(Shireen Daft*) – A recente atenção da mídia atraiu o foco do mundo inteiro para o número crescente de estudantes iranianas que adoeceram nos últimos meses devido a suspeitas de ataques químicos. As contas diferem, mas relatórios citam mais de mil casos de envenenamento em escolas em todo o Irã. Pelo menos, 58 escolas em dez províncias do país foram afetadas.
Os primeiros casos conhecidos foram relatados na cidade de Qom, ao sudoeste da capital, Teerã, em novembro. Houve uma escalada de casos registrados, com 26 escolas afetadas em uma onda de ataques na semana passada. Alunas relataram problemas respiratórios, náuseas, tonturas e fadiga – várias meninas hospitalizadas. Os pais têm mantido suas filhas longe da escola para protegê-las desses ataques.
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A crescente agitação pública e a atenção internacional levaram o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, a denunciar publicamente os ataques como um “crime grave e imperdoável”, prometendo investigação e punição rápida para os responsáveis.
Esse cenário ocorre após meses de declarações contraditórias de funcionários do governo, a prisão de um jornalista que investigava o assunto no início desta semana. e o uso de gás lacrimogêneo para dispersar uma manifestação organizada sobre os envenenamentos em Teerã no último domingo (05/03).
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Veja o que já enviamosMuitos consideram os ataques uma resposta direta aos protestos em andamento no Irã desde a morte de Mahsa Amini – jovem que morreu após ser detida pela Polícia da Moralidade, por uso infringir o código de vestimenta da República Islâmica, em setembro. Estudantes, principalmente universitários, mas também alunas de diferentes escolas, estiveram na vanguarda desses protestos.
Até o momento, não há evidências diretas sobre quem é o responsável pelos envenenamentos e continua a incerteza sobre como eles são realizados. Parte da dificuldade em coletar informações vem dos limites extremos impostos à liberdade de imprensa no Irã. Houve apelos da comunidade internacional para que as Nações Unidas conduzissem uma investigação independente.
No Irã, há quem questione, se de fato, houve algum ataque químico. A especulação é que as reações da menina evidenciam uma doença psicogênica em massa. Isso não seria inédito – em uma investigação sobre supostos envenenamentos de meninas no Afeganistão entre 2012 e 2016, a ONU concluiu, depois de não encontrar vestígios de gás químico ou veneno, que era provavelmente o resultado de uma doença psicogênica em massa, .
No entanto, a realidade é que substâncias venenosas podem se degradar rapidamente, especialmente o dióxido de nitrogênio, que uma investigação do governo do Irã indicou que pode ser a causa do mal estar sofrido pelas estudantes. Também houve relatos não confirmados de testemunhas de objetos suspeitos jogados em pátios das escolas.
Ameaças globais à educação de meninas
Outra razão pela qual os envenenamentos deliberados das alunas iranianas são tão críveis é que está longe de ser incomum. Embora a educação, incluindo a educação de meninas, seja altamente respeitada no Irã, alunas em todo o mundo são frequentemente alvo de ataques.
Relatório conduzido pela Global Coalition to Protect Education from Attack analisou os ataques à educação de meninas entre 2014 e 2018 em regiões de conflito e instabilidade. Constatou-se que alunas e professoras foram alvos diretos em, pelo menos, 18 países – Afeganistão, Camarões, República Centro-Africana, Colômbia, República Democrática do Congo, Egito, Índia, Iraque, Líbia, Mali, Mianmar, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Sudão do Sul, Síria, Venezuela e Iêmen.
São ataques dos tipos mais variados, incluindo a explosão de bombas em escolas femininas e o sequestro de meninas. Professores e alunas foram atacadas a caminho da escola ou enquanto estavam lá. Também houve relatos de violência sexual e, às vezes, casamento forçado de meninas e suas professoras.
Um dos casos mais infames de violência contra meninas por “ousar” frequentar a escola continua sendo o de Malala Yousafzai, baleada na cabeça em 2012 no Paquistão. Há também formas menos diretas de ataques, como fechamento de escolas para meninas e seu reaproveitamento instituição para meninos, ameaças de manter as meninas longe da escola e a imposição e aplicação violenta de códigos de vestimenta restritivos.
Os ataques a escolas aumentaram acentuadamente nas últimas décadas, mas essa escalada foi particularmente aguda em relação às escolas dedicadas a meninas. Com muita frequência, esses ataques ficam impunes.
O impacto dos ataques à educação de meninas
Ainda que os efeitos dos envenenamentos nas alunas iranianas até agora não tenham mostrado evidências de impactos graves na saúde das vítimas, há efeitos psicológicos previsíveis após ser alvo de um ataque sistemático e de gênero, e também podem haver efeitos físicos desconhecidos como consequência.
Além do impacto direto sobre o direito de todos a uma educação para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e da dignidade, os ataques à educação têm um efeito profundo e duradouro sobre as meninas.
Meninas privadas de educação têm maior probabilidade de serem vulneráveis a casamentos infantis ou forçados, geralmente resultando também em autonomia reprodutiva e sexual reduzida. Há também maior risco de violência doméstica e de uma vida de pobreza. Ataques a escolas também têm sido associados a uma maior probabilidade de meninas serem forçadas a aderirem a grupos armados ou se tornarem vítimas de tráfico humano e sexual.
De maneira mais geral, a violação do direito à educação e a discriminação sistêmica de gênero resultam em meninas e mulheres com menos oportunidades de participar de forma significativa na vida política, cultural e social. Essa perda afeta não apenas meninas e mulheres individualmente, mas a sociedade em geral.
Infelizmente, não há solução simples para esses ataques à educação de meninas. Embora a investigação e o julgamento dos responsáveis no Irã sejam um passo importante para a responsabilização, eles não abordam os problemas subjacentes.
A educação de meninas sob ataque sempre fará parte de contextos mais amplos de discriminação sistêmica e generalizada contra mulheres e sistemas de opressão que reforçam atitudes estereotipadas em relação a meninas e mulheres.
Mas proteger o direito das meninas à educação deve ser a pedra angular de qualquer esforço em direção à igualdade de gênero. Tais ataques flagrantes e horríveis contra meninas nas escolas, como no Irã, deveriam servir como um alerta para mudanças urgentes.
*Shireen Daft é professora da Escola de Direito da Maquire University (Austrália), com especialização em Direito Internacional, Direito Internacional Humanitário, Justiça Criminal e Fundamentos do Direito