ODS 1
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Veja o que já enviamosPonto de não-retorno: o futuro do trabalho é a sepultura?
Só em 2024, o INSS emitiu 472 mil licenças médicas para afastamento do emprego por problemas de saúde mental - 64% para mulheres
O novo normal é unanimidade: todo mundo conhece alguém – que conhece alguém – à beira da exaustão patológica no trabalho. A exaustão precede o colapso. E, o que vemos, é o então colapso que paralisa tudo, toda e qualquer possibilidade de ação reparadora. Geralmente, já é demasiadamente tarde. Estamos cansados de não dar conta, o máximo tem sido o mínimo. A geração adoecida pela cultura do trabalho e pela lógica de produtividade inalcançável, insuficiente e que, sim, pode nos matar. Estamos morrendo diante do risco de não-retorno.
Em minha última coluna publicada aqui no #Colabora, falei genuinamente sobre férias e descanso sem culpa como ato de resistência. O que é privilégio para alguns é também recomendação médica para outros. Afinal, poucos dias atrás, fomos bombardeados com os dados de uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Previdência Social, que revelaram como o Brasil naufragou em uma crise acirrada de saúde mental atrelada ao trabalho.
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Só nos últimos dez anos, nosso país teve o maior número de afastamentos no trabalho devido a transtornos mentais. Tais patologias foram responsáveis por situações incapacitantes no que tange à lógica trabalhista, agravadas ainda mais no último ano, no qual 472.328 licenças médicas de afastamento foram emitidas pelo INSS.

O número, assustador e expoente, nos leva para um lugar de autocrítica e reflexão mais estruturante. Isso porque nosso corpo vive dando sinais de limites e a falta deles. Nem falo mais da cultura tóxica que exalta a falta de tempo e as demandas infinitas de entregas trabalhistas. O espiral sobre a hora de parar, a hora de dizer não, ou de procurar um ritmo de trabalho menos insano. Andamos em círculos (e circos) em busca incessante por alternativas, agarrando-nos a paliativos, encarando conversas difíceis na hierarquia trabalhista e descumprindo acordos com nós mesmos.
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Veja o que já enviamosO preço é o resultado da pesquisa. De acordo com o governo federal, a alta de casos se deu pelo aumento de casos de depressão e ansiedade. A dupla que, quando não é familiar para nossa própria realidade, é a realidade dos nossos. Dentre os fatores alarmantes do cenário do trabalho, atualmente, destacados pela pesquisa, estão a precarização, a pejotização, equipes reduzidas e a pressão. Quando não vivenciamos a soma de todos eles, qualquer uma dessas categorias já tem o poder de nos desestruturar física e emocionalmente. Porque o ciclo não tem fim, a menos que exista uma ruptura da lógica trabalhista que nos trouxe até aqui, além de ser responsável por nosso sustento e sobrevivência.
Enquanto especialistas argumentam que tais doenças são multifatoriais, só consigo pensar no quanto vivemos cicatrizes de uma longa estação pandêmica que deixou muitas sequelas em nossa memória e em nosso próprio estilo de vida. Lembro que, na segunda onda da pandemia, foi a primeira vez que eu – intencionalmente – busquei ajuda psiquiátrica diante dos primeiros sinais de uma ansiedade mais patológica. Era um sentimento paralisante e também sufocante. Eu sentia bastante vergonha da minha potente improdutividade, mesmo sendo tão nova e com recursos básicos para ser mais funcional, existia uma limitação difícil de admitir e de nomear. Eu simplesmente não conseguia avançar.
Não escrevo com análise crítica de quem está curada e liberta do que é sintomático na sociedade. A verdade é que, tanto pesquisas disponíveis quanto diferentes fontes de informação e ferramentas de enfrentamento, nos salvam “temporariamente”. Admiro e muito quem consegue cultivar uma relação saudável com o trabalho, mas há espaço para falsas verdades: o saudável quase sempre tem sombra de privilégio. Um contexto de precarização não está sujeito a flexibilidade ou margem de negociação, é lamentável admitir que humanizar a cultura do trabalho perpassa pela lógica da desigualdade.
Venho de uma família de mulheres negras trabalhadoras domésticas e que lavavam roupa a mão. Minha tia e minha avó materna contam histórias de precarização e maus tratos em prol da sobrevivência. O formato de trabalho variava: por hora, por peça de roupa, por cômodo limpo. De um lado, a exaustão que falamos no começo. Com outra lente, ambas estavam diante da impossibilidade de sonhar com uma outra ambição profissional. Esta é uma realidade que, embora eu tenha conseguido romper, é a realidade de muitas outras mulheres negras ainda.
A proposta do governo federal, diante dos dados divulgados pela pesquisa, anuncia medidas mais rígidas de fiscalização diante de riscos psicossociais no ambiente de trabalho. Não é surpresa que nós, mulheres, tivemos um número maior de afastamentos em relação aos homens. A matemática exata é simplesmente 301.348 (quase 64%) contra 170.980. Apesar de tamanha disparidade, cumprimos um período de afastamento menor, além de receber menor salário, quando colocamos em perspectiva. O que mostra que, avançamos à medida em que regredimos em todo e qualquer debate sobre gênero e raça. Uma vez que a desigualdade tão cruel se atualiza e se reinventa em nossa forma de viver e de sobreviver, o futuro do trabalho seria, então, a morte? Lenta ou súbita, a verdade ensurdecedora é que, enquanto trabalhamos, também nos sepultamos.
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