O grupo de leitura Lucília Garcez (homenagem à escritora fundadora) se reúne uma vez por mês, em Brasília, na casa de cada um dos treze integrantes. Como cabe a um grupo de leitura, os frequentadores se encontram para debater a leitura do livro escolhido para aquele mês. Para que a discussão seja mais saborosa, são servidos pães de queijo, café e vinho. Nesse ambiente de cultura e gastronomia, frequentado pela classe média da capital do país, em um dos encontros, o poeta Wilson Pereira se sentiu inquieto e incomodado com a tranquilidade do ambiente. A escritora Claudine Duarte, que faz parte do grupo, consegue reproduzir exatamente o que disse o amigo: “Nós estamos aqui, esse grupo se reunindo, tomando café, vinho, pão de queijo e estamos crescendo como pessoas e como leitores. Mas o que nós estamos fazendo pela sociedade? Acho que nós temos que levar essa nossa experiência para um grupo de adolescentes de escola pública”.
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Com aquele brado de inquietação, Wilson lançou as sementes do Calangos Leitores, um projeto de leitura em escolas públicas do Distrito Federal que, desde 2016, já incentivou, ou mesmo introduziu, o hábito da leitura em cerca de 500 alunos do ensino médio em escolas de dez bairros de Brasília e outras cidades do Distrito Federal. A abrangência e a eficácia do projeto se traduzem em reconhecimento. O Calangos Leitores foi finalista por dois anos (2018 e 2023) do Jabuti, o mais importante prêmio da literatura brasileira, nas categorias Formação de Novos Leitores e Fomento à Leitura.
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Veja o que já enviamosClaudine Duarte não titubeou. Recebeu o posto de coordenadora-geral do Calangos Leitores, arregaçou as mangas e foi, juntamente com outros idealizadores, cumprir a função social a qual Wilson Pereira exortou o grupo a cumprir. O projeto começou o trabalho em uma escola de ensino médio, no Lago Norte, um dos bairros de maior poder aquisitivo e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Distrito Federal, mas que recebe alunos de regiões bem menos favorecidas, como o Varjão, que fica ao lado, e o Paranoá, também próxima.
O Calangos Leitores herdou o formato do clube em que surgiu. Uma vez por mês, alunos das três séries do ensino médio recebem um livro que terá que ser lido e discutido com todo o grupo, em forma de roda de conversa, com cada um dizendo o que achou e se gostou ou não. Além da leitura em si, esse formato de debate é um dos atrativos para os alunos participarem. “Eu acho legal compartilhar com as pessoas o que eu acho sobre a leitura. Quando a gente lê alguma coisa e compartilha com as pessoas, e ouve das pessoas diferentes perspectivas daquela obra, eu acho que a gente expande mais a nossa mente, a nossa visão sobre aquilo. A gente nunca vai conseguir interpretar uma obra de todas as formas possíveis”, argumenta Lorrana Santana, aluna do terceiro ano no Centro de Ensino Médio Júlia Kubistchek, na Candangolândia, cidade ao lado de Brasília, uma das escolas onde o Calangos forma leitores.
A prática de compartilhar interpretações diferentes ajuda em algo fundamental em um país que está dividido nos últimos anos: a se respeitar a opinião alheia quando ela é diferente da nossa. “A gente vive em um meio muito dividido, polarizado, principalmente no campo político, cada pessoa tem a sua opinião. Antes do Calangos Leitores, eu ficava sem entender por que a pessoa pensava daquela forma. Hoje em dia eu entendo que é normal e eu respeito totalmente. Antes eu respeitava também, mas queria interferir de alguma forma, e isso não vai mudar o fato de que a pessoa tem a sua opinião”, complementa Lorrana. “Aqui não têm disputas “, garante Ester de Souza, do terceiro ano. “A maioria das pessoas aqui não é da mesma sala, não são do mesmo ciclo de amigos aqui na escola, mas aqui a gente consegue interagir de uma forma amigável, educada“. Segundo ela, quem participa do Calangos consegue ter companhia de verdade. “É melhor estar no Calangos do que na rede social. A rede social, a internet, se tornou algo fundamental, mas acho que ela nunca vai conseguir superar ou estar no nível de pessoas próximas, de verdade, de uma conversa, um diálogo presente, nunca vai se aproximar disso”.
A coordenação tem o cuidado de entregar a mesma edição da obra, para evitar uma possível divergência entre um exemplar e outro e, porventura, atrapalhar o debate. Ao longo do ano, as leituras se revezam entre dois clássicos brasileiros, dois clássicos universais, dois best-sellers e dois autores que morem em Brasília. Neste último caso, é possível a presença do autor na roda de conversa, o que anima ainda mais a discussão, pois serão as impressões de quem escreveu com as impressões de quem leu.
O grupo é formado por vinte alunos e cinco pessoas envolvidas na coordenação. Todos os meses, são adquiridos vinte e cinco livros escolhidos pelos próprios alunos dentro de alguns critérios como preço, se a obra está em catálogo e os gêneros literários trabalhados pelo clube (conto e romance). Os livros ficam com os alunos, são presentes do Calangos, eles não precisam devolver como na biblioteca. No meio da conversa sobre o trabalho do Calangos, a surpresa: em sua maioria, o grupo, que nasceu quando o mundo vivia a explosão da era digital, prefere o livro físico ao e-book. “Acho que um dos fatores para isso é a visibilidade do livro físico”, arrisca Anna Cristina de Araújo Rodrigues, outra coordenadora do projeto. “Eles gostam do cheiro do livro e da possibilidade de marcar, de voltar (a página)”, completa Claudine. “Poder dizer que o livro é seu, ler, abrir a hora que você quiser, ler como você quiser…”, completa Esther . “Acho que é um estado de pertencimento, e uma sensação muito boa você poder ter ali (o livro). Ter o livro físico é muito melhor do que você ler no celular, é uma outra experiência, uma experiência melhor, diferente, melhor do que você só rolar o dedo (pela tela)”, explica melhor a aluna.
Participação de autores
Os livros são adquiridos com desconto junto a parcerias do Calangos com distribuidoras e livrarias (a livraria Leitura, por iniciativa do gerente de uma das lojas em Brasília, já presenteou o projeto). Em alguns casos, o próprio autor doa os exemplares. Foi o caso da escritora Patrícia Baikal e seu romance Mulher com Brânquias. “Com o projeto dos Calangos Leitores, é possível vislumbrar um pouquinho do impacto dos nossos livros nas pessoas, e esse processo é muito rico. Alguns alunos falaram de como superaram alguns medos após ler o (meu) livro e isso já fez valer a pena ter escrito a história”, comenta a autora.
No geral, o incentivo para que os alunos peçam para participar do Calangos Leitores está na própria sala de aula. Quando o projeto chegou ao Júlia Kubistchek, esse incentivo estava nas aulas de português da professora Fernanda Mourão, hoje coordenadora do colégio. “Foi um trabalho de formiguinha. Muitos vieram a partir das histórias que a gente contava em sala de aula, e aí eles ficaram interessados. ‘Ah, eu posso ir só pra ver como é que é? Aí acabam gostando, e ficam”, explica Fernanda.
A aluna Victória Cristina já tinha tradição de leitora, que foi aprimorada no Calangos leitores, “Principalmente por causa da professora Fernanda”, garante. “Ela (Fernanda) me incentivou a entrar, mas eu não queria porque eu sou muito tímida, e no clube do livro eu me senti acolhida. Ninguém ia me julgar, porque estava todo mundo falando sua própria opinião sobre o livro”, conta Victória Cristina. A dinâmica de expor na frente dos colegas as impressões sobre o que leu durante um mês e o acolhimento dos colegas de roda de leitura ajudaram a trabalhar a timidez da aluna, que se prepara para uma missão que, ano passado, simplesmente não conseguiu cumprir, por causa da vergonha: apresentar o trabalho da turma na feira de ciências. “Hoje eu falo sobre o livro, sobre o que eu estou sentindo e sobre qualquer outra coisa”, resume Victória.
A aluna parece ser o exemplo de como o binômio escola x família é decisivo na formação de um leitor. “Desde criança minha mãe sempre me incentivou a ler. O primeiro livro que eu li na vida foi Meu Pé de Laranja Lima (José Mauro de Vasconcelos), e aí eu chorei, eu não entendia o que eu estava sentindo, eu era muito criança. Eu não entendia a sensação que eu estava tendo com aquele livro. E quando eu entrei nos Calangos, eu pude entender e desfrutar mais das minhas emoções, porque você pode compartilhar com outras pessoas e aí elas podem ter a mesma sensação ou não”. Victória lembra que depois de Meu Pé de Laranja Lima pegou para ler O Médico e o Monstro (Robert Louis Stevenson), mas confessa que não entendeu nada, só que agora está disposta a enfrentar o desafio de reler o livro. “O clube do livro incentiva isso”, assegura.
Eveni Lopes, também do terceiro ano, confessa que antes do Calangos era uma leitora desleixada. Rindo, admite que só lia livros com gravuras. “Eu fui aos poucos mudando minha percepção de leitura, porque minha mãe lê muito e minhas duas irmãs mais velhas leem muito também e eu queria ser um pouco mais parecida com elas”. Ela faz um paralelo entre a facilidade com que os livros do Calangos são lidos e a dificuldade que existe para que o mesmo aconteça com os livros de disciplinas curriculares, como literatura. “Acho que é a forma de incentivo. Acho que a sensação de obrigação torna algo muito sufocante. E aqui não, você tá participando porque você quer, porque é uma experiência boa. Quando alguém, em vez te dar essa opção, impõe ela, eu acho que se torna algo muito sufocante”.
Talvez exatamente por não ser obrigatório, haja tanto interesse da parte dos jovens. Assim como em outros colégios, no Júlia Kubistchek existe fila de espera para entrar, o que geralmente só acontece quando um aluno se forma no ensino médio e toma seu caminho, abrindo vaga no clube. Por causa da procura, o frequentador precisa ter assiduidade. “Ninguém é obrigado a entrar, mas quem entra precisa ler e estar presente”, adverte a professora Fernanda Mourão, uma das responsáveis pela indicação de quem vai participar do projeto. O interesse do aluno, claro, é quesito determinante.
Olhar mais crítico
Na prática, o que o clube de leitura melhorou na vida de cada aluno? A aluna Sarah Lorrane enumera. “Melhorou a minha escrita, melhorou meu vocabulário, melhorou a minha fala, melhorou meu raciocínio. Eu consigo focar mais. Antes tinha muita dificuldade. Agora, lendo um livro, eu consigo prestar mais atenção às coisas.”
“(Melhorou) A postura deles. A forma de apresentar, de falar deles. A capacidade de análise, de expressão. Havia uma professora que trabalhava aqui na biblioteca que me cutucou dizendo ‘Você percebeu como eles estão falando diferente?’”, conta Fernanda Mourão. “Soma-se a tudo isso o amadurecimento dos jovens como pessoa, a aquisição do olhar crítico”, acrescenta. Por sua vez, Anna Cristina cita “a capacidade que eles adquiriram de fazer conexões, associações entre um livro e outro, o que possibilita que uma jovem de 17 anos faça uma relação de personagens de um livro de um autor que more em Brasília com a obra de Dostoievski, um dos maiores escritores de todos os tempos”.
Muitas vezes, os alunos fazem essa associação com a própria vida. Um exemplo disso aconteceu quando o grupo trabalhou o romance O Quinze, de Rachel de Queiróz, que fala sobre a seca de 1915, uma das maiores do Nordeste. “Muitos deles têm avós nordestinos que viveram aquela experiência de serem retirantes, de enfrentarem período de seca, ter que ir embora, morar longe, separar família”, conta Anna Cristina. “Teve um que falou assim: “Agora eu entendi minha vó”, conta Claudine. “Quando você não lê, quando você não tem essa possibilidade, você só fala o que você escuta. Leitura nos faz crescer como pessoa. As pessoas começam a ter mais valores através do que estão lendo”, resume Sarah sua visão de quem está mergulhando no imenso oceano da leitura.
Ouvindo os depoimentos de alunos, professora e coordenadoras, chega-se à conclusão de que o Calangos Leitores é mais do que um clube de leitura, é um clube de fortalecimento de relações pessoais, em uma época de tanto distanciamento entre as pessoas, fortalecimento que alcança também a família do aluno. “Uma aluna disse que depois de falar sobre o livro pra mãe, a mãe também quis lê-lo. E aí ela e a mãe revezavam o livro: enquanto a menina estava na aula, a mãe lia o livro e, quando a menina voltava pra casa, ela lia o livro. E ambas podiam discutir sobre livro nas horas vagas”, ilustra a escritora Patrícia Baikal. “Minha mãe ama falar para as amigas que tem uma filha que participa de um clube de leitura”, conta Eveni. “Ela chega assim: a Eveni leu 12 livros este ano. Dá licença! Ela está lendo um livro desse tamanho assim. Você acredita?”. E, imitando a mãe, a aluna desperta as risadas das colegas.
Em tempo: Calango é um pequeno, simpático e inofensivo lagarto do cerrado, comum até mesmo nas áreas urbanas. Que o projeto que leva seu nome continue trabalhando para que no futuro, quem sabe, ler seja muito menos um motivo de orgulho e muito mais algo diário e corriqueiro no país.