Pesquisadores veem sinais claros de novo avanço da pandemia no Brasil

Paciente com covid-19 entubada na UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo: disparada no número de internações no país (Foto: Nelson Almeida/AFP)

Apagão de dados não impede que cientistas constatem sólidas evidências de que casos de covid-19 voltaram a subir com tendência de alta

Por Jornal da USP | ODS 3 • Publicada em 19 de novembro de 2020 - 08:30 • Atualizada em 9 de dezembro de 2020 - 09:55

Paciente com covid-19 entubada na UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo: disparada no número de internações no país (Foto: Nelson Almeida/AFP)

Luiza Caires*

Conseguir dados diretos para analisar a situação e tendência para a pandemia de covid-19 não é uma tarefa fácil no Brasil. Mas pesquisadores fazem seus esforços, contornam dificuldades e nos dão um esboço do que pode estar por vir. E a história que quase o consenso deles conta é parecida: há indícios fortes de um novo crescimento dos casos, mesmo que ainda não apareçam nas contagens diárias divulgadas pelos governos e mesmo que alguns a nomeiem como segunda onda e outros não.

O professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) Paulo Lotufo fala na arremetida de um avião, que estava sim descendo, mas não chegou a pousar e voltou a subir. Já o médico e pesquisador do Hospital Universitário da USP Márcio Bittencourt vê o crescimento, mas não chama isso de segunda onda, porque não acredita que tenhamos saído da primeira. “A gente continua com um padrão de transmissão sustentada na comunidade”.

[g1_quote author_name=”Otávio Ranzani” author_description=”Epidemiologista do Instituto de Saúde Global (ISG) de Barcelona” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

O Brasil foi flexibilizando sem ter uma ideia clara do que estava acontecendo. As pessoas começam a sair, aglomerar, fazer festa, não usar máscara. Tudo isso começa a propiciar eventos super propagadores, elevando os casos, e isso se reflete nas hospitalizações

[/g1_quote]

Para Otavio Ranzani, médico e epidemiologista do Instituto de Saúde Global (ISG) de Barcelona, na Espanha, “tudo indica que está tendo um repique sim. Para alguns locais, isso já traz distúrbios ao sistema de saúde, que é o critério que adoto para definir uma onda. Se a lotação nos hospitais de São Paulo se confirmar por mais de uma semana, vou considerar que sim, já há uma segunda onda”.

Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, conta que o cenário já era preocupante desde o fim de outubro. “Fiz um estudo sobre a taxa de infecção (Rt) no início de outubro no Brasil e ela estava em 0,95, com tendência de alta, e quatro estados acima de 1. Quando fiz de novo o estudo, no final de outubro, o Rt do Brasil já era de 1,12, com uma taxa maior que 1 em 15 estados, em alguns deles 1,3. A minha opinião é que já estamos vivendo sim o começo de uma segunda onda”.

E quais as causas desse crescimento? Márcio Bittencourt diz que aparentemente, a principal razão é a redução das medidas de contenção: isolamento, uso de máscara e distanciamento físico. “Como essas medidas são graduais, não surpreende que a progressão no número de ocupação de leitos também tenha sido gradual. Na Europa, onde temos um componente sazonal [chegada das estações mais frias], parece ter sido algo muito mais explosivo do que aqui, onde não há esse componente. Aqui é algo progressivo, lento”, afirma Bittencourt.

Para Otavio Ranzani, até pela falta de testes e números confiáveis, “o Brasil foi flexibilizando sem ter uma ideia clara do que estava acontecendo. Uma parte do que a gente acha que havia controlado, na verdade não estava tão controlado ainda, e aí a flexibilização ajudou a subir. As pessoas começam a sair, aglomerar, fazer festa, não usar máscara. Tudo isso começa a propiciar eventos super propagadores, elevando os casos, e isso se reflete nas hospitalizações”,

O pesquisador da Fiocruz Marcelo Gomes, que atua no projeto Infogripe, também vê uma clara interrupção de queda e tendência da alta nos casos de coronavírus no País. Segundo ele, uma das lições que fica da situação dos Estados Unidos, Europa, e possivelmente, do Brasil, é que a queda não deveria ser encarada como algo permanente e irreversível.

Pressões pela reabertura

Ranzani, que vive em Barcelona e acompanha de perto a situação da Europa, vai na mesma linha: “não adianta ignorar o vírus porque ele volta, e vimos isso aqui também”. E essa não é a única coisa que podemos aprender com a situação na Europa: “em alguns locais, como Barcelona e Madri, com as primeiras medidas, já temos indícios de controle da segunda onda. Sei que é difícil e, realmente, todo mundo está cansado. Mas não tem uma solução mágica”.

Paulo Lotufo foi uma voz incansável no alerta de que não existe a chamada “imunidade coletiva” sem que exista uma vacina. Agora, ele testemunha a interrupção na queda dos casos avaliando que, principalmente em São Paulo, o controle com distanciamento social foi forte, mas o País chegou a um limite. Um dos motivos foi a redução do auxílio emergencial. Outro foi a pressão política, em muitos lugares, pela reabertura total. “Muitos locais no País não acreditaram na força do vírus”, afirma.

[g1_quote author_name=”Marcelo Gomes” author_description=”Pesquisador da Fiocruz” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Até o final de outubro observamos uma série de capitais voltando a registrar sinais de crescimento; algumas delas há várias semanas consecutivas, a maioria delas no Norte e Nordeste, mas também em outras regiões. Florianópolis, por exemplo, está em uma situação preocupante: o gráfico é um ‘V’, não houve sequer o período de estabilidade

[/g1_quote]

O pesquisador lembra o caso emblemático de Florianópolis, que começou bem e depois sofreu uma forte pressão do setor econômico. “Nunca me esqueço daquela cena da reabertura do shopping em Blumenau, ainda em abril, com o saxofone tocando”, relembra Lotufo, ao destacar que também estamos com prioridades erradas: “em uma família, a mãe já pode fazer a unha no salão, o pai já frequenta a academia, mas o filho ainda assiste à aula no Zoom”.

Se não há dados diretos dizendo que há crescimento de novos casos confirmados e óbitos por covid-19, como podemos falar em “segunda onda”, “repique”, “arremetida”? Uma pequena alegoria ajuda a explicar. Imagine que a epidemia de coronavírus é uma pessoa, a senhora E., passeando por um shopping center de vários andares. Não temos acesso direto a ela, mas queremos saber se, neste momento, ela está subindo, descendo, ou ficando no mesmo lugar. Algumas informações poderiam nos ajudar nessa previsão. Duas delas especialmente úteis: um relato de como E. vem se comportando até agora, e uma descrição de seus movimentos no exato momento em que tentamos predizer os passos seguintes.

Ambulatório para pacientes de covid-19 no Hospital da USP: O alto índice de novas internações por covid-19 na rede privada e pública em São Paulo acende alerta (Foto: Vinicius Quintão/FMUSP)
Ambulatório para pacientes de covid-19 no Hospital da USP: O alto índice de novas internações por covid-19 na rede privada e pública em São Paulo acende alerta (Foto: Vinicius Quintão/FMUSP)

Pane de dados

O relato do passado que temos é bem indireto: quem nos informa não viu com os próprios olhos o que E. andou fazendo – ouviu de outros. Alguma coisa pode ter ficado de fora. Mas com o depoimento de Fulano, fazendo aquela filtragem, dá para ter uma boa noção do comportamento de E. Este é o Sistema InfoGripe, que já acusa a subida de casos da doença no País. O Infogripe faz o monitoramento dos registros de Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG (pessoas com sintomas respiratórios internadas e/ou que morreram no Brasil), faz correções, trata estes dados e nos dá bons indicativos de como estão evoluindo os número da covid-19 no País. “Recebemos estes dados semanalmente das secretarias municipais, fazemos correções; aplicamos filtros de sintomas, vendo o que, de fato, atende à definição de ‘caso’. E analisamos também quais os vírus identificados, quando há teste laboratorial”, explica Marcelo Gomes, pesquisador em Saúde Pública da Fiocruz.

Pelo que diz Marcelo, desde outubro os dados já indicavam a senhora E. parando de descer a escada, e virando lentamente no sentido da escada de subida. “Até o final de outubro observamos uma série de capitais voltando a registrar sinais de crescimento; algumas delas há várias semanas consecutivas, a maioria delas no Norte e Nordeste, mas também em outras regiões. Florianópolis, por exemplo, está em uma situação preocupante: o gráfico é um ‘V’, não houve sequer o período de estabilidade”, diz Marcelo. Na cidade de São Paulo, houve interrupção de uma queda contínua que se via no município, com indícios de reversão para alta.

[g1_quote author_name=”Marcio Bittencourt” author_description=”Médico e pesquisador do Hospital Universitário da USP” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Pela primeira vez desde 15 de outubro, temos mais de 1000 novas internações na média móvel de sete dias no estado de São Paulo. Na grande SP, temos média móvel de sete dias de 605 novas internações. Primeira vez com mais de 600 desde 23 de setembro, há quase dois meses

[/g1_quote]

Voltando à alegoria, nosso problema maior é a falta de um relato mais imediato sobre os movimentos da senhora E. Nosso informante, Fulano, sumiu do mapa. Ou seja, pararam de chegar os dados que alimentam o InfoGripe, sem explicações muito claras – o governo federal menciona que um “ataque “hacker” aos seus sistemas teria atrapalhado. “A última atualização que tivemos foi no dia 2 de novembro, então a última análise completa que conseguimos fazer foi da semana epidemiológica 44, que se encerrou 31 de outubro”, lamenta Marcelo Gomes. Mas ainda sobraram Beltrano e Cicrano, outras fontes indiretas de dados que trazem um quadro do momento atual: eles acabaram de ver a senhora E. já começando a subir os degraus da escada na cidade de São Paulo, ou seja, o número de internações nos hospitais deste município está crescendo de maneira notável.

Domingos Alves, professor da FMRP, lidera o projeto Covid-19 Brasil, que observa a epidemia pelos dados de internações em geral, não apenas por SRAG, de todo o País. Estes números, apesar de menos específicos, não sofreram tanto com o apagão de dados, e olhando para eles Domingos é enfático: as internações têm subido consistentemente, com destaque para a Região Metropolitana de São Paulo. E como saber que não se trata de outro motivo? “Se esse aumento não estiver associado à covid-19, então teremos que dizer que está acontecendo uma epidemia de outra doença no Brasil, o que é improvável”, diz.

Paciente com covid-19 no Hospital Albert Einstein: apesar de apagão de dados pelas falhas no sistema do Ministério da Saúde, pesquisadores apontam evidências de retomada do número de casos e óbitos (Foto: Nelson Almeida/AFP)

Internações em alta em São Paulo

Há ainda informações de alta nos casos confirmados de covid-19 ocupando leitos na rede privada. O Hospital Albert Einsten soltou, na última sexta (13), uma nota à imprensa com o alerta, dizendo que entre a quinta, 12, e a sexta, 13, foram registradas 18 novas internações. O número supera a média diária das últimas semanas. Da última semana de setembro ao dia 12 de novembro, a média de internações oscilou entre 50 e 55 pacientes infectados. Na sexta-feira, eram 68 leitos ocupados por casos de covid-19.

O Sírio-Libanês não emitiu comunicados oficiais, mas profissionais que trabalham no Hospital disseram extra-oficialmente que a internação lotou. “Voltei de férias e estava um caos. Para você ter ideia, tem adulto internado na pediatria, por falta de lugar”, disse um deles.

O mesmo foi relatado por um profissional da saúde do Hospital São Camilo do bairro Pompeia: “Todos os 400 leitos estão ocupados por pacientes com covid. UTI e dois andares cheios”, contou à reportagem do Jornal da USP o profissional, que também preferiu não se identificar.

O professor da FMUSP Paulo Lotufo diz que, ao acompanhar dados de hospitais privados como Einstein e Sírio, é preciso cuidado pois eles recebem pacientes do País todo. Outra coisa: “uma possibilidade seria se tratar de um hotspot, um ou dois eventos de super propagação como, por exemplo, já houve com festa de casamento e até chá de bebê. Para saber isso, os hospitais teriam que divulgar dados mais detalhados do perfil dos internados, mas eles não fazem isso”, diz Lotufo.

Só que, durante o último final de semana, a alta nas internações por coronavírus já começou a aparecer também nos sistemas públicos: a própria Fundação Seade, ligada ao Estado de São Paulo, exibiu em seu site números que indicavam isso. “Pela primeira vez desde 15 de outubro, temos mais de 1000 novas internações na média móvel de sete dias no estado de SP. Na grande SP, temos média móvel de sete dias de 605 novas internações. Primeira vez com mais de 600 desde 23 de setembro, há quase dois meses”, apontou já na sexta-feira (13), em seu perfil no Twitter, o médico Márcio Bittencourt, que tem acompanhado e analisado dados da epidemia.

*Jornal da USP (com colaboração de Beatriz Azevedo)

Jornal da USP

Portal de notícias da USP na internet, plataforma virtual que reúne informações e notícias sobre a universidade e as informações sobre as pesquisas desenvolvidas

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile