Por Carolina Cunha Ribeiro (1) e Lícia Carvalho Marques (2)
Nossas crianças estão em casa há quase seis meses e, apesar de haver rumores sobre o retorno às aulas, não há certeza alguma ou decisões governamentais e/ou coletivas que nos transmitam o mínimo de segurança e estabilidade, necessárias para a confiança no retorno. Por conta disso, precisamos olhar com atenção para a saúde psíquica delas. Esse olhar é fundamental para evitar ou minorar sofrimentos psicológicos agudos. Nesse sentido, algumas questões importantes precisam ser consideradas: Quais os afetos que estão circulando nesses tempos pandêmicos, principalmente no seio das famílias, e como os adultos estão lidando com eles? Qual o impacto sobre as crianças do distanciamento, por tanto tempo, do convívio social? Quais os efeitos psicológicos do afastamento da escola? E, por fim, quais os efeitos psíquicos do confinamento prolongado que provoca a escassez de atividades físicas, contato com outras crianças, com a natureza e o aumento da exposição às telas de TV, celular e computador?
Podemos começar com algumas perguntas dirigidas aos pais: De que forma nós, adultos, estamos atravessando a pandemia? Como estamos lidando com os afetos envolvidos: medos, inseguranças e limitações (de liberdade, de ir e vir, de saúde e de sobrevivência)? O que estamos transmitindo sobre essas dificuldades para os nossos filhos? Como imaginamos que as crianças estão reagindo, elas cujo arcabouço psíquico ainda está em formação?
Portanto, a primeira reflexão que gostaríamos de provocar diz respeito à sobrecarga emocional das crianças. Em algumas situações, pelo fato de não estar apresentando um sintoma evidente ou tido como patológico, concluímos que a criança está bem. Entretanto, nem sempre o que não conseguimos perceber deixa de existir e provocar seus efeitos. Convidamos nossos interlocutores a um exercício simples: vamos pensar no custo psíquico que está sendo para nós, adultos, lidar com a realidade sem adoecer mentalmente. Não resta dúvida que estamos realizando um esforço grande. Podemos, portanto, concluir que as crianças também estão sofrendo, mesmo as que não estão externalizando esse sofrimento através de sintomas psicológicos.
Muitos de nós estão sofrendo com perdas significativas, que vão desde o emprego até membros da família e amigos. Não há como não passar os sentimentos aí envolvidos para as crianças. Elas, certamente, serão atingidas. Blindá-las contra as perdas e contra essas dores não só é impossível, como não é recomendado. Ao tentarmos apartar nossos filhos das perdas da vida, acabamos por apartá-los da própria vida, pois esta comporta perdas inevitavelmente. Quando procuramos evitar a todo custo o sofrimento deles, o que acabamos por conseguir é criar filhos imaturos e incapazes de transformar as inevitáveis frustrações da vida em algo positivo e/ou construtivo. Desaparelhamos nosso filhos para poderem crescer com os erros, os tropeços e os desapontamentos da vida.
Ainda com relação aos afetos, é importante ressaltar que o medo faz parte do processo de estruturação psíquica do humano e é parte integrante da infância. Ele começa inominável e as crianças, à medida que vão se desenvolvendo, colocam cara, corpo e palavras nele: é o monstro debaixo da cama ou dentro do armário, o fantasma atrás da porta, o medo do escuro. O medo, com o passar dos anos, normalmente, vai arrefecendo e dando lugar a um sentimento de maior segurança e autonomia diante dos desafios da vida. Entretanto, o que estamos vendo no momento é um retorno de medos já superados e muitas crianças estão buscando um conforto extra junto aos pais. Através de comportamentos que podem soar como “regressivos”, como por exemplo, demandar mais presença, mais colo, voltar a procurar a cama dos pais na madrugada, as crianças buscam a retomada da segurança perdida.
Bom, se pensarmos que estamos aprendendo a conviver com um inimigo invisível e desconhecido, que provoca medo e insegurança, é possível supor que essas dúvidas estejam atingindo as crianças. Cabe a nós, adultos, atuarmos como curadores das informações que são passadas aos nossos filhos, procurando proporcionar não um escudo protetor, mas um filtro que leve em consideração sua condição de seres em desenvolvimento.
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Veja o que já enviamosA pandemia deixou exposto o que todos nós, de alguma forma, sabemos: que somos mortais. O fato de sabermos de nossa finitude, no entanto, não nos capacita a lidar com esse fato. Passamos a vida tentando contornar a morte, criando meios de lidar com ela e maneiras de nos conectarmos com a vida, apesar da certeza da finitude. A pandemia causada por um vírus mortal atingiu em cheio nossas ferramentas para driblar o medo da morte.
Dessa forma, é importante falar com nossos filhos sobre a morte, falar com o devido cuidado para não assustá-los ainda mais, mas também visando a não deixar silencioso o assunto que está em nossas mentes, agora de forma mais concreta que nunca. Conversar fazendo uso de palavras acessíveis para a criança e atinentes ao seu universo pode dar um importante e necessário contorno para a angústia. Livros que falem sobre perdas, morte e luto podem ser muito interessantes. A literatura, com seus elementos narrativos e imagéticos contribui no processo de simbolização. Através de uma história contada a criança pode se conectar com sentimentos penosos que, quase sempre, busca evitar.
Ainda sobre importantes recursos psíquicos que se encontram prejudicados com a pandemia e que, por isso, precisam ser vistos com atenção nesses tempo pandêmicos, há o afastamento do ambiente público e do convívio presencial com praticamente todos que compunham o repertório social da criança. As queixas de saudades dos amigos, dos professores e do ambiente escolar têm sido recorrentes nos lares. A escola, que se constitui, juntamente com a família, num dos dois pilares da sociabilização infantil, sofre um questionamento sobre a data para o retorno de suas atividades presenciais. É nesse espaço que as crianças podem conviver com diferentes olhares e etiquetas comportamentais, diferentes “sotaques emocionais”, que são importantíssimos para a ampliação do repertório psíquico em formação. A criança, ao frequentar o ambiente escolar, sai do restrito convívio familiar, onde o “amor incondicional”, os laços emocionais, as expectativas e os limites parentais costumam dar o tom. Visando ao enriquecimento do repertório psíquico infantil, as interações sociais extrafamiliares são fundamentais por se tratarem de relações que não são permeadas exclusivamente pelas questões amorosas dos envolvidos. Esses outros olhares engendram outras formas de comunicação e trocas, provocam deslocamentos subjetivos e ampliam o escopo psíquico das crianças e adolescentes.
Na escola, as relações ocorrem de formas variadas, impulsionando a convivência com a alteridade, elemento tão importante para a formação de sujeitos. Como disse a psicanalista francesa Françoise Dolto, “uma criança tem necessidade de outras crianças para vacinar-se contra a agressividade da vida em comunidade, e para estruturar-se.”
Outro aspecto para o qual consideramos importante chamar atenção diz respeito às demais interações sociais que ficaram empobrecidas e escassas, acontecendo basicamente através das telas. Embora concordemos com o fato de que o excesso de exposição a eletrônicos não é recomendado – aliás, para o que podemos recomendar o excesso? – estamos sendo levados a rever as recomendações de tempo e frequência do uso de telas. Não apenas porque o próprio ensino está se dando através de plataformas digitais, como também pelo fato de que os jogos eletrônicos e as redes sociais foram, com a pandemia, alçados à categoria de únicas oportunidades de um mínimo de interação social com os pares e com o mundo. Nesse contexto, como restringir seus usos à temporalidade anterior à da pandemia? Por outro lado, vemos também que as telas viraram o “refúgio” dos pais (o que já era muito criticado anteriormente) e um certo “refúgio” também para as crianças. Como disse o escritor Julian Fuks, “apelamos como nunca (às telas), a qualquer ficção que distraia a criança de sua clausura, que a afaste de sua tristeza – extrapolando a presença do que é alheio a seu mundo particular, alienando a criança de sua própria intimidade.”
No sentido de evitar os excessos, acreditamos que a curadoria do uso das telas faz parte do exercício da parentalidade. No entanto, essa tarefa, que nunca foi simples, ficou ainda mais complexa. Envolve dosagem de tempo, monitoramento, orientações, conversas, diálogos, negociações e… renegociações dos limites impostos, conversas, monitoramento, orientações… tudo isso precisa ser mantido e sustentado pelos pais diuturnamente. Lembrando sempre que incluir a criança na formulação desses contratos aumenta a efetividade dos mesmos. Quando a criança é ouvida e participa da elaboração das regras, o nível de adesão ao contrato é maior.
Por fim, gostaríamos de abordar um outro efeito negativo do confinamento prolongado: a falta de atividade física, que gera, entre outras, questões de ordem psicomotora. As crianças, com o gasto de energia drasticamente reduzido, estão ficando “mais agitadas” e ansiosas dentro de casa. Dependendo de como está a rotina dessas crianças, onde moram, se vivem numa casa cheia e sem espaço, vão apresentar maiores ou menores dificuldades. Elas se revelam em alterações do sono e do apetite, letargia ou agitação, falta de motivação e ansiedade. A criança precisa se movimentar, o uso do corpo é fundamental para dar contorno às suas angústias, por se tratar de uma forma de vinculação energética. Crianças com mais necessidade de explosão, expansão, estão mais hiperativas, mais “coladas” também, demandando maior presença dos pais. O acúmulo de energia corporal/psíquica pode trazer mais pedidos de colo, de contato corporal, manhas mais exageradas, muitos pedidos de dormir junto, pedidos esses que se juntam ao medo, gerando uma demanda de atenção ainda maior, já que esse é o afeto que mais está circulando.
Devemos ter em mente que estamos vivendo uma situação excepcional e situações excepcionais demandam saídas excepcionais. Não dá, nesse momento, para ficarmos fixados em saídas que funcionavam antes e que podem não mais funcionar. Temos que estar atentos e manter um diálogo acolhedor e atencioso com nossos filhos, lembrando que isso deve ser feito numa linguagem acessível à criança. Nas palavras do psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, “muito comum é sentir que há algo funcionando mal em alguma dimensão da vida, mas as palavras ainda não surgiram para nomear claramente o que vivemos. Há um alento sublime quando a palavra finalmente chega para dar forma ao que antes era apenas uma sensação. A palavra é a moldura das experiências humanas. Por meio dela colocamos nome e adjetivo àquilo que vivemos.”
Nossa tutoria nestes tempos pandêmicos deve ser mais cuidadosa e atenta. Falar com as crianças é a peça chave para ajudar em sua saúde mental. Antes de pensar em procurar um profissional, experimente mobilizar os recursos “naturais” que temos para enfrentar o sofrimento: a palavra compartilhada, o afeto e a compreensão, a empatia e a tolerância. Não esqueça de usar a sabedoria própria, que buscamos em nossas experiências, genealogias e relações. Estamos numa encruzilhada e nenhuma das saídas é plenamente eficaz. Temos que escolher as menos perniciosas e agir de forma a garantir o máximo de segurança possível para todos: crianças, adolescentes e pais. Olhar para as crianças e observar o que elas nos transmitem é uma maneira de nos aproximarmos delas.
Quando isso não é suficiente, quando mesmo assim a angústia permanece, considere um segundo critério, a emergência de sintomas: ideias fixas e circulares, queixas recorrentes, fobias, empobrecimento ou ausência do brincar, ansiedades, mudança no sono e no apetite, apatia, isolamento. Tudo o que foi alterado para mais ou para menos nas próprias funções psíquicas: humor, atenção, sono, alimentação, excreção, vitalidade. Nem toda forma de sofrimento requer tratamento, mas o sofrimento mal tratado, negado ou não reconhecido evolui para a formação de sintomas.
Acreditamos, assim como muitos vêm apontando, que é perfeitamente possível extrair importantes aprendizados da situação que estamos vivendo. Podemos tirar lições como: empatia, autocuidado, cuidado com o outro, saber lidar com o tédio, com “o nada para fazer”, manejar frustrações. A partir daí, quem sabe, seja possível extrair resultados não só positivos como até criativos. Mas, isso só será possível com olhar atento, cuidadoso e acolhedor e fazendo a palavra circular.
- Carolina Cunha Ribeiro – Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pesquisa em medicalização da infância. Psicanalista com especialidade em crianças e adolescentes.
- Lícia Carvalho Marques – Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-RJ, Psicanalista e Psicóloga do Poder Judiciário – RJ.