O barulho dos motores roncando pelas vielas anuncia a descida dos meninos. Vestidos de branco, protegidos de ponta a cabeça para evitar o contágio em vestimentas que deixam à vista somente os olhos, sob óculos especiais, Thiago Firmino, o irmão Tandy e outros nove voluntários borrifam nas vielas e becos do Santa Marta uma solução que contém 1% de quaternário de amônia diluído na água. Em cinco horas de descida, os ‘Caça-Coronas’, apelido que ganharam dos moradores e assumem com prazer, conseguem dar conta de apenas metade da favela onde nasceram e vivem até hoje, em Botafogo. Mas o orgulho de ajudar a evitar a tragédia que se anunciava ao começarem o trabalho, dia 4 de abril, é do tamanho do morro.
“Eu vi os chineses sanitizando aquela cidade (Wuhan) e pensei imediatamente: por que não posso fazer a mesma coisa aqui?”, conta Thiago, 39, filho de Jorge, conhecido porteiro de Botafogo, e Denise, cozinheira por 28 anos da creche que fica no pé da favela. “Então corri atrás e tratei de pesquisar sobre os equipamentos e a fórmula”.
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Thiago vivia como guia de turismo de experiência até que o Covid abateu sua fonte de renda. De uma hora para outra parou de receber visitantes que passavam o dia na favela, em sua maioria estrangeiros, ouvindo histórias de moradores e conhecendo in loco sua cultura e gastronomia. “Então decidi que iria investir na.compra de equipamentos e do produto. Primeiro a gente pensou em fazer uma vaquinha online, mas descobri que só receberia o dinheiro dois meses depois! Pô, se fosse assim todo mundo ia morrer”, conta. Foi então que ele acionou rappers conhecidos da época em que requisitaram seus serviços de guia para gravar clipes na favela e rapidinho o dinheiro “brotou na conta”, como ele diz. Compraram dois atomizadores costais movidos a gasolina, botas, roupas e equipamento completo para proteger seus corpos antes de dar início à empreitada. “Agora estamos aqui fazendo o que a prefeitura deveria fazer”, critica.
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Veja o que já enviamosNão é mole subir e descer este morro com aquele troço nas costas, de beco em beco. Quem deveria fazer isso era a prefeitura
[/g1_quote]A mesma prefeitura, frisa ele, usa o Palácio da Cidade para cerimônias, a menos de 500 metros da favela. Apesar de não saber oficialmente quantos casos há no Santa Marta, ele os estima em centenas. Sem o recorte das favelas nos boletins feitos pelo município, usa o ranking criado pelo jornal Voz das Comunidades para ter uma noção do tamanho do problema. O jornal, do midiativista Renê Silva, do Complexo do Alemão, apontava, dia 22 de junho, 2.060 casos confirmados e 433 óbitos em 15 favelas – números não incluem seu Santa Marta. “Mas a rádio corredor avisa. A gente sempre sabe quem teve ou está com suspeita. Já morreu gente aqui”.
Hoje os Caça-Coronas contam com quatro atomizadores, sendo dois deles elétricos, e já estão na segunda versão do produto, após um upgrade proporcionado pelas doações que continuam chegando. Dia sim, dia não, recebem convites para ensinar a técnica de sanitização, que aprendeu na internet e adaptou ao uso nas vielas, em outras favelas. Nessa toada, já foram ao Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, Chapéu Mangueira, Providência e Santa Cruz. Na Maré, deu palestra aos jovens sobre como fazer a mistura e aplica-la. Tem recebido também convites para desinfetar condomínios e prédios pequenos. Do turismo, não espera voltar a ter renda tão cedo. “Cara, somos hoje o segundo país com mais mortes no Mundo. Quando o turista voltar ao Brasil, se voltar, vai optar por locais mais seguros. Não vai querer vir na favela, local de aglomeração e sem saneamento básico”, lamenta. “Falo dos estrangeiros, porque brasileiros raramente vêm aqui”.
[g1_quote author_name=”Tainara Magalhães Queiroz” author_description=”Voluntária do Caça Coronas” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]E uma coisa muito linda o que acontece quando a gente começa a descer. Os moradores cantam louvores para a gente, agradecem a ação. Outro dia me reconheceram num beco e me pararam para elogiar
[/g1_quote]O Santa Marta ele sanitiza duas vezes na semana. Num dia vai pelo lado direito, no outro, pelo esquerdo. Durante a descida, recebe mimos e presentes dos moradores – que vão desde água mineral até coca-cola e lanche. A comunicação é feita através da Associação de Moradores, que avisa quando eles farão o trabalho, e dos voluntários, que vão à frente reforçando a chegada. Há também o grupo de moradores no aplicativo whatsapp, que funciona muito bem. Tiago recomenda que fechem as portas de suas casas para evitar gotículas nos olhos. “Mano, ela arde muito se bater”. Muitos moradores deixam baldes e mangueiras do lado de fora de seus barracos, para que eles refaçam a fórmula conforme o tanque vai esvaziando. Em média, gastam 840 litros num dia de trabalho em cinco horas de ladeira, com 11 reposições. Haja perna, braço e fôlego.
“O que eles estão fazendo não tem preço”, emociona-se Maria Keila Souza Lima, 39 anos, que teve de cuidar de um de seus filhos, o mais velho, que pegou covid-19 em seu trabalho – uma farmácia da Zona Sul do Rio. Ela conta que, após cuidar do mais velho, teve todos os sintomas de Covid, como dor no corpo e perda de olfato. Apesar de não ter feito o exame, tem certeza de ter-se contaminado, e agradece aos voluntários porque nem seu filho menor, nem seu marido, adoeceram. “Olha, moço, não é mole subir e descer este morro com aquele troço nas costas, de beco em beco. Quem deveria fazer isso era a prefeitura”, reclama.
O peso a que dona Maria Keila se refere castiga a voluntária Tainara Magalhães Queiroz, de 30 anos. Mas ela nem pensa em desistir. Há três anos no Santa Marta, para onde foi após se juntar, não sabe se vai recuperar o emprego de babá que a ajudava a sustentar sua casa e o filho pequeno. Enquanto não se reposiciona (“já fiz panfletagem, trabalhei em fast food e até fui acompanhante, escreve aí”), segue fazendo o que mais gosta de fazer em tempos de pandemia: ajudar o próximo. “‘E uma coisa muito linda o que acontece quando a gente começa a descer. Os moradores cantam louvores para a gente, agradecem a ação. Outro dia me reconheceram num beco e me pararam para elogiar”, diz, cheia de orgulho.
Ela conta que o trabalho é super-profissional. Antes da sanitização, se reúnem na base, e alimentam e se alongam. Depois, um a um, colocam os equipamentos de proteção e fazem a checagem. Há uma divisão e um rodízio, já que o atomizador, com água, pesa mais de 20kg. Enquanto uns descem na frente avisando aos moradores, pedindo para fecharem a janela, parte faz a sanitização, parte leva água e outros, gasolina. No meio da descida, trocam de função, para não se sacrificarem mais do que o necessário. Ao retornarem, lavam as roupas com uma fórmula que as desinfeta e as deixam secando.
Como resumiu Sérgio Luiz de Souza, 40, outro voluntário do grupo, proteger a comunidade não tem preço. “É muito emocionante ajudar o outro. Vou levar isso pro resto da minha vida”, diz ele, que atua numa das igrejas evangélicas da favela. Sérgio, como Maria Keila, pede a seus deuses que iluminem o garoto corpulento, fala fácil e sempre de sorriso aberto. Na hora da fé, nada de economizar no pedido. Maria Keila que o diga. “Eu oro muito por estes meninos, mas muito mesmo. Se não fosse eles, já estaríamos no meio de uma tragédia”.