A essa altura do ano letivo, muitos estudantes vivenciam a expectativa das provas finais e, sobretudo, das férias escolares. Para o jovem autista e hiperativo Gabriel Mendes Ferreira, de 17 anos, o ano de 2023 acaba do mesmo jeito que começou: sentado na cama, na frente da TV, ao longo de horas. Foi assim que o encontramos em um barraco de dois vãos de madeira e papelão, localizado na Ocupação 15 de Novembro, em Paulista, Região Metropolitana do Recife. No local, além do adolescente, vivem os dois irmãos também autistas e a mãe Maria da Conceição Mendes.
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A mãe de Gabriel conta que, no final de fevereiro de 2022, tentou matricular o filho na Escola Professora Rubenita de Cavalcante, no bairro Arthur Lundgren II, a mais próxima da sua casa. “Eu falei com a diretora, Maria das Graças, e disse logo o que eles tinham, pois não adianta mentir. Ela disse que só podia matricular com o laudo [médico]. Ela disse que precisava do laudo para bater na porta da prefeitura para conseguir uma professora especial para ele”, relembra. Maria Conceição até tentou conseguir um laudo, mas no Posto de Saúde mais próximo só são atendidas pessoas de 0 a 12 anos e a partir dos 18 anos.
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Veja o que já enviamosPara conseguir um laudo para o filho, ela teria que levá-lo a um posto médico do Recife, a cerca de 18 km. “Eu disse a ela que não tenho dinheiro para pagar a passagem. Seria preciso pagar quatro passagens para mim e para ele, eu não tenho dinheiro. Então, ele ficou fora da escola”, explica. A única renda de Maria Conceição são os R$ 600 do Bolsa Família.
O dinheiro, apesar de pouco, é usado para várias despesas: R$ 150 da parcela do barraco de dos dois vãos, comprado por R$ 4 mil, R$ 135 é destinado à compra de medicamentos controlados e fraldas descartáveis e quando não recebe o Vale Gás, ela precisa comprar o botijão de gás que custa R$ 100. O pouco que sobra serve para comprar comida. Por isso, o orçamento não oferece brecha para o valor da passagem dela e do filho.
A dona de casa conta que se deu por vencida e manteve o filho fora da escola ao longo de todo o ano de 2022 e 2023. “Eu já sabia que não poderia matricular o menino sem o laudo, então, resolvi esperar, em dezembro ele completa 18 anos, aí eu já tenho o cartão, pego a ficha e o laudo aqui no posto para matricular na escola”, conforma-se.
A reportagem do #Colabora buscou um posicionamento da Secretaria Municipal de Educação de Paulista. Por meio de uma nota, o órgão afirmou que buscou informações junto aos gestores da escola Professora Rubenita, que afirmaram “desconhecer os fatos e que toda solicitação de matrícula é observada sem exigência de laudos”. Ainda segundo a nota, o município normatizou a dispensa do laudo médico formal como condição para realização da matrícula na resolução nº 1, de 6 de agosto de 2019, no artigo 27, §2º.
A especialista em educação inclusiva e presidente do Instituto Reinventando a Educação, Irene Reis, considera “inadmissível uma criança ser excluída da escola por causa de um laudo”. “Não é um pedaço de papel que deve impedir uma criança com neuro divergência de acessar a escola”, afirma categórica. Apesar disso, ela garante que situações como essa são bastante comuns, pois na verdade, “a escola condiciona a matrícula à apresentação do laudo para esconder o real problema: a falta de estrutura para atender a criança autista”, revela.
O desafio da inclusão de pessoas autistas na educação pode ser mensurado em números. Segundo o Censo Escolar 2022, cerca de 295 mil estudantes autistas estavam matriculados, em 2021, na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio das redes pública e privada. O dado representa um avanço, se comparado aos 77 mil estudantes registrados em 2017. Todavia, ainda se distanciam dos 2 milhões de pessoas autistas que deveriam frequentar a escola, segundo estimativas.
Fizemos um passeio pelas principais leis e notas técnicas dos órgãos oficiais na tentativa de entender como a questão do laudo médico é abordada. Na Constituição Federal de 1946, por exemplo, “a educação é definida como um direito de todos”. O texto não faz menção a nenhum tipo de exceção para pessoas neuro divergentes.
A Lei 9.394/96, conhecida como Lei de Diretrizes Básicas (LDB), de 1996, afirma, no Artigo 58, incisos de um a três, que a educação especial deve ser garantida ao estudante desde a pré-escola até às demais etapas. Ainda segundo o texto, caso o estudante não consiga se adaptar às salas de aula comuns, deve ter direito a atendimento especializado.
Em 2014, o Ministério da Educação (MEC) lançou a nota técnica nº 04/2014 para orientar as escolas sobre a realização da matrícula de estudantes com deficiência, transtornos globais e altas habilidades. Nesta definição, se encontram os autistas, hiperativos e pessoas com Transtornos do Déficit de Atenção e Hiperatividade (Tdah), além de outras neuro divergências.
Segundo o documento, “não há necessidade do laudo para a escola realizar o atendimento”, diz um trecho do texto. “Cabe ao professor elaborar um Plano de Atendimento Educacional Especializado (AEE), documento que comprova a efetivação do direito destes estudantes”, prossegue a nota.
“A exigência de diagnóstico clínico dos estudantes com deficiência se configura imposição de barreiras e cerceamento do direito”, arremata o texto em outro ponto. Irene Reis observa que muitas das famílias de estudantes autistas, sobretudo pretas e periféricas, que não tiveram acesso à alfabetização, desconhecem tudo o que dizem essas leis. “Por essa razão, essas mães ouvem um ‘não’ da escola e voltam para casa, não buscam os seus direitos”, enfatiza.
O laudo é um documento complementar
Na avaliação do professor Doutor da Universidade Federal do Paraná, Eduardo Lanuti, mais importante do que o laudo médico, são os registros pedagógicos que atestam o desenvolvimento integral do estudante. “Na escola, o laudo deve ser um documento complementar”, sentencia.
A escola, adiciona o professor, ainda não compreendeu a perspectiva da educação especial. Por essa razão, ainda está condicionada a um padrão ideal de estudante, seja acima da média ou abaixo da média. “A escola ainda não se acostumou com estudantes que tenham outras formas de desenvolvimento. O laudo é uma forma de classificar isso. Nenhuma classificação dá conta da singularidade de cada um”, arremata.
Em 2008, o Brasil instituiu a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva , que orienta as escolas na promoção da educação dos estudantes com deficiência, transtornos globais e altas habilidades. A política minimiza o aspecto terapêutico, reforçado pela ideia da construção de escolas e classes especiais para atender apenas pessoas com deficiência e reforça o caráter pedagógico a ser adotado em escolas inclusivas.
Lanuti avalia que nos últimos seis anos o Brasil sofreu uma interrupção na implementação da Política de Educação Especial direcionada à inclusão. “Especialmente na gestão de Bolsonaro, as perdas foram mais intensas.” A expectativa, prossegue o professor, era de que a política, que foi criada durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fosse retomada neste seu terceiro mandato.
Infelizmente isso não vem ocorrendo, frisa ele, que também alerta para o risco de ideias que estão sendo apresentadas pelo MEC e a Secretaria de Educação Especial (Secadi) com foco em planos de ensino exclusivos para alunos com deficiência. “Nós precisamos de mecanismos para tornar a escola mais acessível às crianças com deficiência e não pensar planos específicos para esse público”, destaca.
O laudo não é o único problemaA história que trazemos agora parece inventada, mas é real. As pessoas envolvidas concordaram em serem entrevistadas, desde que todas as informações sobre a sua identidade fossem mantidas em sigilo. O pequeno município onde este fato vem ocorrendo fica no alto sertão de Alagoas. A mãe teme que ao ter o seu nome revelado, tanto ela, quanto o filho tenham problemas com a gestão da escola.
Para Carla (nome fictício), agricultora alagoana, de 25 anos, moradora de um sítio a poucos quilômetros do centro da cidade, conseguir o laudo médico para o filho autista, de 9 anos, não foi o maior dos problemas. Mesmo com o laudo em mãos, a agricultora conta que a escola não tinha professora especializada em educação especial para auxiliar no desenvolvimento integral do seu filho.
Para não deixar a criança fora da escola, a mãe aceitou cumprir o papel de professora de apoio, mesmo sem ter formação pedagógica ou em educação especial e sem nenhuma remuneração. “A professora disse que ele poderia frequentar as aulas, porém, não teria uma profissional para auxiliá-lo no aprendizado. Ela, a professora comum, já cuidava de uma sala inteira. Foi aí que eu aceitei cumprir o papel de professora de apoio”, recorda.
Desde então, a agricultora cumpre expediente na escola de segunda a sexta, das 13h às 17h. Sem formação específica para o cargo, a mãe passa o tempo na escola cuidando do filho à luz dos mesmos conhecimentos instintivos que a guiam desde quando ele nasceu e ela não conhecia nada sobre autismo. Ela conta que, após trabalhar três anos de forma voluntária, este ano, a Prefeitura local a contratou.
O advogado Arthur Toledo observa que em ambos os casos “há uma omissão estatal”. Inicialmente, na concessão do laudo ao jovem Gabriel e na recusa em realizar a sua matrícula, e segundo, em não oferecer um professor de apoio com a devida qualificação para o estudante alagoano. Mesmo frequentando a escola, o estudante de Alagoas não está tendo acesso aos estímulos pedagógicos para o seu desenvolvimento integral.
Mães sofrem com a falta de inclusão escolar
Diretora da ONG Afeto, que presta apoio clínico e educacional ao desenvolvimento de pessoas autistas, Ângela Lira diz que muitas escolas “realizam a matrícula para cumprir a lei, mas demoram a implantar o serviço”. Segundo ela, é muito comum as mães ficarem aguardando meses até que a escola disponibilize uma professora de apoio. “Por isso, muitas mães aceitam acompanhar os filhos na escola, mesmo sem ter formação”, justifica.
Em outros casos, afirma Ângela, é muito comum que as crianças se matriculem, mas permaneçam na escola sem passar por um cronograma de atividades. “Com o passar do tempo, a escola vai se distanciando do autista. Ele fica em sala de aula sem atividade”, observa. Quem viveu situação parecida foi o menino Enzo do Nascimento, de sete anos, autista nível três. A mãe do garoto, a enfermeira Francineide Nascimento, conta que matriculou o filho, no fim de 2021, no Colégio Adventista Unidade Arruda, uma das mais tradicionais redes privadas de ensino do Recife. No ato da matrícula, ela não informou que ele era autista. No início de 2022, a jovem procurou a coordenadora pedagógica para informar que ele era autista e solicitar a estrutura necessária para inclusão.
Francineide avalia que a escola realiza a matrícula, mas não garante a inclusão. Ela relata que, ao longo de todo ano de 2022, o filho realizava algumas atividades escolares, mas não tinha total aproveitamento. “A atividade [do fiho] não é feita, tudo dele é esquecido. Eu fui levando, fui contornando até meados de 2023”, explica. No início do segundo semestre deste ano, a mãe afirma que a situação se agravou e ela perdeu a paciência. “A gota d’água foi a semana de prova em que a professora organizou as provas dos outros 31 alunos, mas ele [o meu filho] não fez nada. Nem as atividades do dia a dia, independente das provas, ela realizou. Ela não tocou no meu filho na semana de prova,” relata indignada.
Francineide notificou a escola na Secretaria de Educação e que, ao chegar no órgão, soube que já tinham sido realizadas outras queixas sobre a educação especial oferecida nesta unidade escolar. “Tenho que esperar que a Secretaria de Educação resolva o problema, se não resolver, pretendo acionar o Ministério Público”, avisa a mãe. A reportagem do #Colabora entrou em contato com o Colégio Adventista unidade Arruda para ouvir um posicionamento sobre o relato da mãe Francineide Nascimento. Até o fechamento desta reportagem, não recebemos retorno.