‘Pandemia’ de abandono e evasão escolar

Com retrocesso de 20 anos em desigualdade na educação, especialistas dizem ser urgente recuperar o 1,3 milhão de alunos que deixaram os estudos em 2020

Por Carla Lencastre | ODS 4 • Publicada em 1 de abril de 2021 - 23:55 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 15:34

Fora da escola: em um ano de covid-19, explodem as taxas de abandono e evasão escolar | Ilustração de Gerd Altmann/Pixabay

O ano escolar em 2021 começou muito diferente do esperado. Havia a expectativa de um retorno gradual às aulas presenciais, mas o avanço da covid-19 em todo o país, a escassez de vacinas e, consequentemente, a lentidão do programa de vacinação estão mantendo parte das escolas fechadas. Duas pesquisas recentes mostram que o Brasil regrediu 20 anos nas taxas de abandono e de evasão escolar. Com a pandemia e sem uma coordenação nacional dos três níveis de governo, a desigualdade na educação brasileira fica ainda mais nítida.

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No estudo “Enfrentamento da cultura do fracasso escolar“, publicado em janeiro de 2021, o Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef) estima que aproximadamente 4,1 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos tiveram dificuldade de acesso ao ensino remoto em 2020. E que cerca de 1,3 milhão abandonou a escola. Os dados usados no relatório são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de outubro de 2020.

Pesquisa da DataFolha, também apresentada em janeiro, aponta que aproximadamente 4 milhões de estudantes brasileiros entre 6 e 34 anos deixaram as aulas em 2020, o que significa 8,4% de evasão escolar. Na educação básica, a taxa é ainda maior: 10,8% dos alunos largaram a escola em 2020, sendo 4,6% no ensino fundamental. Para termos de comparação, em 2019 as taxas oficiais de evasão foram de 4,8% no ensino médio e 1,2% no fundamental. Os números dão a dimensão do desafio em um cenário no qual o retorno progressivo às aulas presenciais permanece indefinido.

Para discutir como manter crianças e adolescentes na escola e fortalecer seus vínculos a Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca) realizou um seminário online com especialistas no tema. Participaram do debate Dalila Saldanha, secretária municipal de Educação de Fortaleza; Ítalo Dutra, chefe de Educação do Unicef, e Ricardo Vitelli, professor e pesquisador da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e membro da Associação Brasileira de Prevenção da Evasão Escolar. O seminário foi mediado por Marta Avancini, editora de conteúdo do Jeduca.

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Perfil de abandono e evasão escolar tem cor, endereço e renda

Dados da Pnad de 2019 mostram que cerca de 20,2% dos quase 50 milhões de jovens brasileiros de 14 a 29 anos não completaram a educação básica. Por um recorte de raça, 71,7% dos que não concluíram o ensino básico se declaram pretos ou pardos, e 27,3%, brancos. Abandonar os estudos para trabalhar foi a principal razão alegada por jovens de todas as regiões do país. O segundo motivo, também em todo o país, foi falta de interesse.

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Voltamos 20 anos no tempo. O que já era desigualdade virou um abismo durante a pandemia

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Em 2020, escolas brasileiras ficaram fechadas em média por 30 semanas, e houve lugar que sequer abriu. É uma das maiores médias mundiais de tempo, segundo Ítalo Dutra, do Unicef:

“Tentamos identificar no nosso estudo quem são essas crianças e adolescentes que estão fora da escola. O perfil desse estudante tem cor, endereço e renda. São principalmente pretos, pardos e indígenas, das regiões Norte e Nordeste, e de baixa renda. Pelos dados da Pnad, voltamos 20 anos no tempo. O que já era desigualdade virou um abismo durante a pandemia. É preciso fazer uma busca ativa, ir atrás dessas crianças e adolescentes que abandonaram a escola para reverter o quadro e recuperar 20 anos.”

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Busca Ativa Escolar é justamente o nome de uma plataforma desenvolvida pelo Unicef para ajudar a combater a exclusão escolar. Ítalo ressalta a importância do papel da escola além da educação:

“Escola faz parte do sistema de proteção de direitos. Escola é garantia de segurança alimentar e, também, protege crianças e adolescentes da violência doméstica. E temos poucos dados sobre educação infantil. Além de ser obrigatória, ela é fundamental para a criança criar vínculo com a escola.”

Em Fortaleza, taxa de abandono e evasão escolar é de apenas 0,1%

Fortaleza tem a quarta maior rede municipal de ensino do país e, ano passado, foi reconhecida pelo Unicef por reduzir os indicadores de desigualdade. Em 2017 a média de frequência escolar era de 73%. Em 2019 o índice chegou a 94%. Para Dalila Saldanha, secretária municipal de Educação, saber o que aconteceu com quem abandonou a escola é fundamental para lidar com o problema:

“Em Fortaleza e em outras cidades do Ceará temos uma cultura da busca ativa, do monitoramento. Há quatro anos acompanhamos a frequência dos alunos diariamente. Se depois de dez dias não há uma justificativa para a falta, nosso protocolo é acionar o Conselho Tutelar e o Ministério Público. Em 2008 a taxa de abandono era de 11%. Em 2020 conseguimos chegar a apenas 0,1%. Desde o primeiro mês da pandemia enviamos um kit de alimentos para a família dos estudantes. Se o aluno não tiver acesso ao ensino remoto, mandamos material didático impresso junto com os alimentos. Ainda assim perdemos 194 alunos em 2020 e estamos buscando descobrir para onde eles foram, se as famílias se mudaram para outra cidade ou estado.”

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Abandono é quando o aluno larga a escola por um período, mas retorna. Quando não volta, é evasão. No ensino médio a evasão é desastrosa

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O pesquisador Ricardo Vitelli, da Unisinos, chama a atenção para a diferença entre os conceitos de abandono e evasão escolar:

“Abandono é quando o aluno larga a escola por um período, mas retorna. Quando não volta, é evasão. Problema histórico na educação brasileira pelo menos desde 1930, quando os dados começaram a ser estudados. No ensino fundamental, a família está mais presente e a merenda garante uma taxa de retorno maior. No ensino médio a evasão é desastrosa. Na pandemia, estudantes de ensino médio estão à procura de trabalho. Há escolas no Rio Grande do Sul que tiveram 100% de evasão nos cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). É preciso enviar alimentos para as famílias e garantir o acesso ao ensino remoto a alunos que não têm o que comer nem possuem computador ou telefone com acesso à internet, o que aumenta a desigualdade”.

Abandono e evasão escolar
Abandono e evasão escolar: saber o que aconteceu com quem deixou a escola é fundamental | Foto de Monoar Rahman Rony/Pixabay

Em 2021 ainda há escola brasileira sem banheiro

O quadro de abandono escolar pode ser revertido durante e depois da pandemia. Mas Ítalo Dutra, do Unicef, destaca outro problema histórico a ser resolvido pela educação pública brasileira: a infraestrutura das escolas, ou a falta dela.

“É inaceitável que em 2021 existam escolas sem banheiro, biblioteca, laboratório de ciências, quadra para atividades esportivas. Temos feito um esforço de divulgar nossos estudos para o público em geral porque ainda há muito trabalho a ser feito para reduzir a desigualdade. E temos que dar luz aos bons exemplos, como o da rede municipal Fortaleza”, diz Ítalo.

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São muitas as diferenças físicas entre as escolas de Fortaleza

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Mas mesmo na capital do Ceará, a quinta maior do país em população, ainda há o que fazer.

“Apesar dos nossos esforços, são muitas as diferenças físicas entre as escolas de Fortaleza”, reconhece a secretária Dalila Saldanha.

Ricardo Vitelli aponta a importância de infraestrutura e combate à evasão caminharem paralelamente:

“Temos que buscar quem está fora da escola e, ao mesmo tempo, melhorar a infraestrutura. É mais demorado, mas há que ser feito. Escola não é só para aulas de português e matemática. É espaço de formação, tem que ter arte, área para exercícios, uma infraestrutura mínima garantida para todos. Quem é educado, pensa.”

A íntegra do seminário promovido pela Jeduca no início de abril de 2021 está disponível no canal do YouTube da associação.

Carla Lencastre

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre 

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