Rio Doce, da lama à escola

Professor usa tragédia de Mariana para ensinar tabela periódica e desenvolve filtro de água que ajuda população afetada

Por Valquiria Daher | ODS 4 • Publicada em 21 de setembro de 2016 - 17:53 • Atualizada em 15 de outubro de 2016 - 14:32

O Rio Doce com as águas vermelhas do minério de ferro já no território do Espírito Santo, em novembro passado (AFP/Estado do Espírito Santo/Fred Loureiro)
Alunos fazem coleta de amostras da água do Rio Doce (Foto de divulgação)
Alunos fazem coleta de amostras da água do Rio Doce (Foto de divulgação)

De um mar de lama, emergiu uma lição. Ou melhor, de um rio, o Doce, vítima quase fatal da tragédia de Mariana, ainda no CTI dez meses após o rompimento da barragem do Fundão da mineradora Samarco, propriedade da Vale e da BHP Billinton. Ao ouvir de um aluno a pergunta sobre ‘por que o Rio Doce era relacionado pelos jornais à tabela periódica’, o jovem professor Wemerson da Silva Nogueira teve a ideia de um projeto que levou sua turma da 8ª série do ensino fundamental a sair da sala de aula para fazer pesquisas de campo. O resultado foi surpreendente. Não só os estudantes detectaram a presença de altas concentrações de metais pesados no rio como também desenvolveram uma tecnologia de baixo custo para ajudar as populações afetadas: um filtro de areia que melhora a qualidade da água.

Assim, Wemerson, um professor de ciências de 25 anos, tornou-se um dos dez finalistas – entre 4.200 inscritos – do prêmio Educador Nota 10, que será entregue dia 17 de outubro, em São Paulo.

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Estou muito satisfeito no meu papel de educador, até por que, quando assumi uma sala de aula, prometi para mim mesmo que faria Ciências e Química serem vistas de forma diferenciada pelos meus alunos: a natureza seria o nosso laboratório de experimentações

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Bem aproveitada pelo mestre, a curiosidade de alunos foi essencial para o sucesso do projeto “Filtrando as lágrimas do Rio Doce”. “Eles iriam aprender na 8ª série o conteúdo da tabela periódica. Como no Rio Doce há diversos elementos que compõem a tabela, nada mais simples que estudá-la, mas de uma forma mais atrativa e diferenciada, onde poderíamos realizar uma desconstrução da tabela periódica padrão que encontramos em livros e outros materiais de apoio didático”, resumo Wemerson, que dá aulas no Colégio Estadual Antônio dos Santos Neves, em Boa Esperança, no Espírito Santo. A cidade está a 150 km de Regência, também no Espírito Santo, a última a receber a lama de rejeitos de minério. “Sofremos com a contaminação do Rio Doce de forma direta, porém nos sensibilizamos com os moradores de Baixo Guandu, Colatina, Linhares e Regência, municípios atingidos e que sofreram grande destruição”, comenta.

O Rio Doce com as águas vermelhas do minério de ferro já no território do Espírito Santo, em novembro passado (AFP/Estado do Espírito Santo/Fred Loureiro)

 Coordenados pelo professor, os alunos realizaram coletas de amostras de água em diferentes pontos, especialmente em Mariana. Numa parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo e a Estação de Tratamento de Água de Boa Esperança, os estudantes puderam analisar as amostras e constatar a grave situação.

“Encontramos diversos metais pesados. Os que apresentaram maior concentração foram: ferro, manganês e arsênio. Para realizar as análises, utilizamos como base a Portaria 2914/11 do Ministério da Saúde, para ver se a água estava dentro dos parâmetros legais de potabilidade”, detalha o professor. “Nas amostras, constatamos que a proporção de manganês na água era de 2,84 mg/L, quando o normal seria 0,01 mg/L, ou seja, um valor preocupante e bem acima do aceitável. Com relação ao ferro, encontramos uma concentração de 0,12 mg/L, e o normal seria 0,010 mg/L. Esse era um dos motivos da coloração avermelhada da água. Por fim, o arsênio tinha concentração de 0,10 mg/L, quando o normal seria 0,01 mg/L”.

A turma que desenvolveu o projeto “Lágrimas do Rio Doce” reunida (Foto de divulgação)

Diante desses resultados, professor e alunos sentiram a necessidade de ajudar a população afetada. Em Regência, no Espírito Santo, por exemplo, verificaram que muitos tiveram as plantações destruídas pela tragédia e que não podiam voltar a cultivar no local, porque não tinham como molhar as plantas com a água vermelha. Outros viviam quase num racionamento da água distribuída e enfrentavam dificuldades para realizar tarefas domésticas, como limpar a casa e lavar louça. “Depois de filtrar a água do Rio Doce, observamos diferenças nos índices. O manganês caiu para 1,76 mg/L, o ferro passou para 0,3 mg/L e o arsênio, para 0,8 mg/L. Assim, percebemos como foi importante o processo de filtragem e como ele trouxe benefícios para a comunidade”, relata o professor.

O filtro é um ótimo exemplo de tecnologia de baixo custo para ajudar populações necessitadas. Wemerson destaca que, apesar da simplicidade, foram necessários quatro meses e muitos projetos para se chegar ao modelo final, que conta com camadas de areia fina, grossa e industrial oxidada para reter o metal presente na água. “O interessante é que o morador pode voltar a captar a água na beira do rio. A água avermelhada é despejada no filtro, onde, por um período de 30 minutos ocorre a filtração. Ela sai transparente pela torneira e com aproximadamente 75% de potabilidade. Esse grau de água isenta dos metais pôde ser verificado através de novas análises realizadas por nós no laboratório escolar”, empolga-se o professor, destacando que muitos ribeirinhos já voltaram a plantar e a usar a água em suas casas.

O professor joga água no filtro desenvolvido por ele em conjunto com seus alunos (Divulgação)

As mazelas tão conhecidas do ensino público no Brasil não foram obstáculos para Wemerson, que cobre de elogios a Secretaria estadual de Educação e a diretoria do colégio Antônio dos Santos Neves. “A  SEDU/ES contribui e investe na formação pedagógica dos seus profissionais. Além disso, oferece recursos didáticos que permitem ao professor realizar aulas práticas envolvendo a natureza”.

Os baixos salários da categoria também não desanimam o jovem professor, que tem consciência da importância da profissão para “formar cidadãos do bem”. “Estou muito satisfeito no meu papel de educador, até por que, quando assumi uma sala de aula, prometi para mim mesmo que faria Ciências e Química serem vistas de forma diferenciada pelos meus alunos: a natureza seria o nosso laboratório de experimentações e a sala de aula um espaço para relatarmos e multiplicarmos os conhecimentos adquiridos. Sendo assim, aos 25 anos ser reconhecido nacionalmente como um dos 10 melhores professores do país é muito mais importante do que qualquer salário altíssimo que poderia ter, se não me sentisse valorizado”, avalia ele, que completou a licenciatura em Química em 2010 e depois fez especializações. “Ingressei como docente em 2013, trabalhando com as disciplinas de Ciências e Química. Foi quando percebi o quanto uma sala de aula é importante para mim e para os meus alunos, que nesses quatro anos aprenderam e multiplicaram conhecimentos além dos muros da escola”.

Valquiria Daher

Formada em Jornalismo pela UFF, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Foi repórter do jornal “O Dia”, ocupou várias funções no “Jornal do Brasil” e foi secretária de redação da revista de divulgação científica “Ciência Hoje”, da SBPC. Passou os últimos anos no jornal “O Globo”, onde se dedicou ao tema da Educação. Editou a Revista “Megazine”, voltada para o público jovem, e a “Revista da TV”. Hoje é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas.

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