Heroínas no combate à covid-19: ‘Todas somos maqueiras, enfermeiras, copeiras e limpadoras’

Nancy e as demais enfermeiras do Hospital São José, em Fortaleza: equipe sente falta dos abraços (Foto: Arquivo pessoal)

Ampla maioria no grupo de profissionais de saúde mais exposto à covid-19 no Nordeste, mulheres contam como precisam assumir novas funções para evitar o colapso do sistema

Por Mariana Ceci | ODS 3 • Publicada em 19 de maio de 2020 - 09:27 • Atualizada em 10 de março de 2021 - 08:43

Nancy e as demais enfermeiras do Hospital São José, em Fortaleza: equipe sente falta dos abraços (Foto: Arquivo pessoal)

Quando o coronavírus começou a infectar em maior medida os profissionais da área de saúde nos hospitais de Fortaleza, as enfermeiras do Hospital São José, principal referência para o atendimento de doenças infectocontagiosas no Ceará, não hesitaram em assumir novas funções para garantir a continuidade do atendimento aos pacientes internados na unidade. “Estamos fazendo de tudo o tempo todo. Em algum momento, todas somos maqueiras, enfermeiras, copeiras e limpadoras, inclusive para poder racionalizar os Equipamentos de Proteção Individual”, conta Nancy Costa, de 52 anos, gerente do setor de enfermagem. A realidade não é diferente em outras instituições hospitalares do estado, terceiro mais afetado pela covid-19 no Brasil, onde profissionais estão tendo que se desdobrar em múltiplas funções para evitar o colapso do sistema.

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Apesar disso, quando o Governo do Ceará anunciou que pagaria um auxílio para os trabalhadores da saúde afastados por Coronavírus, essas profissionais, assim como as demais categorias, com nível superior ou não, souberam que receberiam uma compensação inferior à dos médicos afastados pelos mesmos motivos. Baixos salários, pouca valorização e falta de equidade salarial entre homens e mulheres ainda é uma realidade para a maior parte das profissionais que se encontram na linha de frente do combate à doença. De acordo com um levantamento do Observatório do Nordeste para Análise Sociodemógrafica da Covid-19 (Onas), cerca de 80% dos 220 mil profissionais que estão atuando nos hospitais, unidades e postos de saúde na região são mulheres, a maior parte delas, 78%, nos serviços com as mais baixas remunerações do setor.

De acordo com as análises do Onas, que utilizou como base os dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais 2017), as mulheres estão mais presentes nas funções de técnicas de enfermagem, recepcionistas, serviços de apoio e enfermeiras. A professora Luana Myrrha, do programa de pós-graduação em Demografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ao qual o Onas está vinculado, conta que há alguns fatores históricos que explicam a maior presença feminina nessas áreas. “Inicialmente, quando começaram a se inserir no mercado de trabalho, as mulheres só podiam estar presentes nas ocupações que simulavam o trabalho que elas já faziam dentro de suas casas, o chamado ‘trabalho reprodutivo’”, explica a professora. “As mulheres começaram como empregadas domésticas, professoras, cuidadoras, enfermeiras, e isso se propaga até hoje, como pode ser visto pela predominância de mulheres nesses setores”, completa.

Infográfico: Fernando Alvarus

Ela aponta, ainda, que a área da enfermagem, no passado, era tratada como uma forma de “redenção” para mulheres pelo cometimento de pecados, o que contribuiu também para a desvalorização da profissão. “A forma como se deu a construção da profissão ao longo da história tem um reflexo direto nos salários e valorização da profissão”.

Os números levantados pelo Onas apontam que, enquanto a remuneração média de um médico no Nordeste é de R$ 9.767,03, um enfermeiro tem o rendimento médio de R$ 3.809,47. Os técnicos e auxiliares de enfermagem, por sua vez, que correspondem a cerca de 83 mil pessoas, recebem, em média, R$ 1.665,86. Nos serviços de apoio, fundamentais no combate ao coronavírus pela importância da higienização constante dos locais de atendimento, o salário médio é de R$ 1.344,11.

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Quanto maior a remuneração, que está diretamente ligada à capacitação, maiores são as diferenças salariais, até porque, quando os salários são muito baixos, esbarram em questões como o próprio limite imposto pelo salário mínimo

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Para as mulheres, as discrepâncias não se resumem à diferença salarial entre categorias. Os dados apontam que, enquanto um técnico em enfermagem homem recebe, em média, R$ 1.665,86, os salários médios das mulheres são de R$ 1.595,72. O mesmo se repete em outras categorias, inclusive a dos médicos, na qual, enquanto um homem recebe cerca de R$ 9.767,03, o salário médio de uma mulher é de R$ 8.951,57, 8,3% a menos.

“Muitas mulheres, por ficarem integralmente responsáveis pelo trabalho doméstico em casa, às vezes ficam impedidas de pegar a mesma quantidade de plantões que um homem, por exemplo”, explica Luana Myrrha. Esse, no entanto, não é o único fator que influencia nessa diferença, de acordo com a professora. “Mesmo nos contratos idênticos em termos de carga-horária, de 40 horas semanais, as mulheres continuam recebendo até 10% a menos do que os homens. Ou seja, independente da carga-horária que vá assumir, a tendência é que elas recebam salários menores que os colegas”, completa.

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Muitas vezes, não temos EPIs para trabalhar, as máscaras N-95 não estão chegando. Nesses dias, quando não há equipamentos, assumimos a postura de não realizar atendimentos, algo que não é bom nem para nós nem para a população

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O grau de escolaridade e especialização exigido também influencia na falta de equidade salarial. De acordo com o Onas, quanto maior o grau de escolaridade exigido pela função, maior a tendência à existir discrepâncias nos salários pagos para homens e mulheres. “Quanto menor é a remuneração, menor é a desigualdade em termos de gênero no que diz respeito aos salários. Quanto maior a remuneração, que está diretamente ligada à capacitação, maiores são as diferenças salariais, até porque, quando os salários são muito baixos, esbarram em questões como o próprio limite imposto pelo salário mínimo”, diz Myrrha.

(Infográfico: Fernando Alvarus)

A gerente de enfermagem do Hospital São José, Nancy Costa, que há 27 anos trabalha na área e tem mestrado e doutorado em Enfermagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que a desvalorização acaba impactando em questões como a autoestima dos profissionais que estão nesses serviços, hoje vistos como essenciais por grande parte da sociedade. “Quando falamos em termos de SUS, precisamos entender que estamos tratando de uma equipe multiprofissional. No modelo de saúde hospitalocêntrico, a figura do médico é tudo. Hoje, o médico é uma importante figura dessa equipe, que conta com enfermeiros, auxiliares, técnicos, fisioterapeutas, todos essenciais para garantir à assistência em saúde”, explica.

Em muitos estados do Nordeste, a falta de uma carreira estruturada para a maior parte dos profissionais da saúde é um dos principais problemas que contribuem para as disparidades salariais. É o caso da Bahia, estado que concentra a terceira maior quantidade de profissionais ligados a serviços de saúde para cada 100 mil habitantes na região.

‘Muitas vezes, não temos EPIs para trabalhar’

Enfermeira em uma Unidade de Saúde da Família em Salvador, Dandara Santos, de 31 anos, explica que a falta de um plano de carreiras, antes mesmo da pandemia, já fazia com que os profissionais da área tivessem que trabalhar turnos exaustivos, com cargas-horárias superiores a 48 horas semanais. “Não temos uma determinação de carga-horária, nem temos piso salarial. Muitas vezes, os colegas precisam de mais de um vínculo de trabalho para conseguir uma renda que seja adequada para um profissional de nível superior”, relata.

Na unidade de saúde em que trabalha, todos estão diretamente expostos à doença, muitas vezes sem a quantidade necessária de EPIs, que acabam sendo adquiridos pelos próprios profissionais. “Muitas vezes, não temos EPIs para trabalhar, as máscaras N-95 não estão chegando. Nesses dias, quando não há equipamentos, assumimos a postura de não realizar atendimentos, algo que não é bom nem para nós nem para a população”, completa Dandara.

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A angústia aumenta quando vemos aglomerações, muitos carros na rua. Tudo isso tem causado uma ansiedade nas pessoas que estão na linha de frente

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A enfermeira Gisele Lima, de 32 anos, que trabalha em outra Unidade de Saúde da Família de Salvador, conta que, apesar das homenagens que se tornaram corriqueiras aos profissionais da saúde, a esperança de que ações práticas para garantir estrutura e valorização para os trabalhadores é baixa no cenário atual. “Os gestores e as autoridades, que nunca valorizaram essas categorias no passado, agora dizem que, por causa da covid e do impacto provocado por ela na economia, não há recursos para a valorização. É como se agora houvesse uma desculpa oficial para algo que vem de anos”, diz a enfermeira.

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Dói ver um colega chorando de exaustão no corredor e não poder dar um abraço. Uma frase que se tornou comum entre nós é: sinta-se abraçado.

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Além de terem que conviver com o medo do contágio pelo coronavírus, a desigualdade e as baixas remunerações, essas profissionais acabam, ainda, tendo que conciliar as múltiplas funções com a lotação cada vez maior dos hospitais e a pressão psicológica provocada por uma doença que impõe a solidão aos pacientes internados e aos profissionais que os tratam. “Meu esposo é do grupo de risco, tem doença pulmonar crônica, e tem mais de 60 anos. Na minha casa, tivemos que separar nossos quartos. Também não vejo meu pai, de 84 anos, nem minha mãe, de 75, desde que tudo isso começou”, conta Nancy. A enfermeira Gisele Lima também está impedida de ver os pais, que moram no interior da Bahia. “Meu pai é asmático, hipertenso. Acaba que a gente fica apavorada em alguns momentos porque o desejo é estar junto e poder cuidar deles como estamos cuidando dos demais. A angústia aumenta quando vemos aglomerações, muitos carros na rua. Tudo isso tem causado uma ansiedade nas pessoas que estão na linha de frente”, diz Gisele.

No Hospital São José, que dispõe de 90 leitos para pacientes de covid-19 e outros 8 leitos de UTI, Nancy conta que é o apoio mútuo e a solidariedade entre esses profissionais que está servindo de combustível para o enfrentamento da doença. “Eu preciso acreditar que nós, enquanto categoria, vamos sair fortalecidos. Espero que a população enxergue o verdadeiro valor que cada uma dessas pessoas que está na linha de frente tem. Dói ver um colega chorando de exaustão no corredor e não poder dar um abraço. Uma frase que se tornou comum entre nós é: sinta-se abraçado. Quando tudo isso passar, sempre digo que teremos um festival de abraços. Por hora, temos que ficar fortes pelos nossos pacientes que dependem de nossos cuidados, por todos os outros que virão e por nossos familiares”.

Mariana Ceci

Mariana Ceci é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tem interesse principalmente nas coberturas voltadas para o Nordeste brasileiro, Direitos Humanos, Gênero e Meio Ambiente. Desde 2016, atua como repórter no jornal Tribuna do Norte, em Natal, e colaborou com a agência Saiba Mais, de jornalismo independente.

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