiados pelas cotas reservadas para transgêneros em cursos de graduação da Universidade Federal do ABC (UFABC). Segundo estimativa do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) já existem pelo menos 15 instituições de ensino superior pelo país que oferecem cotas para alunos trans.

[g1_quote author_name=”Tatiana Lima Ferreira” author_description=”Pró-reitora da UFABC” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Os dados indicam uma baixa expectativa de vida desse grupo de pessoas. Muitas vezes, eles só conseguem empregos relacionados à informalidade ou à prostituição. Isso foi determinante na decisão da universidade de facilitar o acesso à educação superior de qualidade

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A UFABC encerrou agora no começo do ano o primeiro processo seletivo com vagas destinadas para alunos transgêneros. Elas foram preenchidas por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que é administrado pelo Ministério da Educação e seleciona alunos para cursos de graduação em instituições públicas de ensinos superior a partir do desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Das 32 vagas para transgêneros na UFABC, só houve procura por 20, e todos os inscritos foram selecionados.

Matheus vai cursar o bacharelado em ciência e tecnologia no período noturno, no campus de Santo André. Ele concluiu o ensino médio na rede pública em 2017, tentou uma vaga na Universidade de São Paulo, mas não conseguiu. Ele comemorou as cotas para os alunos trans: “Achei a ideia interessante porque você concorre com os seus e ninguém sai perdendo. É cada um com seu grupo e a disputa é entre os seus, o que fica mais inclusivo”, diz o estudante, que pretende se especializar em engenharia ambiental. Com 639 pontos, Matheus teve a segundo melhor desempenho entre os trans que disputaram vaga para o curso noturno em Santo André, independentemente da renda familiar. A média, entretanto, está quase 150 pontos abaixo do primeiro colocado entre as vagas de ampla concorrência.

Matheus fez a transição para o universo masculino há quatro anos, e o tratamento hormonal começou há dois anos e meio. Ele conta que foi um processo difícil principalmente em relação à família. “Eu tinha 15 anos e conseguir algo nessa idade é um sufoco. Eles não queriam acreditar, achavam que eu não estava falando a verdade e precisaram de ajuda para compreender”.

Na escola, por outro lado, foi mais tranquilo. Matheus diz que não enfrentou muito preconceito. “Em casa foi mais complicado, fui conquistando o respeito deles só com tempo. Tive de engolir algumas coisas e seguir em frente.”

Larissa foi incentiva pela namorada a fazer a prova pelo sistema de cotas. Foto Arquivo Pessoal

‘Não passaria sem as cotas’

Quem estará na turma de Matheus, é a estudante Larissa Rebolças, de 22 anos, de São Bernardo do Campo, no ABC, que também foi beneficiada pelas cotas reservadas para pessoas trans. Embora ainda use o nome Larissa, ela se veste como homem, diz que se vê e é reconhecida como um, tem uma namorada e pretende mudar seu nome para Artur: “Vou fazer a transição para o sexo masculino, ainda não comecei por motivos familiares e de renda. Fiquei um tempo sem falar com a minha mãe, ainda é um baque para ela. Farei a transformação hormonal, mas ainda não tenho condições financeiras”.

O nome na lista de aprovados da UFABC foi surpresa para Larissa. “Eu não passaria se não fosse pelas cotas, acho uma política de inclusão bastante necessária”, diz ela que teve 508 de média no Enem. A estudante chegou a cursar publicidade e propaganda em uma universidade particular, mas precisou desistir quando não conseguiu renovar o Fies – financiamento estudantil a juros baixos subsidiado pelo governo. Agora deve seguir na área de engenharia da informação. “Foi minha namorada que me incentivou a disputar vaga na cota trans. Meus avós ficaram felizes com a aprovação, minha mãe também.”

Demanda da comunidade

Transgêneros e transexuais passaram a ser contemplados pelas políticas afirmativas da UFABC em resposta a uma demanda da sociedade, segundo Tatiana Lima Ferreira, pró-reitora adjunta de assuntos comunitários da universidade: “O Coletivo Prisma tem essa demanda há muito tempo e eles possuem uma série de ações voltadas para pessoas transgêneras. A UFABC começou a adotar cotas trans na escola preparatória para o Enem”, conta Tatiana.

A pró-reitora reforça que embora os dados da população trans no Brasil ainda sejam pouco organizados, há uma história de marginalização que permeia esse público, que é excluído do sistema educacional. “Outra questão foram os dados que apontam baixa expectativa de vida e o tipo de emprego que eles conseguem, muitas vezes relacionado à informalidade ou à prostituição. Esses dados foram decisivos na decisão da universidade de facilitar o acesso desse público à educação superior de qualidade.”

No total, a UFABC possui 2.008 vagas, sendo que 50% devem ser reservadas para alunos oriundos de escolas públicas, de acordo com lei federal. As 32 vagas para os candidatos trans saíram das 1.004 restantes destinadas aos alunos da ampla concorrência. Para Tatiana, a baixa procura neste primeiro processo seletivo já era esperada, assim como aconteceu em anos anteriores com as cotas reservadas para alunos refugiados.

“Aproximadamente 20 pessoas se inscreveram e foram aprovadas. É natural que isso aconteça no primeiro processo seletivo porque existe o desconhecimento da população. Mas vamos ajustar o número de vagas a partir da demanda. As vagas que sobraram serão aproveitadas em uma migração interna.”

Sayonara Nogueira, vice-presidente do IBTE, está preocupada com a educação básica. Foto Arquivo Pessoal

Exclusão começa no ensino fundamental

Embora as cotas no ensino superior sejam motivo de comemoração para o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), a organização se preocupa com inclusão dos alunos trans já na educação básica. “Claro que as cotas no ensino superior são uma forma de igualar o acesso dessa população que é discriminada, mas a nossa preocupação é com a manutenção da educação básica. A exclusão já começa no ensino fundamental”, afirma Sayonara Nogueira, vice-presidente do IBTE.

Sayonara diz que é preciso criar políticas para manter esse segmento dentro da escola. Ela cita como exemplo a resolução do MEC homologada no início do ano passado que autoriza o uso do nome social de travestis e transexuais na educação básica. Outra ferramenta será um aplicativo que deve ser lançado pelo instituto que vai funcionar como canal para denúncias de casos de preconceito e transfobia em todo o país. Elas serão recebidas pelo IBTE, averiguadas e quando necessário encaminhadas aos órgãos responsáveis.

Vanessa Fajardo

Jornalista, trabalha com temas principalmente ligados à educação. Já passou pelas redações do G1 e dos jornais Agora São Paulo e Diário do Grande ABC. Atua como colaboradora de BBC Brasil, Folha de S.Paulo, Porvir, Universa e Revista GOL.

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