Ser mulher e afrodescendente são condições que, segundo a literatura médica disponível, desencadeiam quadros de Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) mais graves. “Alguns dos genes relacionados ao desenvolvimento do lúpus estão associados ao cromossomo X, mais frequente nas mulheres. E há também uma ativação das células linfocitárias que produzem os anticorpos pelo estrogênio, um hormônio predominante nas mulheres”, explica o coordenador da unidade de ensino de reumatologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Evandro Klumb.
Segundo ele, quase 85% das pessoas atendidas no serviço de lúpus do Hospital Universitário Pedro Ernesto do Rio de Janeiro são da raça negra. “Os casos mais graves de lúpus ocorrem em afrodescendentes, seguidos pelos caribenhos e latinos misturados com espanhóis”, acrescentou o médico.
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No entanto, há mais fatores que contribuem para que as mulheres afrodescendentes sejam as que mais morrem por essa doença no país.
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra de 2009 afirma que 11,9% dos brasileiros negros já se sentiram discriminados em algum serviço de saúde. “Foi muito bom ter essa política, mas até hoje poucas cidades a implementaram. As mulheres negras são as com os piores índices de saúde no Brasil”, conta Marjorie Chaves, ativista feminista negra e doutoranda em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB).
“A construção social da mulher negra na sociedade brasileira é que somos fortes. Muitos médicos têm em sua imaginação que podemos suportar a dor”, afirma a consultora e especialista em Direitos Humanos e Questões Étnico-Sociais, Noêmia Lima.
É aqui onde Saionara sente o impacto da discriminação ao buscar tratamento para o LES. “Se você vai ao sistema público, encontra uma fila enorme. Quando chega a sua vez, acaba o formulário. Se reclama, é mal educada. Se vai ao serviço privado, te desprezam. Te discriminam da mesma maneira”, reclama ela, que precisa ir ao hospital a cada três meses, para controlar a evolução da doença.
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Veja o que já enviamosPara Noêmia, há outra questão a ser considerada: as condições de vida das pessoas interferem no seu processo de adoecimento. Segundo ela, é fundamental levar em conta as vulnerabilidades dessas mulheres, desde a moradia até a educação. Saionara, por exemplo, esteve sem trabalho durante um ano, após descobrir que tinha lúpus. Usou todo o dinheiro da rescisão trabalhista para pagar médicos e remédios, pois não conseguia vaga no sistema público.
Há outras situações ainda piores, diz a fundadora da Associação Lúpicos Organizados da Bahia (Loba), Jacira Santana, de 64 anos. Das 4 mil pessoas atendidas pela instituição, cerca de 85% são mulheres negras que vivem nas periferias. “Muitas vêm dizendo que os médicos falam que a dor provocada pelo lúpus é ‘coisa da cabeça’, que é ‘por falta de homem’. Muitas são do interior, não sabem onde há atendimento. Outras sofrem violência doméstica”, diz Jacira.
Quando descobriu o lúpus, Saionara passou um mês e meio deitada, sem querer sair de casa nem fazer nada. Então decidiu que tinha de mudar seus próprios prognósticos. Hoje, vive um dia de cada vez. “Um dia você sente uma coisa e, no dia seguinte, outra. Se você se deixar cair, a doença passa por cima de você”, conclui.
Território, desigualdades e falta de médicos
No Brasil, não só a cor da pele influencia o acesso e a qualidade do tratamento do lúpus. As regiões historicamente mais pobres, como o Nordeste e o Norte, onde há a maior população indígena e negra, também são aquelas em que a incidência do lúpus é maior, mas o acesso aos medicamentos e reumatologistas é mais precário e os dados sobre a doença são escassos. Um estudo da Fundação de Saúde das Américas (AHF), publicado em 2021, mostrou que o Brasil possui poucos dados sobre o LES e, quando eles existem, incluem apenas o cenário da doença nas regiões Sul e Sudeste do país.
Há três anos, quando começou a sentir dores nas articulações, Irma de Almeida, de 48 anos, morava em São Paulo. Com os dedos inchados e dores nas costas, procurou atendimento especializado, mas não conseguiu encontrar reumatologistas na rede pública de saúde. Resolveu então pagar uma consulta particular e fazer também todos os exames. Para custear tudo, pediu um empréstimo de R$ 8 mil (aproximadamente US$ 1.500). Assumiu um risco financeiro para aliviar o sofrimento e a dor. Oito meses depois, recebeu o diagnóstico de lúpus.
Desde então, tinha consultas e exames a cada três meses, mas desde agosto de 2020 não consegue mais agendar um reumatologista. Em primeiro lugar, devido à pandemia e à paralisação dos serviços. Depois, porque foi morar em Roraima, estado fronteiriço com a Venezuela, onde trabalham apenas três reumatologistas. “Eu me preocupo demais, perco o sono. Ao ir ao médico, tiramos um peso dos ombros”, diz a mulher que em fevereiro deste ano fez o pedido de consulta na cidade onde mora, e ainda está esperando.
O estudo AHF, com pesquisadores brasileiros, mostrou que as seis principais barreiras para o diagnóstico precoce e acesso ao tratamento no país são: insuficiência de reumatologistas, somando-se as desigualdades em sua distribuição no país; a falta de capacitação dos profissionais da atenção básica; diretrizes governamentais desatualizadas para o tratamento e fornecimento de novos medicamentos; acesso precário a testes diagnósticos; a falta de dados epidemiológicos; e falhas e interrupções do tratamento.
“Faltam políticas públicas. Dedicamos dez anos para viabilizar esse estudo publicado no ano passado. Falta também educação sanitária para a população”, afirma Evandro Klumb. Neste momento, a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) iniciou o primeiro estudo para fornecer dados epidemiológicos sobre a população com lúpus no país. “É uma iniciativa importante para que conheçamos as dificuldades das pessoas com lúpus, os pontos de melhora e a medicação, como o paciente se comporta”, disse Edgar Torres Neto, reumatologista e coordenador da comissão de lúpus da SBR.
A luta das associações para sobreviver
As associações de pacientes geralmente são criadas dentro da angústia de quem convive com o lúpus, no ímpeto de lutar pela sobrevivência. Para os dirigentes, também é uma ocupação, pois muitos perdem o emprego por causa do tratamento. No entanto, realizar as atividades requer estímulo e resignação. Várias associações morrem com seus líderes, deixando os outros pacientes órfãos de hospitalidade e carentes de informação.
“Quero passar a associação para outra pessoa, por causa dos meus problemas de saúde, mas ninguém quer assumir a responsabilidade. Tem medo das perdas, às vezes é uma atrás da outra. Porque a gente se apega às pessoas”, disse Sandra Lucas, da Associação dos Portadores de Lúpus do Rio de Janeiro (Apalurj). Por outro lado, há pacientes que colocam nas associações a esperança de se tratar, como Saionara, na Bahia. “O lúpus te deprime, te incapacita de levar uma vida normal”, afirmou.
Durante a pandemia, muitos deles interromperam suas atividades. “Passamos um ano sem poder nos abraçar, sem falar, foi horrível. Perdemos muitos companheiros, não na morte, mas no equilíbrio”, lamenta Saionara.
Jacira Santana, da Loba, está com sua agenda lotada de atividades, como gosta e sonhou com essa possibilidade nos últimos meses da pandemia. Ela, que descobriu o lúpus 25 anos depois dos primeiros sintomas, sabe a diferença que envolve o acolhimento. “Temos de lutar para que as pessoas se recuperem e para que vejam que somos seres humanos iguais”, afirma.
*Este projeto do Historias Sin Fronteras foi desenvolvido com o apoio do Departamento de Educação Científica do Instituto Médico Howard Hughes e da InquireFirst.