Livros acessíveis transformam histórias e democratizam acesso à cultura

Plataforma virtual disponibiliza obras literárias com diferentes recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência

Por Micael Olegário | ODS 10ODS 4 • Publicada em 2 de fevereiro de 2024 - 09:28 • Atualizada em 9 de fevereiro de 2024 - 09:51

Biblioteca virtual transformou trajetória de vida de Mário (Foto: Mais Diferenças)

“Só podemos alcançar o impossível se acreditarmos que é possível”. A frase é do personagem Charles Kingsleigh de Alice no País das Maravilhas. A clássica obra de Lewis Carroll foi o primeiro livro que Mario Paulo Greggio leu através da Biblioteca Virtual Mais Diferenças. A iniciativa reúne 42 obras literárias, incluindo clássicos como “Alice no País das Marvilhas”, “O Pequeno Príncipe”, “O Alienista” e “Peter Pan”. Entre os destaques, também está o livro favorito de Mario, que é uma pessoa com síndrome de asperger, uma condição do espectro autista que afeta a comunicação e a socialização. “Da biblioteca virtual, desses que estão, o meu favorito e que eu também já li pessoalmente, é “A Volta ao Mundo em 80 dias” que é do Júnior Verne, porque eu adoro geografia”, comenta o consultor da Mais Diferenças.

A plataforma surgiu como resultado de um trabalho desenvolvido há mais de 10 anos pela organização da sociedade civil que atua com educação inclusiva e na defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Antes mesmo do lançamento da biblioteca on-line, a Mais Diferenças já desenvolveu 69 livros em formatos acessíveis. “O nosso trabalho é produzir conhecimento e materiais acessíveis em múltiplos formatos, além de subsidiar governos, instituições, empresas, equipamentos culturais, atores e gestores das políticas públicas a promover a inclusão das pessoas com deficiência, tudo isso para garantir que elas tenham o direito de estar e de acessar todos os lugares, independente da dimensão de acessibilidade”, destaca a coordenadora de pesquisa e advocacy na Mais Diferenças, Thaís Martins,

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Como você quer trabalhar a questão da educação inclusiva, de garantir aprendizagens para todos, com equiparação de oportunidades, se os livros não estão acessíveis?

Thais Martins
Coordenadora de pesquisa e advocacy na Mais Diferenças

A maioria dos livros disponíveis são obras em domínio público e podem ser acessados por qualquer pessoa que faça cadastro na biblioteca, outras possuem algumas restrições de direitos autorais e só podem ser acessadas por pessoas com deficiência. O desenvolvimento do trabalho contou com financiamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, através de edital do Programa de Ação Cultural (ProAc). desde que ela foi lançada em agosto de 2023, a plataforma já conta com cerca de 200 usuários cadastrados.

A biblioteca foi pensada seguindo os princípios do Desenho Universal, ou seja, considera diferentes dimensões da acessibilidade e busca tornar os conteúdos acessíveis para pessoas cegas, surdas ou com qualquer outra diversidade. Ao acessar um dos livros, o usuário é direcionado para um janela em que pode selecionar o tipo de conteúdo e acessibilidade que deseja, as opções incluem: vídeo com audiodescrição e janela de Libras (Língua Brasileira de Sinais); livro em formato Daisy (em tradução do inglês – sistema de informação digital acessível), versões com leitura ampliada, leitura com contraste e leitura fácil. Também é possível baixar o conteúdo em PDF e TXT com acessibilidade.

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Thaís Martins explica que a Mais Diferenças tem como principais frentes de atuação à educação e cultura, por isso, a importância de tornar a literatura acessível, seja como instrumento pedagógico, seja como fonte de acesso à cultura. “Como você quer trabalhar a questão da educação inclusiva, de garantir aprendizagens para todos, com equiparação de oportunidades, se os livros não estão acessíveis?”, questiona a coordenadora de pesquisa da organização.

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A descrição ampliada de imagens, presente nos livros acessíveis, ajuda no desenvolvimento do repertório cultural de pessoas cegas. De acordo com Thaís, a intenção é ampliar ainda mais o número de obras da plataforma, incluindo livros feitos em parceria com outras instituições e que hoje estão disponíveis apenas no site das entidades ou no site do Mais Diferenças. A especialista em acessibilidade relata que antes, quando os audiovisuais estavam no YouTube, livros como “O Pequeno Príncipe” e “A Chegada de Lampião no Céu”, fizeram grande sucesso, ultrapassando 17 mil visualizações no caso da obra de Pierre de Saint-Exupéry.

Depois que eu entrei no mundo da leitura, eu pude voltar a estudar, porque eu tinha parado no sexto ano

Mário Paulo Greggio
Consultor do Mais Diferenças

Um dos elementos diferenciais que os livros da plataforma oferecem é a chamada leitura fácil, uma forma de escrever para tornar conteúdos mais compreensíveis, considerando dificuldades de pessoas autistas, por exemplo. “O texto desse livro pode ser muito difícil de compreender, porque ele usa muitas metáforas ou porque ele usa um vocabulário muito rebuscado. Então, vamos aplicar a leitura fácil, a linguagem simples, que é uma série de diretrizes para facilitar o acesso e compreensão do texto”. Segundo Thaís, a experimentação constante e a revisão com o apoio de consultores com deficiência é essencial para aprimorar a acessibilidade da biblioteca, entre esses consultores está Mario.

 Captura de tela colorida da biblioteca virtual Mais Diferenças. No canto superior esquerdo a palavra Livros escrita na cor preta. Na imagem aparecem a capa de cinco livros: A bolsa amarela; o menino azul; daniel no mundo do silêncio; o discurso do urso e frritt-flacc. Ao fundo, tela azul.
Plataforma conta com obras clássicas em domínio público – Captura de tela / Biblioteca Virtual Mais Diferenças

Potencial da literatura para transformar vidas

Mário trabalha como consultor do Mais Diferenças há 12 anos e foi através do contato com os livros acessíveis que ele voltou a estudar e depois pôde se formar em Ciências da Computação. “Depois que eu entrei no mundo da leitura, eu pude voltar a estudar, porque eu tinha parado no sexto ano”. Atualmente, é graças a ele que melhorias são feitas na biblioteca virtual. “O Mário é uma pessoa que sempre foi nos dando devolutivas do que precisa para o site ficar mais amigável. A gente já tentou desenvolver o próprio texto do site em leitura fácil. O Mário é uma das pessoas que fala, não, está dando para entender. Ele foi fazendo essa consultoria”, relata Thaís Martins.

Na obra de Júlio Verne, que é a sua favorita, Mario também gosta da cronologia apresentada ao longo do livro com as datas dos acontecimentos e da relação que a obra possui com a ecologia e a natureza. “Acho que a plataforma está trabalhando para o site ser acessível para as pessoas com deficiência, com cada tipo. Isso que é importante o livro e o site serem acessíveis de acordo com a deficiência da pessoa”, acrescenta Mario.

Lara (em pé à direita) esteve presente no lançamento da plataforma (Foto: Mais Diferenças)

Lara Souto Santana é formada em Letras e atua como consultora de Audiodescrição para diversos projetos audiovisuais, incluindo o programa “Boas Práticas Escolares”, da TV Cultura. “Um trabalho feito para pessoas com deficiência, requer a consultoria de pessoas com deficiência e isso oportuniza que a gente protagonize esses trabalhos”, comenta Lara. A educadora explica que, apesar de não ser usuária da plataforma, ajudou a elaborar a audiodescrição de algumas das obras presentes na biblioteca virtual, considerando as diversidades das pessoas cegas.

Estima-se que “O Pequeno Príncipe” tenha vendido cerca de 200 milhões de cópias no mundo inteiro e tenha sido traduzido do francês original do autor Antoine de Saint-Exupéry para outros 300 idiomas. Ao redor de todo o globo, crianças e adultos têm essa obra como marcante em suas trajetórias de vida. A iniciativa de tornar livros acessíveis busca ampliar esse potencial de transformação da leitura, justamente por combater as deficiências que os materiais físicos ou digitais possam possuir diante das diversidades humanas. “Os livros são uma ponte e fazem grande diferença na educação e na cultura e a biblioteca dá a chance de você ampliar muito o seu repertório, isso é essencial para pessoas com deficiências”, destaca Lara Souto.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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