As complicações do diabetes fizeram com que Maria da Conceição de Souza precisasse amputar as pernas há alguns anos. Mesmo com ausência dos membros inferiores, no entanto, a idosa de 86 anos ainda se lembra com clareza do toque das duas filhas recém-nascidas, que foram levadas por agentes de saúde logo após os partos, ambos há mais de cinco décadas: doente de hanseníase e internada compulsoriamente em hospitais-colônia de Minas Gerais e do Rio, esse foi o único contato dela com as duas meninas.
As bebês não puderam ser embaladas pela mãe ou amamentadas. Ela viu a violência se repetir: logo depois de a menina nascer, era levada à força como parte da política de Estado que isolava doentes de hanseníase e separava filhos e filhas de seus pais e mães. Dona Santinha, como Maria da Conceição é conhecida, nunca mais teve notícias das meninas.
[g1_quote author_name=”Dona Santinha” author_description=”Doente de hanseníase, internada desde a década de 1960″ align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Elas tinham acabado de nascer e eles levaram. Eu sinto tanto até hoje.
[/g1_quote]Há quase 50 anos, ela vive no Hospital Estadual Tavares de Macedo, onde hoje, por conta da saúde debilitada, recebe os cuidados de enfermeiros e enfermeiras que se revezam no ambulatório feminino. Sentada em uma cadeira de rodas na varanda de um dos pavilhões da antiga colônia, ela se recorda das filhas enquanto observa o entra-e-sai de crianças pelas ruas da antiga colônia, o que era proibido até o fim da política de isolamento, no fim dos anos 1980.
Assista ao nosso webdocumentário “Dona Santinha”, sobre a política de isolamento compulsório
— Minhas crianças tinham acabado de nascer, me tiraram elas e levaram para o educandário. Levaram para o educandário e depois mandaram carta falando que tinham morrido. Tudo mentira, porque dizem que ficavam vários carrões de gente com dinheiro que não tinha filhos para pegar essas crianças — sustenta, referindo-se à política ilegal de adoção à época.
Durante quatro décadas, a política de combate da hanseníase no Brasil consistia em internar os portadores da doença à força e separá-los da família, inclusive de seus filhos recém-nascidos. As colônias de leprosos ou leprosários reforçaram o preconceito contra uma doença que deixa de ser transmissível ao ser tratada e tem cura para a maioria das pessoas. Série de reportagens de Letícia Lopes no #Colabora conta que, os sobreviventes lembram ainda hoje as dores da separação e muitos filhos cobram reparação do Estado na Justiça.Leia todas as reportagens da série Hanseníase: internação à força e filhos separados dos pais
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Veja o que já enviamos— Não me deram atestado de óbito nem nada, só falaram que morreram. Duas meninas. Lindas, só você vendo. A enfermeira que ficava com a gente levava, dava banho, depois botava em cima das minhas pernas, eu deitada, esticada. Pesadinhas, só você vendo… — lembra Santinha, enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto marcado pela idade.
As duas meninas nasceram em Minas Gerais, na Colônia Padre Damião, em Ubá, cidade da Zona da Mata. Foi para lá que Dona Santinha foi levada ainda adolescente. Antes, ela já vivia isolada da própria família, e morava sozinha numa casa na zona rural de São João Del Rei, até a polícia sanitária bater à sua porta e levá-la contra a sua vontade. Mesmo após mais de seis décadas, ela ainda se lembra da comida que estava no fogão quando foi levada da casa.
— Eu tinha ganhado um punhadinho de fava. Fiz a fava com angu e salada de alface, que eu tinha no quintal, e temperei com folha de alho de uns dentes que eu tinha plantado. Minha comida era gostosa para danar. Tem dias que eu fico pensando, lembrando das comidas boas que eu fazia. Internei com 16 anos. A polícia sanitária me pegou pelo braço, saiu me arrastando. Eu morava sozinha numa casa de seis cômodos.
Nos caminhos de hoje, dentro do veículo da polícia sanitária, ela teria percorrido quase 300 quilômetros até a Colônia Padre Damião, um dos seis hospitais-colônias do estado de Minas. Depois de anos vivendo segregada pela própria família após os primeiros sinais de aparecimento da hanseníase, foi na colônia que Dona Santinha conheceu Athaíde, com quem formou uma nova família e viveu por quase 50 anos.
Da união nascida nos limites do imenso complexo de cerca de 420 mil m², nasceram as duas meninas, que Maria da Conceição não pôde nem ao menos amamentar. Nas duas vezes, o leite abundante jorrava após o parto. Na falta da filha para consumi-lo, Dona Santinha recorreu a receitas populares para secar o que a natureza produzia em seu corpo.
— Eu ficava cheia de leite, dava até íngua. Fazia colar de mamona, uma simpatia, de tanto leite que eu tinha e não podia dar de mamar. Elas tinham acabado de nascer e eles levaram. Eu sinto tanto até hoje.
‘Queria minhas irmãs vivas’
Geraldo dos Santos Souza foi o único filho de Dona Santinha e Athaíde que não foi tirado dos pais. Para livrar o caçula do educandário, o casal conseguiu sair da colônia logo após o parto e seguiu vivendo nos arredores da Padre Damião, em Ubá, até o início da adolescência do menino, quando, seguindo os conselhos de um amigo, a família se “mudou” para a Colônia Tavares de Macedo em busca de melhores condições de vida.
Da chegada a Itaboraí, aos 15 anos, a primeira memória de Geraldo, hoje com 64 anos, é de ter comido uma maçã. A fruta era completamente desconhecida para o menino humilde que vivia numa pequena casinha nos arredores da colônia em Ubá e ainda dividia a cama com os pais.
— Chegou uma época em que as coisas estavam muito difíceis. Um colega do meu pai disse que tinha um hospital no Rio em que as oportunidades eram melhores para trabalhar. Aí ele vendeu a casinha que a gente morava e viemos para o Rio — lembra. — Fiquei lá até servir o quartel. Dei um endereço de São Gonçalo porque sabia que podiam me rejeitar, e eu queria sair de lá. Nessa época, para sair da colônia, a gente tinha que assinar uma licença. Eu peguei o papel, saí e não voltei mais.
Geraldo passou apenas três meses no Exército, até uma crise nos rins levá-lo ao centro médico, onde a hanseníase foi diagnosticada. Reformado, ele nunca mais pôde voltar a trabalhar. Também não voltou a ser internado: passou por tratamento e, hoje, está curado
Quarenta anos depois, o filho caçula de Dona Santinha mora com a esposa, Rita, em Três Rios, na região Sul Fluminense. A cada duas semanas, Geraldo voltava à Tavares de Macedo para visitar a mãe – a rotina acabou alterada por conta da pandemia da covid-19. Ele conta que já fez “de tudo um pouco” para levar Dona Santinha para sua casa, mas que “a colônia é a vida dela”. Até hoje ele não acredita que as duas irmãs mais velhas tenham, de fato, morrido.
— Eu queria que minhas irmãs estivessem vivas. Fico pensando: as pessoas tinham que ter pelo menos um papel dizendo alguma coisa sobre o filho, sobre o que aconteceu, sabe? Diziam que elas morreram, mas não disseram como, não teve atestado de óbito, nada — questiona.
Nove parentes com hanseníase
O mesmo Exército que aposentou Geraldo ao descobrir sua enfermidade, hoje curada, foi responsável por colocar o seu sogro em uma ambulância e levá-lo até a Colônia Tavares de Macedo, ao descobrir no então soldado José Aleixo Filho as marcas da hanseníase. Foi no isolamento que ele conheceu Maria de Abreu que, tal como Dona Santinha, aos 16 anos tinha sido arrastada por agentes da polícia sanitária da casa onde morava, na cidade de Itaocara, no Noroeste do estado.
[g1_quote author_name=”Rita de Cássia Souza” author_description=”Dona de casa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Ela mesmo já falou comigo que não criou o amor de mãe para filha comigo. Quer dizer, ela não tem esse sentimento. E não deixaram ela ter, não é?
[/g1_quote]Na pequena igreja, que ainda hoje está de pé, José e Maria se casaram e, pouco depois, tiveram Rita de Cassia, que também foi tirada dos braços da mãe logo após o parto e levada para o Educandário Vista Alegre, no bairro homônimo de São Gonçalo, um dos preventórios do estado do Rio de Janeiro, às margens da rodovia RJ-104. A menina permaneceu por quase cinco anos na unidade, que hoje está fechada. Quando o pai conseguiu deixar a colônia, tirou a filha do preventório, após uma longa batalha contra a burocracia.
— A minha mãe conta que eu nasci roxinha, que foi um parto muito difícil, mas que ela nem me viu direito. Assim que eu nasci, já me levaram para o educandário. Eu não lembro de quase nada do tempo em que fiquei lá. Quando meu pai conseguiu me tirar de lá, meus irmãos já eram nascidos. Foi um sacrifício — conta.
Um dos poucos detalhes do educandário guardados na memória por Rita é o de ela viver quieta pelos cantos. A menina só começou a se comunicar quando foi morar com a família em Três Rios, onde aprendeu a falar com os irmãos caçulas. O laço rompido com a mãe ao nascer, no entanto, não foi devidamente refeito no retorno à casa. Segundo Rita, a relação com a mãe nunca foi boa.
— Quando cheguei em casa, eu era uma estranha para todos. A gente não teve contato de mãe e filha desde pequena. Ela teve muito mais contato com meus irmãos mais novos, que, desde que nasceram, ela amamentou, conviveu, teve esse contato de mãe com eles, não comigo — lembra Rita, em meio a um suspiro pensativo.
Rita, hoje com 65 anos, conheceu Geraldo, através de parentes – pacientes também de hanseníase – que moravam em São Gonçalo. Casados, tiveram dois filhos, Cintia e Dyogo, que não herdaram a enfermidade. Os três netos do casal também não tiveram a doença. Depois que o pai, José Aleixo, morreu em 2005, de complicações renais, a mãe de Rita foi morar com o casal.
— Hoje eu cuido dela. É engraçado como a vida muda. Mas a gente já viveu igual cão e gato. Ela mesmo já falou comigo que não criou o amor de mãe para filha comigo. Quer dizer, ela não tem esse sentimento. E não deixaram ela ter, não é? Mas ela é minha mãe, eu não vou ficar contra ela. Ela passou por isso, eu passei por isso: não vou ficar contra ela — relata.
A hanseníase marcou os dois lados da família de Rita. Sua avó materna foi diagnosticada com a doença em Itaocara; a polícia sanitária a internou na colônia Tavares de Macedo, com as duas filhas mais velhas também com a doença – Maria, mãe de Rita, e Waldeci. Os quatro mais novos – Carolina, Dalzira, Nadir e Davi – foram levados para o Educandário Vista Alegre, em São Gonçalo. Mais tarde, Nadir e Davi também seriam diagnosticados com hanseníase.
Pelo lado paterno, também foram registrados casos da doença. Seu avô morava na Zona Rural de Três Rios e nunca foi capturado pela polícia sanitária. Dos cinco filhos, três foram diagnosticados com hanseníase: José Aleixo, pai de Rita, e dois irmãos mais jovens foram diagnosticados com a doença. Diferente dos familiares maternos, no entanto, eles não chegaram a ser levados para hospitais-colônia.
A hanseníase é uma doença infecciosa e transmissível, causada por uma bactéria, que atinge principalmente a pele e os nervos das extremidades do corpo. A hanseníase tem cura. O tratamento (disponível no SUS) é feito com um coquetel de antibióticos. A partir do início do tratamento, o doente deixa de transmitir a bactéria. Quanto mais cedo se inicia o tratamento, menores são as chances de sequelas como a perda de força nos membros, mãos em formato de garra, e outras limitações físicas.