Sancionada nesta segunda-feira (17/07) pelo presidente em exercício Geraldo Alckmin, após aprovação pelo Congresso Nacional, a Lei 14.624/2023 torna o cordão de girassóis “símbolo nacional de identificação das pessoas com deficiências ocultas” – pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), esclerose múltipla, diabetes, deficiência auditiva, dislexia e outras diversidades não visíveis. A lei oficializa um instrumento que já usado em outros países e até em alguns estados e municípios brasileiros para garantir a essas pessoas atendimento prioritário e, mais que isso, um olhar humanizado. “A função do cordão é sinalizar que a pessoa necessita de um suporte a mais para realizar alguma tarefa”, explica Julliene Oliveira, mãe de um menino com autismo e fundadora do projeto Inclusão em Ação, que divulga o uso dos girassóis para identificação das pessoas com deficiências ocultas.
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Apesar de muitos destacarem a importância da medida para dar suporte e apoio em situações de risco, seja durante atendimentos médicos ou em espaços públicos, a adoção do cordão ou colar ainda enfrenta preconceitos e gera apreensão por conta da falta de informação e conhecimento da sociedade sobre as particularidades desse grupo de pessoas. “Já aconteceu de estarmos com nosso filho identificado pelo colar de girassóis no parquinho e uma família perceber que ele era diferente e se retirar”, conta Julienne.
Ao ser apresentado pelo deputado Capitão Alberto Neto em 2020, o projeto de lei tinha como objetivo, além de garantir melhor assistência em situações de emergência, evitar outro tipo de dificuldade enfrentado por pessoas com deficiência oculta – a hostilidade ao tentar exercer seus direitos, garantidos pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. “Não são raras as notícias de que pessoas com deficiência foram hostilizadas por usufruírem desses direitos, apenas porque não foram reconhecidas como tal”, argumentou o parlamentar ao apresentar o projeto, aprovado em março na Câmara e agora em junho pelo Senado.
A iniciativa de identificar pessoas com deficiência oculta através do cordão de girassóis surgiu em 2016, idealizada por funcionários do Aeroporto Gatwick, de Londres. Após ser adotado em Gatwick, o instrumento começou a ser utilizado também em outros aeroportos do Reino Unido, voltado, inicialmente, para pessoas com autismo, que sofrem em locais com bastante barulho e movimento. Surgiu a organização Hidden Disabilities Sunflower (Girassol de Deficiências Ocultas, em tradução livre), com a intenção de facilitar a identificação não apenas em aeroporto mas em outros meios de transportes, estabelecimentos comerciais e espaços públicos. Hoje, são mais de 200 aeroportos no mundo inteiro que apoiam a iniciativa.
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Veja o que já enviamosOs colares se popularizaram mundialmente em 2019, através da publicação de uma foto pela jornalista Kim Baker, usando o colar de girassol com o filho e o marido, em um aeroporto de Málaga, na Espanha. No Brasil, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Amapá, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Sergipe e Distrito Federal já têm legislação que reconhecem o cordão de girassol – no Amapá, o cordão de girassóis já foi distribuído até em escolas, principalmente para identificar crianças com TEA. Grandes cidades como Belo Horizonte (MG) e Santos (SP) também já têm iniciativas para o uso dos girassóis como identificação. Atrações turísticas como o Bondinho do Pão de Açúcar no Rio e o Parque da Turma da Mônica, em São Paulo, têm parceria com a organização internacional para a identificação de pessoas com deficiência oculta através do colar.
O cordão na vida de Julliene e Davi
Foi também por esse post que Julliene – mãe de Davi, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista, nível de suporte 2 – conheceu o cordão de girassóis. Atualmente, a classificação do autismo pode ser feita em três diferentes níveis com base na necessidade de apoio da pessoa. O nível um é considerado como “leve”, ou seja, quando o suporte necessário é menor. No caso de Davi, hoje 11 anos, de suporte 2, a pessoa necessita de apoio para realizar algumas atividades – o nível três é considerado o mais severo.
Moradora de Ibirá, no interior de São Paulo, e pedagoga de formação, Julliene decidiu adotar o cordão, motivada por preconceitos e dificuldades enfrentadas durante crises sensoriais do filho atípico (termo utilizado para se referir a pessoas com deficiência mental ou sensorial). Ao lado do marido, Liége Neto, ela gerencia o Inclusão em Ação, que comercializa acessórios e materiais relacionados à inclusão, entre eles o colar de girassol. A iniciativa também busca levar palestras sobre o tema e estimular campanhas de conscientização.
Sobre o papel do instrumento, Julliene relata a forma como o uso de uma identificação no transporte público, antes de conhecer o colar de girassol, já ajudava na compreensão pelas outras pessoas. “Usando o colar as pessoas tinham mais freio, se seguravam mais na hora de fazer um comentário maldoso”, afirma a mãe atípica, como ela se define.
Uma das características das pessoas com TEA é a dificuldade para lidar com estímulos do ambiente, como sons e luzes, o que pode desencadear crises sensoriais, gerando desconforto e agitação. Segundo Julliene, existem mais de mil e duzentas condições que podem estar associadas a autismo, dislexia, transtorno de déficit de atenção e outras diversidades que não são identificáveis pela visão, daí a importância da identificação por meio do colar.
Julliene relata o caso de uma cliente do Inclusão em Ação, que ao usar o cordão em um shopping, passou a ser seguida por um homem. “Ela achou que fosse por conta de estar identificada com o colar. E tirou porque ficou com medo dele achar que ela era uma presa fácil”. Ainda assim, Julliene reforça que a conscientização sobre a função do colar é importante para mudar a forma como as pessoas entendem as diversidades das pessoas com deficiência oculta.
No caso do cordão personalizado pela Inclusão em Ação, um QR Code é adicionado com informações sobre seu portador e suas características, o que ajuda em emergências. “Recentemente um cliente nosso, que é ostomizado, teve uma queda muito forte, perdeu a consciência e foi levado para o hospital. Ele estava identificado e a equipe de socorristas escaneou o QR Code e viu todas as informações sobre a saúde dele, que medicamentos ele poderia tomar”, conta Julliene.
Girassóis pelo déficit de atenção
Professor universitário em São Borja, no interior do Rio Grande do Sul, Marco Bonito começou a ter crises sensoriais e emocionais com grande intensidade na pandemia e começou a buscar respostas; depois de um tempo, chegou ao diagnóstico de transtorno de déficit de atenção (TDAH). “Peguei a lista de psiquiatras que tinha na Unimed e saí ligando para todos, até que um me atendeu e falou: não é minha especialidade, mas eu lido com crianças e posso te atender”, relata o professor.
Com esse diagnóstico inicial, o professor foi fazer estágio de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP) no ano passado, quando encontrou um grupo de pesquisa que estuda o TDAH em adultos. “Agora em março, saiu o meu laudo e o que era uma suspeita bateu mais de 95% de TDAH. E tem um combo de coisas que vêm associadas como comorbidades, transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, transtorno obsessivo”, descreve Marco Bonito.
Durante o processo de diagnóstico, o professor universitário, que já pesquisava questões relacionadas à acessibilidade e pessoas com deficiência, começou a buscar mais informações sobre o tema. Foi então que descobriu o cordão de girassóis. “Eu passei 50 anos me entendendo de uma determinada forma e as pessoas também. Agora eu sei porque tenho minhas características, e é aí que entra a história do cordão”, afirma Marco, para quem o cordão é uma forma de fazer com que as outras pessoas reconheçam sua diversidade.
Apesar de considerar o cordão de girassol uma iniciativa positiva, o professor afirma sentir receio de usar o cordão na universidade. “Do jeito que eu ajo, eu acabo me excluindo mais dos processos”. Por outro lado, ao buscar atendimento médico, Marco destaca a diferença que o uso do cordão proporciona, lembrando que, certa vez, precisou procurar um médico por conta de uma lesão jogando futebol e ficou quatro horas esperando para ser atendido. “Quando eu vou em lugares para ser atendido, eu consigo entender que o lugar tem suas demandas, que vai demorar. Mas, se começa a atrasar muito, eu entro em surto e me causa crise de ansiedade e pânico”.
No dia do atendimento da lesão no futebol, ele não estava usando o cordão de girassol. Mas, depois, na consulta ao ortopedista, decidiu levar o cordão e o tratamento mudou. “Quando eu cheguei, pus a carteirinha do plano de saúde e o cordão”, conta, acrescentando que o profissional que o atendeu demonstrou curiosidade e quis saber mais sobre sua condição. “Ele teve outra postura, foi todo cuidadoso”, destaca Marco Bonito.
Dificuldade em atendimento mesmo usando o colar
Miriam Maciel Neta tem 23 anos, mora em Campina Grande, Paraíba, e é mãe do Mathias, de 4 anos. Quando ele tinha dois anos de idade, ela iniciou a busca por um diagnóstico por estar preocupada do filho não ter começado a falar. “Quando eu cheguei no neurologista, achando que ele podia ser uma criança ansiosa, e ele falou em autismo, eu fiquei confusa. A ideia de autista que eu tinha era do autista super gênio ou daqueles grau 3 de suporte, que as características são bem notáveis mesmo”, conta a jovem que trabalha como social media.
Depois disso, em maio deste ano, Miriam teve outra surpresa, quando também foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (nível 1 de suporte). Ela conta que o processo de autoconhecimento foi complicado, principalmente por conta de crises sensoriais. “Teve uma apresentação junina na escola do meu filho, que durou duas horas com muito barulho, luzes piscando, muita gente. Cheguei em casa e tive crises de ansiedade. No dia seguinte, não consegui sair da cama, com ansiedade, vontade de vomitar, exausta”. Atualmente, Miriam afirma lidar de forma mais tranquila com o diagnóstico, também por conta do colar.
A social media comenta que teve contato com o cordão de girassóis a partir do diagnóstico do filho. “Infelizmente parece que conhecemos mais sobre esse mundo quando fazemos parte dele ou alguém próximo de nós faz parte”, afirma, acrescentando que o cordão pode ajudar a evitar constrangimentos, principalmente ao solicitar atendimento especializado. “Eu já tive que implorar atendimento prioritário num hospital mesmo usando o colar – a própria enfermeira que estava me atendendo, não fez o reconhecimento. Imagine as outras pessoas que, em tese, não estão tão mais informadas sobre?”, questiona Miriam.
A mãe do Mathias destaca que ao usar o cordão nota uma diminuição dos olhares de julgamento, ainda que algumas pessoas ainda associem o autismo com “frescura” e “malcriação”. “O colar de girassóis ajudou com que as pessoas tivessem mais empatia pelo meu filho e por mim, foram menos olhares feios de julgamento” complementa.
Direitos garantidos só com documento
Julliene Oliveira enfatiza que, mesmo com a inclusão na legislação, apenas o cordão de girassóis não assegura os direitos das pessoas com deficiência oculta. O PL 5486 – instituindo o colar como símbolo nacional de identificação – acrescentou um artigo à Lei Brasileira de Inclusão (LBI), de 2015, que efetivamente, garante os direitos de todas pessoas com deficiência. “O colar não substitui um documento comprobatório de que aquela pessoa tem um direito, ele só sinaliza; o que garante benefícios amparados por lei é o laudo médico e isso fica claro na lei do colar”, esclarece a diretora da Ação em Inclusão.
Para Julliene, ações de conscientização – baseadas em pilares como educação, lazer e turismo, saúde e segurança – podem fazer a diferença para as pessoas com deficiências. Ela ressalta que o objetivo do cordão de girassóis é proporcionar atendimentos e tratamentos humanizados, o que passa necessariamente por informação e campanhas de conscientização, e é nesse ponto que o PL pode colaborar. “A partir do momento que o projeto é sancionado, conseguimos cobrar campanhas de conscientização. Para isso, é importante que o cordão de girassóis seja reconhecido. O intuito é que todos, não só as pessoas com deficiência, entendam porque é necessário dar suporte para quem está fazendo o uso”, explica a mãe atípica.