Ilha do Pará usa barreira humana para tentar evitar coronavírus

População mobilizada de Fortalezinha impediu entrada de turistas durante três meses, mas hoje enfrenta com medo o retorno dos visitantes

Por Amazônia Real | ODS 3 • Publicada em 31 de agosto de 2020 - 09:58 • Atualizada em 15 de setembro de 2020 - 16:59

Marta Chagas, dona de restaurante na Fortalezinha, mantém isolamento por conta própria: moradores fizeram barreira humana em vilarejo até conseguir que prefeitura proibisse turistas (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

*Roberta Brandão*

Maiandeua, que em tupi significa “mãe terra”, é uma ilha de 19 quilômetros quadrados banhada por rios de água doce, em uma parte, e pelo Oceano Atlântico na outra ponta. É nesse arquipélago paraense que a população do vilarejo de Fortalezinha realizou, em abril, uma barreira humana para impedir o ingresso de qualquer pessoa que viesse de fora e disseminar o novo coronavírus na localidade do nordeste do Pará. Os moradores lutaram para que ninguém contraísse a covid-19. Mas, aos poucos, aqueles que tentavam proteger a entrada na ilha foram ficando doentes e sendo tratados como se estivessem com uma virose, uma gripe forte. Rapidamente, a doença se alastrou. E para desespero dos moradores, nos últimos finais de semana, o local tem sido invadido por turistas sem máscaras e nenhuma preocupação com o isolamento social.

A Ilha Maiandeua foi a primeira Área de Proteção Ambiental (APA) a ser reconhecida na região do Salgado paraense em meados de 1990. O lugar é conhecido mundialmente pelas suas paisagens naturais, com praias, dunas e rios exuberantes. “Aqui tinha tudo para ninguém contrair o vírus”, relata a assistente-social Driele Guimarães, dona de um hotel na vila de Fortalezinha, que fica no município de Maracanã. Em poucas cidades brasileiras, foi possível ver uma mobilização de resistência popular, de cerca de 600 pessoas, como a que ocorreu neste arquipélago paraense.

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Em 19 de março, atendendo a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS), a prefeita de Maracanã, a professora Raimunda da Costa Araújo (PSDB), mais conhecida como Dica, baixou o decreto número 60 com medidas de prevenção de combate à pandemia do novo coronavírus na Ilha Maiandeua, especificando as Vilas de Algodoal, Fortalezinha, 40 do Mocooca, Penha, Derrubado e todas as comunidades ribeirinhas, mas não proibiu a entrada de turistas, o que deixou a região vulnerável à disseminação do vírus.

Os moradores de Fortalezinha temiam pelo pior na pandemia do coronavírus. Eles então começaram a digitar freneticamente por uma solução.  “Fizemos um grupo de Whatsapp que juntou vários grupos da ilha com só um interesse: se defender e defender sua família”, conta Said Senado. Logo, o grupo virtual decidiu fechar as portas do vilarejo, defendendo a comunidade contra a chegada do novo coronavírus trazida pelos turistas. “O grupo de gays é super organizado e as mulheres foram fundamentais na barreira. Também fizemos um abaixo-assinado. Juntou várias tribos da ilha, eu acho que o nativismo renasceu”, acrescenta o morador, que participou do grupo que fiscalizava a entrada na ilha durante a noite.

A professora Kelly, integrante da barreira na beira da praia de Fortalezinha: boletim de ocorrência após a agressão de invasores (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
A professora Kelly, integrante da barreira na beira da praia de Fortalezinha: boletim de ocorrência após a agressão de invasores (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

A barreira organizada pela população local teve início em 6 de abril e se estendeu até o dia 23. Nesse período, os moradores de toda ilha se mobilizaram e fizeram abaixo-assinado para entregar à prefeitura de Maracanã exigindo a proibição dos turistas em Maiandeua – o que finalmente aconteceu a partir do dia 24 de abril. Mas não foi fácil resistir à pressão. Foi também nesse período da barreira humana, que três homens tentaram entrar à força pelo trapiche e embarcar na rabeta que atravessa o Rio Maracanã. “Eles vieram cheios de coisas, o que demonstrava que não iriam passar pouco tempo. A mãe deles era moradora”, lembra a professora Kelly Moura.

Eram dez horas da manhã e só havia mulheres na contenção. “Eram três homens grandes, fortes. Foram com tudo para cima da gente dando soco, dando tapa. Eu fui a mais machucada, tive mais hematomas. Eles deram um tapa em mim e um soco no peito da minha colega, que, aliás, sente dores até hoje. E eles conseguiram passar, infelizmente”, lamenta.

Os agressores e invasores ainda quebraram o telefone de uma pessoa que filmava as agressões, no relato da professora Kelly, que registrou um boletim de ocorrência na delegacia em Maracanã, o município onde fica o arquipélago paraense. “E, apesar de ficarem tentando comprar o barqueiro com valores altos, ele não os atravessou em solidariedade à gente”, conta a professora, emocionada.

Trânsito de banhistas no fim da tarde de sábado, 25 de julho, na praia de Fortalezinha: a maioria não usava máscara e andava em grupos ((Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Isolamento e perda de controle

A situação, contudo, saiu do controle, segundo a jornalista Édria Batista, que integra o movimento de moradores Filhos da Terra. A associação, ciente do abandono e do desamparo da comunidade, arrecadou mil máscaras, álcool em gel e água sanitária e doou para a prefeitura. Mas, na cidade, não havia teste rápido, medicação ou mesmo campanhas educativas de prevenção, como usar e lavar as máscaras. Também faltava informação, já que em muitas regiões não há acesso à internet.

Embora as barreiras de contenção tenham surgido pela iniciativa da comunidade, os resultados não saíram exatamente como o esperado. No vilarejo de Algodoal, no extremo norte da ilha de Maiandeua, o isolamento começou a ruir. “Os moradores daqui precisam sair para receber o auxílio emergencial, o Bolsa Família. Se aqui tivesse pelo menos uma Caixa Econômica, lotérica ou os estabelecimentos recebessem cartão de débito”, conta a assistente social Driele Guimarães.

Sem poder ir e vir, os próprios moradores se sentiram ameaçados no vilarejo. “Aí começou a prejudicar muita gente, porque foi uma decisão a partir do medo da comunidade e não a pedido da prefeitura. Então eles usavam de força, de terçado, de machados, autoritarismo para as pessoas não passarem, mesmo sendo da comunidade”, lembra a jornalista Édria. “Depois soubemos que uma só pessoa contaminada foi capaz de passar o vírus para todo campo da Mangaba, porque ela ficava na barreira sanitária durante o dia, quando havia o maior número de fluxo de pessoas”.

Sem o Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) ou assistência da administração pública no combate à pandemia foi fácil para o novo coronavírus se alastrar na ilha de Maiandeua. Segundo o último boletim epidemiológico publicado no site da prefeitura de Maracanã, no dia 10 de agosto, havia 146 casos confirmados e 16 óbitos de covid-19 no município, que tem 29 mil habitantes, espalhados por nove distritos, em uma área de mais de 700 mil quilômetros quadrados,

Como a gestão do município não informa os números da doença por cada vila e não divulgou os dados solicitados à reportagem da Amazônia Real, a informação coletada junto à população é a de que não houve mortes na Ilha de Maiandeua. Eles dizem que ocorreram muitos casos de síndrome gripal e poucos casos evoluíram para o quadro grave ou tiveram que ser tratados na capital.

Foi o caso da mãe, de 64 anos, da professora Kelly Teixeira, que precisou ir para Belém em estado grave. “Eu pensei que minha mãe ia morrer. Meu desespero é que ela teve que pegar um mototáxi de casa até onde pega o barco; depois teve que atravessar de barquinho o rio; em Maracanã, minha irmã a pegou de carro e a levou para Castanhal (maior cidade da região). A sorte é que temos esse transporte, mas e quem não tem? É isso que as pessoas não entendem o nosso medo. Aqui não tem atendimento e é difícil sair daqui”, conta.

O posto de saúde do vilarejo de Fortalezinha funciona apenas com uma técnica de enfermagem, moradora da vila. “Se precisar é só chamar em casa. A dona Mariana ali tem o meu telefone”, afirmou a trabalhadora, cuja identidade será preservada pela reportagem. O universitário Ícaro, 20 anos, em visita à vila, amargou com a falta de atendimento médico. Gemendo de dor, aguardava a chegada da técnica de enfermagem sentado em um banco, sob o sol, em frente ao posto, onde a reportagem o encontrou.

O médico Raphael Haber entregou o lugar no posto de saúde de Algodoal há aproximadamente um mês. “Esse trabalho foi desafiador, pois a principal dificuldade é a comunicação na ilha e ações mais enérgicas por parte do poder público. Em nenhum momento recebi algum tipo de plano de contingência e alguns insumos básicos faltavam como EPIs”, diz Haber, acrescentando que o uso de máscara e as medidas de isolamento social entre os moradores foram tomadas de forma ineficaz, sobretudo por não haver fiscalização e orientação efetivas. “Minha saída foi principalmente por divergência de metodologia de trabalho junto ao poder público e pouco apoio ao trabalho preventivo”.

Aglomeração durante o embarque e o desembarque de banhistas nas praias de Fortalezinha: prefeitura liberou entrada de turistas no fim de julho (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Liberação oficial no fim de julho

Em abril, após a pressão da população, a prefeitura de Maracanã, Raimunda Araújo, recebeu da comunidade de Fortalezinha um abaixo-assinado, onde a maioria dos moradores da ilha Maiandeua se posicionou contra a presença de turistas no local. A prefeita baixou o decreto número 100, proibindo a entrada de turistas em 24 de abril. “Fica proibida a entrada de qualquer pessoa para fins turísticos por 20 dias” (até 13 de maio). Para surpresa de todos, no mesmo dia a prefeita revogou a decisão e liberou a entrada de turistas pelo decreto no. 101. “Fica revogado o Decreto Municipal nº 100, de 24 de abril de 2020, que dispunha sobre a prorrogação de algumas medidas de combate ao covid-19”, estabelecia o novo decreto.

Em nova decisão na mesma data, a Raimunda Araújo voltou atrás e baixou o decreto no. 102, proibindo a entrada dos turistas. “Fica proibida a entrada de qualquer pessoa para fins turísticos ou qualquer finalidade que não demonstre caráter essencial para adentrar nas localidades do artigo 1º deste Decreto, conforme disposição através dos Decretos Federais, Estaduais e Municipais previamente instituídos”. 

A proibição dos turistas pela prefeitura permaneceu até o dia 14 de julho, quando Raimunda Araújo baixou o decreto no. 201 permitindo a reabertura da região para os turistas e exigindo o uso de máscaras em toda a população e visitantes das vilas das ilhas como medida de enfrentamento da pandemia. “Fica permitida a entrada de turistas às ilhas mencionadas no artigo acima, após serem submetidos às providências dos fiscais sanitários, a fim de realizar identificação, medição de temperatura e orientações acerca de procedimentos e condutas a serem tomadas durante a estadia nas ilhas”. O período da abertura foi estipulado de 16 a 30 de julho, mas a prefeitura não baixou novos decretos.

A prefeita de Maracanã determinou medidas preventivas para o turismo com o intuito de diminuir o contágio na ilha.  No decreto, ficou obrigado a “todos os residentes e não residentes o uso de máscaras para qualquer atividade que requeira locomoção externa nas vias públicas”, entre outras ações. Para ingressar na Ilha de Maiandeua é preciso comprovar estar hospedado em algum hotel ou ser proprietário de imóvel. Festas, rodas de carimbó e aglomerações foram proibidas.

Turistas sem máscaras se aglomeraram na pracinha de Fortalezinha no sábado (25/7), à espera de festa que durou toda a madrugada: sem medidas de segurança (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Apesar das proibições determinadas pela prefeitura de Maracanã, o que a reportagem da Amazônia Real presenciou no penúltimo final de semana do mês de julho é que nenhuma das medidas de prevenção foram tomadas. E não havia fiscalização. Aglomerações, som alto e trânsito de pessoas sem máscara puderam ser vistos em várias partes. A medição da temperatura era feita para quem ingressa na ilha, no trapiche de Maracanã. Mas cenas de desrespeito às medidas protetivas foram vistas com o retorno de um grande número de turistas. “Tira foto, pode tirar, pode fazer foto minha sem máscara. Eu quero que o corona se exploda”, disse um turista em tom de ameaça ao ser fotografado pela reportagem.

Já o vendedor Diego Pinheiro não adotou a máscara na praia e se justificou. “A gente, claro, tem que ter uma certa precaução, mas acho que o vírus já está disseminado. Para quem tem o sistema imunológico baixo, ele vai afetar com mais intensidade. Então os sintomas são raros. Eu apresentei alguns sintomas, mas foram bem fracos. Não posso dizer que estou 100% tranquilo, mas deu uma melhorada”, disse.

O gerente de vendas Jeferson Alcântara e a namorada destoavam e eram um dos poucos turistas que utilizavam máscaras. Atuais trabalhadores em regime de home office, eles decidiram visitar a Ilha do Algodoal para espairecer da quarentena. “Só de pegarmos a estrada a gente já sentiu a liberdade. Mas dessa vez foi uma estrada diferente. Com máscara, usando álcool em gel, evitando aproximação, distanciamento. Ontem, quando aglomerou, decidimos sair daquela parte da ilha. Então a gente vem tentando viver e entender essa nova normalidade”, explicou Jeferson.

Aglomeração durante o embarque e o desembarque de banhistas nas praias de Fortalezinha: turistas e nativos sem máscaras (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Falta d’água e descaso com a saúde

No Pará, já são 195.297 casos confirmados e 6.102 mortes em decorrência da Covid-19, conforme dados da plataforma Brasil.IO publicado em 26 de agosto, quando completou seis meses que o primeiro caso de coronavírus foi registrado no país.

O último boletim divulgado pelo município de Maracanã, de 10 de agosto, constava que os casos notificados de coronavírus subiram para 145. O número de mortes se mantinha em 16. Já a plataforma Brasil.IO, que monitoramento a pandemia no país, apontou um acréscimo de 161 casos confirmados em 26 de agosto, mas registrou que o número de óbitos caiu de 16 para 15.

A Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa) informou que o município de Maracanã teve uma taxa de letalidade de 11,5%. Segundo a assessoria de comunicação do governo, a população é atendida pelo Hospital de Campanha do Hangar, sediado em Belém, possui 420 leitos e está preparado para atender demandas da capital e das regiões nordeste e do Marajó Oriental. A unidade está distante a três horas e meia de viagem de veículo de Maracanã.

O nome do município litorâneo, Maracanã, também de origem indígena, foi escolhido, segundo os historiadores, em alusão a uma espécie de uma arara comum na região Amazônica. É essa ave que dá nome ao instrumento percussivo do carimbó, a maracá. O carimbó é um expressão cultural muito relevante para o turismo e construção identitária na região do Salgado paraense. O município que fica a 164 quilômetros da capital paraense, a cerca de três horas de carro, ligado por um ramal cheio de buracos, é dividido atualmente em nove distritos, com uma população de 29.417 habitantes, segundo dados do IBGE.

As torneiras vazias durante quase todo o dia, moradores e turistas, mesmo os hospedados em pousadas, perambulando em busca de um balde com água, denunciam o descaso com a saúde pública dos moradores do vilarejo de Fortalezinha. que antecede a pandemia do novo coronavírus. A presença de turistas na ilha Maiandeua também se fez notar pelo rastro de lixo deixado para trás. “Eu isolei meu estabelecimento porque estou respeitando o decreto e não posso trabalhar, mas o povo vem de fora e bagunça. Sempre limpo o lixo quando abro o meu bar. Mas não abri, por que eu que irei limpar?”, questiona a dona de um restaurante Marta Chagas, que por iniciativa própria isolou o local com uma fita zebrada.

Nascido em Fortalezinha, Genelson Souza, o Catitu, divide com a companheira espanhola Gála González um hotel e restaurante na beira da praia. O empreendedor, apesar de estar recebendo menos hóspedes e preservando o distanciamento entre mesas, afirma que não era favor da reabertura ao turismo, mas ficou sem escolha diante da decisão da prefeitura. “Na verdade, senti mais medo da morte e vontade de proteger a minha família. Nesse tempo, como também vivemos da arte, da agricultura e da pesca, teríamos como sobreviver sem o turismo”, explica ele.

*Amazônia Real

Amazônia Real

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