O histórico de violação de direitos que isolou doentes de hanseníase e separou famílias tinha como pano de fundo o preconceito que cerca até hoje a doença — um problema milenar, que remonta aos tempos de Jesus Cristo. Uma passagem da chamada “Lei dos Leprosos”, no livro Levíticos, do Velho Testamento da Bíblia, já sugeria que homens e mulheres com hanseníase deveriam ser segregados. “Quem ficar leproso, apresentando quaisquer desses sintomas, usará roupas rasgadas, andará descabelado, cobrirá a parte inferior do rosto e gritará: ‘Impuro! Impuro!’ Enquanto tiver a doença, estará impuro. Viverá separado, fora do acampamento”.
[g1_quote author_name=”Sandra Durães” author_description=”Médica e professora de Dermatologia da UFF” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A questão do preconceito é a praga milenar da doença. Chamar a pessoa de “leproso” é um xingamento, como se aquilo carregasse uma culpa
[/g1_quote]O Brasil é o único país do mundo a ter mudado o nome da doença e todo o seu vocabulário para tentar diminuir o estigma que ela carrega. Lepra, leproso e leprosário, entre outras variações, foram substituídas na década de 1990 por hanseníase, hanseniano e hospital de dermatologia, mas ainda hoje quem tem ou teve a doença convive com a desconfiança e a discriminação causadas pela falta de informação.
— A questão do preconceito é a praga milenar da doença. Chamar a pessoa de “leproso” é um xingamento, como se aquilo carregasse uma culpa. Nessa nossa cultura judaico-cristã, é como se aquilo fosse um castigo dos céus — analisa a médica e professora de dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), Sandra Maria Durães.
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A hanseníase tem cura e os pacientes diagnosticados têm direito a tratamento gratuito no Sistema Único de Saúde (SUS) através da poliquimioterapia (PQT), um coquetel de três antibióticos. A partir do momento que o tratamento começa, a doença deixa de ser transmitida.
As doses dos antibióticos são supervisionadas. Desse modo, os pacientes são medicados uma vez ao mês na frente de um médico ou enfermeiro em uma unidade pública de saúde, e o restante da medicação é administrada em casa, o que dura de 6 a 18 meses, dependendo da classificação da doença. Para Durães, o estigma colocado sobre os doentes de hanseníase está diretamente ligado ao diagnóstico precoce e ao início imediato do tratamento.
— Os antibióticos “negativam” baciloscopicamente o paciente. Ele deixa de transmitir a doença. Os remédios matam os bacilos, mas o dano neurológico que esse paciente sofreu é praticamente irreversível. Por isso que o diagnóstico tem que ser precoce. Se o paciente tiver alteração de sensibilidade, ou qualquer outro dano, isso não vai regredir, então o diagnóstico precoce é crucial.
Falta de medicamentos em 18 estados
A efetividade do tratamento, no entanto, está sujeita a uma complexa rede logística para que os medicamentos cheguem até quem está doente. O Brasil é um dos países que dependem da distribuição dos antibióticos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), doados por um único laboratório, na Índia. Essa dependência fez com que brasileiros de pelo menos 18 estados ficassem meses sem os remédios em 2020, em meio a pandemia da Covid-19. Em alguns casos, o tratamento foi interrompido.
— Com a pandemia, os problemas se agravaram. O frete aéreo ficou muito caro e a Anvisa começou a demorar a liberar as doações que chegavam ao Brasil, dizendo que a prioridade era de questões relacionadas ao coronavírus. Chegamos num momento de uma falta direta durante quase quatro meses sem os remédios — explica Artur Custódio, coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan).
[g1_quote author_name=”Sandra Durães” author_description=”Médica e professora de Dermatologia da UFF” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A hanseníase está entre as doenças negligenciadas, é uma das doenças da pobreza. A pessoa que não tem um bom acesso à saúde, que não tem uma boa alimentação, vai ter uma lesão na pele, mas não pode faltar ao trabalho e acaba não investigando
[/g1_quote]Ainda no fim de 2019, a OMS emitiu um alerta aos governos que dependem da importação da poliquimioterapia, como o Brasil. A situação começou a se regularizar em meados de janeiro, quando uma nova remessa de medicamentos chegou ao país. Ao receber os primeiros relatos de desabastecimento dos antibióticos da PQT, o Morhan iniciou um levantamento para tentar mapear a falta dos remédios no país e registrou pacientes que tiveram que interromper o tratamento em 18 estados e o Distrito Federal.
— Essas cerca de 100 pessoas passaram a ser nossa amostra de referência. Quando o Governo Federal dizia que estava sendo regularizado, nós voltávamos à elas para conferir. Às vezes ainda estava na cadeia de distribuição, ou então, como em janeiro, a remessa que estava chegando era insuficiente para a demanda — afirma Custódio. — Estamos pressionando o Ministério da Saúde para que tenhamos logo a planta da produção nacional. Mesmo com as doações, precisamos dessa reserva estratégica. Estamos numa “zona de conforto” no tratamento da hanseníase, sem nenhum investimento, sem nenhuma inovação.
O Brasil é o segundo país no mundo em número de casos de hanseníase, segundo dados da OMS. Pelos dados da compilação global mais recente, em 2019 foram registrados 202.185 novos casos da doença em todo o mundo. Classificado como “país de alta carga para a doença”, o Brasil concentrou 27.863 novos casos, atrás apenas da Índia, que ficou no topo do ranking: no país asiático, foram 114.451 novas contaminações.
Os dados da OMS mostram ainda que, do total de novos casos, 96% dos doentes eram habitantes de 22 países: Angola, Bangladesh, Brasil, China, Costa do Marfim, Egito, Etiópia, Filipinas, Índia, Indonésia, Madagascar, Mianmar, Moçambique, Nepal, Nigéria, Papua Nova Guiné, República Democrática do Congo, Sri Lanka, Sudão, Sudão do Sul e Tanzânia. Para Durães, a proliferação da doença em determinados locais está associada à condição social da população.
— A hanseníase está entre as doenças negligenciadas, é uma das doenças da pobreza. A pessoa que não tem um bom acesso à saúde, que não tem uma boa alimentação, vai ter uma lesão na pele, mas não pode faltar ao trabalho e acaba não investigando. De repente, mora numa casa que em um cômodo vivem muitas pessoas, e a chance de contaminação é maior — analisa a médica Sandra Maria Durães, da UFF.
O cenário, porém, pode ser ainda pior. Para o dermatologista Claudio Salgado, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH), em muitos países faltam ferramentas adequadas e profissionais especializados no diagnóstico da doença. Além disso, a pandemia da Covid-19 também prejudicou a realização de novos atendimentos.
— Em muitos países, como na Etiópia, o número de novos casos poderia ser muito maior, mas não há ferramentas para diagnósticos. Aqui no Brasil, com a pandemia, o número de diagnósticos caiu pela metade. Ele pode ser muito maior, de duas a três vezes — estima: — Nós temos uma falta de profissionais especializados no diagnóstico da doença no mundo inteiro. É um déficit muito grande. O ideal é que tivéssemos um médico especializado para cada 100 mil habitantes, atuando em conjunto com a estratégia de Saúde da Família. Se fizermos esse cálculo, estaríamos precisando hoje de 3 mil profissionais no Brasil. Com título de especialista, não temos nem 10% do que precisamos.
Pessoas em tratamento não transmitem a doença
A bactéria causadora da hanseníase é a Mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen, em referência ao cientista norueguês Armauer Hansen, que descobriu em 1873 o microorganismo que atinge principalmente a pele e os nervos das extremidades do corpo. De evolução crônica, a transmissão da doença acontece pelo ar. A partir do momento em que o tratamento é iniciado, o doente deixa de transmitir a bactéria. O contágio, no entanto, também depende da vulnerabilidade individual de cada um à doença, para além da exposição à bactéria. De acordo com a professora da UFF Sandra Maria Durães, cerca de 90% das pessoas são resistentes à hanseníase.
— Todos nós que vivemos na área endêmica, temos mais chance de adoecer, mas a pessoa que está mais próxima ao doente que não está se tratando é a mais provável de se contagiar. Mas tudo depende da suscetibilidade genética de a pessoa ter a doença — explica a dermatologista. — Se a pessoa tem uma suscetibilidade muito grande, ela vai ficar doente e não vai saber nem de quem ela pegou, enquanto quem tem suscetibilidade genética zero, vai conviver com muitos doentes que têm uma carga bacilar muito alta, e nunca vai adoecer.
A professora também explica que, entre as pessoas que adoecem, a hanseníase se manifesta de maneiras distintas. Isso se relaciona ao fato de que, assim como cada um tem uma suscetibilidade individual, cada pessoa também tem uma resistência própria à doença.
— Dentre o pequeno percentual de pessoas que adoecem, a resistência não é igual. Tem pessoas suscetíveis, mas têm uma boa resistência e conseguem responder bem, e terão casos mais leves, com poucas lesões e poucos nervos acometidos. Outras pessoas são menos resistentes, não conseguem ter uma resposta imune adequada e a doença vai ser mais disseminada, com mais nervos afetados, mais lesões de pele e uma carga bacilar alta — explica.
Os principais sintomas da hanseníase são lesões na pele — manchas que podem ser esbranquiçadas, avermelhadas ou escurecidas, com alteração da sensibilidade térmica, tátil e à dor, que podem estar principalmente nas extremidades das mãos e dos pés, no rosto, orelhas, tronco, nádegas e pernas. De acordo com a epidemiologista Maria Aparecida Patroclo, professora da Faculdade de Medicina e Cirurgia da UniRio, as manchas são mais comuns nas fases iniciais ou de quem desenvolve uma forma da doença com poucos bacilos. Os doentes multibacilares podem apresentar nódulos pelo corpo ou ainda placas sobressalentes à pele, como uma urticária.
— Essas formas são multibacilares, aquelas em que o contágio é muito mais intenso — explica a professora da UniRio — E por ser de multiplicação lenta, você tem o que chamamos de período de incubação, em que a pessoa não tem sinais nem sintomas, numa média de cinco anos. Por esse motivo é um evento raro encontrar doentes com menos de cinco anos de idade, a não ser que ele esteja exposto a uma carga muito grande de bactérias, quando a doença evolui mais rapidamente.
O diagnóstico é essencialmente clínico, feito através de exame geral para identificar as lesões e áreas com alteração de sensibilidade. Quanto mais cedo se inicia o tratamento, menor são as chances de se terem sequelas como a perda de força nos membros, mãos em formato de garra, e outras limitações físicas que se desenvolvem em estágios mais avançados da doença.