Sua viagem, saindo da Venezuela, esteve marcada por dor em suas articulações. Viveu um sofrimento silencioso. Mas não podia chorar ou desmoronar. Nessa viagem, ia com suas duas filhas, que na época tinham 12 e 13 anos. Estava cruzando a fronteira do Equador até o Peru. Era abril de 2019, quase um ano antes da pandemia.
Karina recebeu o diagnóstico de Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) há 10 anos. Atualmente, tem 44 anos e mora no distrito de Comas, em Lima. O lúpus afetou sua visão, lesionou suas articulações e danificou seu rim.
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A saída de Karina ocorreu por falta de medicamentos nas farmácias para tratar a doença. “Não conseguia nem ao menos anti-inflamatório”, conta.
Karina, assim como as mulheres com lúpus no Peru, enfrenta uma situação que se converte em uma batalha tanto com o seu próprio corpo como com os fatores sociais e econômicos aos quais está exposta. Por isso, a visibilidade é fundamental.
A maioria dos pacientes com LES está em idade fértil e economicamente produtiva. No entanto, os sintomas variados dessa doença impedem quem a sofre de realizar atividades laborais.
De acordo com um relatório entregue pelo Ministério da Saúde peruano, os casos de lúpus entre 2019 e 2022 mudaram com o tempo. Em 2019, 85,41% (539) correspondem às mulheres e 14,59% (92), aos homens. Em 2020, o ano da pandemia, havia um total de 16.000 pessoas com lúpus no país. Da mesma forma, as mulheres continuaram sendo a maioria (90%). No entanto, não há números exatos sobre a quantidade de mulheres com lúpus por departamentos (equivalente a Estados).
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Veja o que já enviamosJenny Saavedra vive em Sullana, Piura, departamento no norte do Peru, mas é em Lima onde encontra atendimento. “Um emprego não me daria permissão para viajar todos os meses. Desde 2007, estou em tratamento”.
Uma situação semelhante acometeu Gumelín Ruíz Fernández, paciente lúpica e migrante venezuelana. “Ao iniciar meu tratamento, comecei a ter dificuldades no trabalho. Meu corpo não aguentava o horário, era muito pesado. Comecei a faltar, até que me demitiram”, indica.
Por estar em um emprego formal, Gumenlín tinha acesso ao Seguro Social de Saúde (EsSalud). Mas, ao ficar desempregada, não podia arcar com os custos do seguro médico.
Felizmente, o médico falou sobre o período de latência que um ex-funcionário pode solicitar. Prorrogaram o dela por oito meses. Além disso, o marido conseguiu registrar uma empresa no país, o que lhe permitiu continuar com o seguro.
Karina não conta com a mesma sorte. Ela não tem um seguro saúde, por isso o custo do seu tratamento é de aproximadamente 900 soles (US$ 238) por mês.
Os meses avançam e as pacientes com lúpus não podem se descuidar. “Se não for tratado a tempo e em geral pela mesma dificuldade de conseguir acesso aos hospitais, o prognóstico pode ficar sombrio”, afirma Wendy Sotelo, reumatologista com mais de 20 anos de experiência.
Discriminação e vulnerabilidade
Para Gumelín, a doença começou com um inchaço em suas articulações e em seguida com fortes dores de cabeça. Em 2011, os médicos a trataram como se tivesse lúpus, embora o teste de Ana para detectar o lúpus e outras doenças autoimunes tenha dado negativo.
Gumelín continuou seu tratamento na Venezuela até receber em 2015 uma ligação do seu trabalho informando que não continuariam com o vínculo empregatício. Foi nesse ano que as condições sociais e econômicas na Venezuela começaram a piorar. Dessa forma, migrou para o Peru.
“As mulheres que receberam o diagnóstico no Peru estavam em estágios avançados da doença, porque aqui os diagnósticos não são rápidos, além do fato de que [o lúpus] não é uma doença comum”, disse Martha Fernández, presidente da Associação Proteção Vulnerável (APPV).
Em 2020, Karina foi diagnosticada com Sjögren, uma doença na qual o sistema imunológico do corpo ataca suas próprias células saudáveis que produzem saliva e lágrimas. “Nos postos [centros de saúde locais] não me atendem. Os enfermeiros dizem que não conhecem o Sjögren”, lembra.
Você precisa lidar não apenas com uma batalha com o seu próprio corpo. A discriminação e vulnerabilidade é tripla ao ser migrante, mulher e ter lúpus.
Os fatores sociais, geográficos e econômicos que cercam o paciente não permitem o diagnóstico ou a regularização do tratamento. A mesma coisa aconteceu com Jenny.
Desde que descobriu o lúpus, sentiu como a mesma sociedade a discriminava. A doença apresentou-se como convulsões enquanto se encontrava estudando na universidade. “Viajamos (de Piura) para Lima, mas havia problemas para me transportar. Os carros não queriam me levar. Fomos ao hospital em Lima pela emergência. Não queriam me atender porque me viam bem, mas eu não estava bem. Não sabia quem era nem com quem ia”, comenta.
Passou 15 dias hospitalizada e apresentou um quadro de psicose. Foi assim que o lúpus se apresentou no corpo dela. Além disso, Jenny reconhece que o lúpus causa alterações mentais, como episódios depressivos.
Somado a isso, os traumas também ativam a doença. Aconteceu com Karina, que não imaginou que ao fazer uma ultrassonografia no centro de saúde seria agredida sexualmente por um médico no Peru. “Estava assimilando em minha cabeça o que se passava comigo”, comenta. “A quantos pacientes isso pode ter acontecido depois de mim, e eu não disse nada”, revela.
Mulheres afro e o lúpus
De acordo com o último censo do Instituto Nacional de Estatística (2017), no Peru há 828.894 pessoas que se autoidentificaram como afro-peruanas. Um dos departamentos com o maior número de pessoas afro é Piura, cidade de Jenny. Ela se reconhece como mulher mestiça e afrodescendente.
Há um estudo indicando que as pessoas afrodescendentes estão mais propensas a desenvolver doenças como o lúpus. Mas essa premissa pode gerar preconceitos e nos faz esquecer de outras doenças que também se apresentam nessa população, como indica Gabriela Noles, médica afro-peruana e mestre em Saúde Pública da Escola de Saúde Pública de Harvard.
“Se você avalia duas mulheres diferentes, terá uma desigualdade determinada por sua história ou oportunidades presentes em certas condições de vida. Há esse mito de que as pessoas negras têm uma maior carga genética para desenvolver certos tipos de doenças, e isso não é verdade”, ressalta.
O racismo, a discriminação racial e estrutural, bem como o uso de linguagem discriminatória e violenta que reforça os preconceitos, os estereótipos e estigmatiza essas populações, colocam-nas em um contexto de desigualdade e exclusão.
E é uma situação generalizada no país. Assim como a ausência de serviços médicos em localidades distantes para o cuidado das doenças. Aconteceu com Jenny, quando precisou se deslocar a Lima, em uma viagem de mais de 15 horas, e ocorre em todas as províncias e/ou distritos distantes da capital do departamento ou da capital peruana.
Educação e redes de apoio
“Quando um paciente se trata de forma adequada, pode viver como qualquer outra pessoa. Se tem o tratamento adequado e contundente, pode viver como qualquer outro. Na medida em que educamos os pacientes, por si só saberão se conduzir melhor”, explica o médico Oswaldo Castañeda, reumatologista com quase 40 anos de experiência nessa doença.
“É disso que o mundo precisa, conscientizar-se. Há uma consciência que está aí, mas está adormecida. É preciso despertar a consciência, porque não sou a única”, destaca Karina.
Para Jenny, a doença é uma oportunidade de se encorajar, além de receber o apoio da sua família. “Não podemos nos deixar vencer por esta doença. É algo que já temos pela vida toda, então precisamos seguir em frente.”
Gumelín tem esperança no futuro e sobretudo em como evolui o comprometimento renal dela. “Há uma possibilidade de começar uma pesquisa com o meu caso, assim que fizerem o transplante. O médico disse que estão avaliando o comportamento do meu lúpus antes e depois da operação. Há muito pouca informação e muito a investigar. Fico feliz se puder ajudar com isso. De verdade, tomara Deus que nesta vida consigam a cura”.
*Este projeto do Historias Sin Fronteras foi desenvolvido com o apoio do Departamento de Educação Científica do Instituto Médico Howard Hughes e da InquireFirst.