Mestres em diversidade e inclusão

UFF tem curso de mestrado em que pessoas com deficiência são, além de objeto de estudo, autores e produtores de ciência

Por Lauro Neto | ODS 10ODS 4 • Publicada em 12 de junho de 2019 - 08:00 • Atualizada em 14 de junho de 2019 - 14:03

Alunos do curso de mestrado da UFF em inclusão e diversidade: 45 dissertações defendidas por pessoas com deficiência (Foto: Arquivo Pessoal)
Alunos da UFF. Curso de mestrado em inclusão e diversidade tem 45 dissertações defendidas por pessoas com deficiência (Foto: Divulgação/Sensibiliza UFF)

Um curso com oito surdos, dois deficientes visuais e uma mulher com nanismo entre os 125 alunos matriculados. Assim é a atual formação do Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão (CMPDI), da Universidade Federal Fluminense (UFF). A instituição é pioneira no Brasil em integrar alunos com e sem deficiência num curso de pós-graduação. Em seis anos, foram 170 dissertações defendidas, 45 delas por pessoas com alguma deficiência (PcD). São projetos como um método de alfabetização para autistas ou jogos e mapas didáticos para crianças surdas. A proposta do mestrado é de que as PcD não sejam apenas objeto de estudo, mas autores e produtores de ciência. Agora, a UFF quer quebrar ainda mais barreiras. Está lançando um Doutorado em Inclusão e Inovação Tecnológica. A primeira turma começará no segundo semestre.

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De acordo com o último Censo da Educação Superior (2017), apenas 0,46% das mais de 8,2 milhões de matrículas no ensino superior foram de alunos com alguma deficiência. Na pós-graduação, esse percentual é ainda menor: 0,27% dos 363 mil alunos matriculados em cursos de mestrado e doutorado em 2017 se autodeclararam PcD, como informou a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pela organização dessa base de dados.

Luciane Rangel, de 52 anos, quer continuar fazendo parte desse seleto grupo. Professora de Libras concursada da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), agora ela se prepara para tentar o doutorado em Inclusão e Inovação da UFF. Ela foi a primeira surda a se formar no CMPDI, com uma dissertação sobre bilinguismo no ensino fundamental. A proposta de sua tese não se tratava de ensinar às crianças um segundo idioma como inglês ou espanhol, mas sim a Língua Brasileira de Sinais para alunos ouvintes. A inspiração veio das próprias dificuldades que enfrentou na educação básica, a fase mais difícil de sua vida.  Ela ficou surda profunda aos 2 anos em decorrência de meningite, estudou em escolas  que não tinham intérpretes e precisava se esforçar muito para fazer leitura labial.

Luciane Rangel, primeira surda a se formar em mestrado na UFF, com seu livro: ‘Não me vejo como deficiente, mas como estrangeira em nosso próprio país’ (Foto; Arquivo Pessoal)

“Escolhi esse tema para diminuir a barreira de comunicação entre surdos e ouvintes. Só conheço uma médica que sabe um pouco de Libras. Não conheço bombeiros,  dentistas e outros profissionais que saibam.  Não me vejo como deficiente, mas como estrangeira em nosso próprio país”, conta Luciane, em entrevista pelo WhatsApp.

Autora do livro “Ane Jota – Amigos de mundos diferentes”, sobre a amizade entre uma menina surda e um menino ouvinte, ela dá aulas para alunos ouvintes não apenas de Letras e Pedagogia, mas de cursos como Direito, Matemática, Turismo, Geografia e Administração. Em agosto, ela será palestrante do I Encontro Nacional sobre o Ensino de Libras como Segunda Língua de Crianças e Adolescentes Ouvintes, na UFRRJ. A ideia é a de facilitar o acesso ao ensino superior, através da inclusão social e educacional. Luciane, por exemplo, só voltou a estudar aos 28 anos, quando ingressou na graduação em Pedagogia numa faculdade particular.

“Mas eu tinha que pagar intérprete do meu próprio bolso. Na UFF, havia intérprete até na seleção de provas para o mestrado”, compara Luciane, acrescentando que os cortes orçamentários do MEC nas universidades também atingiram seu setor. “Na UFRRJ, só há um intérprete para atividades de extensão. Não conseguimos mais um”.

Na UFF, há oito intérpretes de Libras concursados para nove alunos surdos que necessitam do recurso, oito deles na pós e um na graduação. No total, há cerca de 350 estudantes com algum tipo de deficiência em 36 cursos: 97% deles na graduação, 2% no mestrado, 0,3% no doutorado e 0,7% no ensino à distância. Deles, 51,6% necessitam de algum auxílio para sua rotina acadêmica, de acordo com dados do Sensibiliza UFF, Divisão de Acessibilidade e Inclusão, que completa 10 anos em junho. Entre os equipamentos de tecnologia assistiva estão cinco impressoras em braille, duas cadeiras de rodas motorizadas e duas comuns, além de 12 bebedouros acessíveis.

“A inclusão e a acessibilidade são caminhos sem volta”

A universidade concede 40 bolsas para alunos da graduação atuarem na produção de material didático acessível, como mapas táteis e textos digitalizados, para auxiliar estudantes com deficiência. Entre as PcDs, há outros 40 bolsistas – e uma grande lista de espera. Cada bolsista recebe R$ 440 por mês. No entanto, os recursos do Programa de Acessibilidade na Educação Superior (Incluir), para manter as bolsas, ainda não foram liberados pelo governo federal este ano, segundo Lucília Machado, coordenadora adjunta do Sensibiliza UFF.

“Há quatro anos, a UFF era a quarta universidade a receber mais verbas para a inclusão, cerca de R$ 280 mil. Em 2018, recebemos R$205.902,00. Nossa previsão de gastos com esses bolsistas este ano é de R$ 264 mil. Geralmente, recebemos por volta de março ou abril, no máximo maio. Mas o dinheiro de 2019 até hoje não foi repassado. Estamos pagando as bolsas com dinheiro de outro programa, o PNAES (Plano Nacional de Assistência Estudantil). Uma espécie de ‘escambo’”.

Lucília Machado, tcoordenadora adjunta do Sensibiliza UFF e tetraplégica: ‘Na UFF, fomos mordidos pelo bichinho da inclusão’ (Foto: Arquivo Pessoal)

Lucília sofreu um acidente de carro há 20 anos, que a deixou tetraplégica, quando voltava para casa, em Niterói. Jornalista concursada pela UFF, ela também se formou na primeira turma do CMPDI.  Desde então, teve que aprender a desviar dos obstáculos no meio do caminho e, às vezes, mudar sua trajetória por causa deles.

“A Superintendência de Comunicação ficava no 8º andar, mas o elevador só ia até o sétimo”, recorda, sempre bem humorada. “O interessante do CMPDI é que qualifica profissionais da rede pública, que voltam para a sala de aula e conseguem melhorar  o ensino inclusivo. Na UFF, fomos mordidos pelo bichinho da inclusão. A inclusão e a acessibilidade são caminhos sem volta”.

Em 2017, a UFF elaborou seu Plano Institucional de Acessibilidade. Uma das principais preocupações é a eliminação de barreiras arquitetônicas em todos os campi para facilitar  a integração de PcD. Lucília explica que, como a maioria dos campi tinha chão de paralelepípedos, foram feitas obras, a princípio nos dois campi planos (Gragoatá e Praia Vermelha), com trajeto projetado para cadeira de rodas, pessoas com modalidade reduzida e com piso tátil para pessoas cegas e com baixa visão, além de sinalização em braile.

Naquele mesmo ano, o argentino Octávio Carreño tornou-se o primeiro estrangeiro cego na UFF. Nascido em Córdoba, prematuro de 6 meses, ele ficou cego quando ainda estava na incubadora. A lâmpada de radiação ultravioleta descolou suas retinas, pois seus olhos não estavam protegidos corretamente. Depois de cursar o ensino básico em seu país, ele chegou a começar a estudar Comunicação Social na terra natal, mas se encantou pela cultura brasileira e entrou para o curso de Direito da UFF através de um convênio com o Itamaraty.

Na sua turma atual, há uma aluna bolsista responsável por digitalizar os textos que não são disponibilizados em PDF, para que ele possa usar um leitor de tela com audiodescrição. Independente, ele mora sozinho na favela Vila Ipiranga, em Niterói, e faz estágio na Defensoria Pública, no Rio. Todo dia, pega barca e ônibus para se deslocar entre as duas cidades.

“A mobilidade urbana é bem deficitária. O calçamento é inexistente. Há muitos edifícios públicos que não têm piso tátil. Na UFF, a situação está melhorando, mas o piso tátil ainda é insuficiente. Eu não tenho problema de subir escadas, mas há dois prédios do Direito sem elevador. Para cadeirantes, é muito mais difícil. Tiveram a boa intenção de fazer obras, mas ainda é pouco. Não tenho dúvidas de que o corte de verbas coloca em xeque a assistência na universidade” avalia o universitário.

Em 2016, o MEC publicou uma portaria que dava prazo de 90 dias para as instituições federais apresentarem propostas de inclusão de pessoas com deficiência, negros e indígenas em seus programas de pós-graduação (mestrado e doutorado). No fim do mesmo ano, Michel Temer sancionou lei que passou a obrigar a reserva de vagas para PcD na educação técnica e superior, até então opcional. No ano seguinte, o Ministério Público Federal solicitou à Capes uma lista das instituições que já apresentavam propostas e resultados.

O #Colabora questionou, por e-mail, o Ministério da Educação a respeito de quanto e quando serão os valores repassados à UFF através do programa Incluir em 2019. A assessoria de imprensa alegou, pelo telefone, que a pasta não faz repasses específicos para programas, mas que “todos os cronogramas estão em dia, e só fará novos repasses quando acabar a liquidez dos recursos”. A reportagem solicitou a formalização das repostas por escrito, mas ainda não obteve retorno.

Já a Capes informou que, “por provocação do TCU,  incluiu e tornou obrigatórios os campos gênero, raça/cor e necessidades especiais em seu Sistema de Coleta de Dados da pós-graduação stricto sensu. As instituições de ensino superior têm autonomia administrativa garantida por lei, de forma que são responsáveis pelo planejamento e implementação de suas ações”.

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26/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância  das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil.

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Lauro Neto

Carioca, mas cidadão do mundo. De carona na boleia de um caminhão ou na classe executiva de um voo rumo ao Qatar, sempre de malas prontas. Na cobertura de um tiroteio na cracolândia do Jacarezinho ou entrevistando Scarlett Johansson num hotel 5 estrelas em Los Angeles, a mesma dedicação. Curioso por natureza, sempre atrás de uma boa história para contar. Jornalista formado na UFRJ e no Colégio Santo Inácio. Em 11 anos de jornal O Globo, colaborou com quase todas as editorias. Destaque para a área de educação, em que ganhou o Prêmio Estácio em 2013 e 2015. Foi colunista do Panorama Esportivo e cobriu a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016.

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