ODS 1
Dia das Mães: contra o preconceito, mulheres compartilham maternidades atípicas nas redes sociais

Mães de crianças com condições de saúde raras contam suas histórias de resistência e criação de grupos de apoio online

Em vídeo, uma mulher corre nos corredores de um hospital para abrir a porta de um quarto, com celular, mochila, casaco e outras coisas em mãos. Quando a porta se abre, o vídeo revela que a cena se trata do reencontro de uma mãe e seu filho — uma criança que estava hospitalizada. Os dois se emocionam e se abraçam: era a primeira vez que se viam após 16 dias em que o menino esteve em coma. A publicação de junho de 2023 comoveu a internet, e, desde então, Tayane Gandra, mãe do menino Gui (como ficou conhecido após viralizar), compartilha conteúdos sobre a doença rara do filho, epidermólise bolhosa distrófica, além da rotina com a criança e sua maternidade.
“A epidermólise bolhosa não pega, o que pega e machuca é o preconceito! Essa é a nossa luta, estamos divulgando e cada vez mais motivados a levar informação. Estou aqui tentando conscientizar ainda mais sobre doenças raras. A gente vai chegar longe e nossos raros serão cada dia mais felizes”
Moradora do Rio de Janeiro, Tayane Gandra, 37 anos, trabalha como nutricionista e é mãe de dois filhos: Guilherme, de 10 anos, e o mais velho, chamado Antonny, de 16 anos. “As duas maternidades foram bem diferentes e impactantes para mim. O mais velho nasceu prematuro, com pouco menos de oito meses, mas saudável. Já o segundo filho foi uma gestação tranquila, mas nasceu com lesões abertas pelo corpo devido ao atrito no útero. Por duas vezes tive um susto no início”, conta.
O diagnóstico da condição de Guilherme foi realizado assim que ele nasceu. A Epidermólise Bolhosa Distrófica (EBD) é uma doença genética rara, não-contagiosa e sem cura, que causa a formação de bolhas na pele e mucosas, principalmente devido a traumas leves, pequenos atritos. A EBD é causada por mutações em genes que afetam as proteínas responsáveis pela união das camadas da pele. Tayane conta que aquele momento “mudou minha vida inteira: como pessoa, mãe, mulher, cristã. O Gui me trouxe uma realidade que eu jamais imaginei viver”. Ela ainda diz que se tornou uma “mãe leoa”, tendo que aprender a fazer curativos nas feridas e pensar em todos os cuidados necessários, como a alimentação — a mãe inclusive se formou em nutrição devido à condição do filho.
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Além de reunir forças para cuidar do filho, que já foi internado 27 vezes, Tayane passou a compartilhar sua experiência de maternidade, fé e luta contra a discriminação enfrentada por pessoas com doenças raras, além de apoiar outras famílias que vivem situações semelhantes. Em vídeo publicado no Instagram em abril, ela contou sobre uma situação em que o filho se aproximou para brincar com outra criança, que por sua vez reagiu mal ao ver as feridas na pele do Guilherme e se recusou a cumprimentá-lo. “A epidermólise bolhosa não pega, o que pega e machuca é o preconceito! Essa é a nossa luta, estamos divulgando e cada vez mais motivados a levar informação. Estou aqui tentando conscientizar ainda mais sobre doenças raras. A gente vai chegar longe e nossos raros serão cada dia mais felizes”, afirma Tayane na publicação.
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Veja o que já enviamos A Lei Gui foi um marco muito importante; votada e sancionada em tempo recorde, porém não aplicada até hoje. Mas não desisto e não vou descansar até que os pacientes no Rio de Janeiro tenham acesso a curativos, suplementos, insumos e a pensão vitalícia
A partir de muitas publicações, a nutricionista se tornou uma voz ativa na divulgação da condição do filho. Após vídeo do coma em 2023, o menino Gui também ganhou muitos seguidores, tornou-se influenciador mirim e hoje é um símbolo do time de futebol que torce, o Vasco da Gama. Ele ainda conquistou o troféu de melhor torcedor no último ano, pela “Fifa The Best Football Awards”, além de receber várias homenagens de jogadores e clubes. “Esse reconhecimento é merecido; ele ama e respira futebol. Então hoje ser embaixador oficial do time do coração, acho que é o maior marco da vida, porque o sonho dele é ser jogador de futebol. Como eu não vou admirar algo que faz meu filho esquecer a dor, esquecer os momentos difíceis que passa? Isso significa vida para a gente”, comenta Tayane.
A trajetória de Gui e sua mãe ultrapassou o futebol, chegando à política: a partir de uma proposta feita por Tayane pelo aplicativo da Alerj, foi instituída a lei estadual nº 10.142 de 2023, a Lei Gui, que cria um programa de assistência especializada na rede pública de saúde. A legislação estabelece a criação de centros de referência para atendimento dos pacientes, com consultas e exames, além de fornecer curativos e medicamentos. Institui ainda uma pensão especial para pacientes com epidermólise bolhosa ou seus responsáveis.
Para Tayane, essas medidas são fundamentais. “A mãe atípica sofre muito, principalmente quando é uma doença que demanda tanto. Durante toda a vida do Gui eu não havia conseguido o curativo pelo governo, e sei que é a realidade de várias mães. A Lei Gui foi um marco muito importante; votada e sancionada em tempo recorde, porém não aplicada até hoje. Mas não desisto e não vou descansar até que os pacientes no Rio de Janeiro tenham acesso a curativos, suplementos, insumos e a pensão vitalícia”, assegura.
De acordo com a nutricionista, sua crença religiosa lhe dá forças para comunicar sua história nas redes sociais, palestrar em eventos sobre a epidermólise bolhosa e seguir lutando pelos direitos desses pacientes e suas famílias. Ela acredita que, sem fé, não teria forças para cuidar do filho e ter esperança por dias melhores. “O medo de não estar fazendo o suficiente afeta toda mãe, mas acho que para a mãe atípica acaba sendo um pouco mais intenso. Fico pensando o tempo inteiro em novos tratamentos, terapias, remédios que possam melhorar a vida dele”, afirma Tayane, acrescentando que sua mensagem para outras mulheres que vivem a maternidade atípica é ter esperança: “a fé é a melhor mensagem de amor que existe”.

Daiane Gomes: mãe de criança com condição rara e autismo
Daiane Gomes, 36 anos, é mãe de Heitor, de 9 anos. Pedagoga de formação, ela trabalha como atendente terapêutica de crianças atípicas. Sua área de atuação e vida pessoal estão conectadas: Heitor é autista e também tem uma deficiência física. Daiane descreve o filho como uma criança “maravilhosa e encantadora”, motivo de sua luta e existência.
A decisão de engravidar, compartilhada com o marido, Adriano, ocorreu em 2015, seguindo o desejo que o casal sempre teve de serem pais. Mesmo com todo planejamento familiar para receber a criança, tudo mudou quando descobriram que havia a possibilidade do filho nascer com alguma deficiência. Com o nascimento, Heitor foi diagnosticado com uma malformação congênita rara: hemimelia fibular bilateral, que é a ausência da fíbula (osso da panturrilha), na perna esquerda. “Heitor começou a fazer um tratamento no hospital público e toda a nossa luta começou a partir desse diagnóstico. A gente encontrou uma alternativa não tão aceitável por pais, a amputação, quando ele tinha pouco mais de um ano. Tentamos ser mais racionais, porque, se seguíssemos a emoção, desistiríamos”, conta Daiane.
Essa troca na rede social ajuda mães a saberem que não estão sozinhas. Sempre tento levar um pouco de humor também, porque a nossa vida já é muito difícil, e se olharmos somente para as dificuldades, a gente acaba entrando em depressão
O tratamento ortopédico desde o início foi realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, Daiane relata dificuldades com a qualidade e durabilidade das próteses fornecidas, além da demora para serem feitas. Conforme Heitor cresceu, a prótese do SUS não oferecia a qualidade necessária para que ele andasse e corresse, levando a família a recorrer a vaquinhas e doações para conseguir próteses de melhor qualidade, que são caras e precisam ser substituídas conforme o crescimento. “O tratamento é pelo Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), mas a prótese era uma questão mais delicada”.
Durante o desenvolvimento de Heitor, havia sinais de comportamento atípico que acabaram passando despercebidos — como ausência de fala, dificuldade com sono e alimentação — porque o foco dos pais era que o pequeno pudesse se movimentar bem. Mais tarde, aos dois anos, Heitor recebeu o diagnóstico de autismo. Daiane acredita que conseguiu lidar com a notícia melhor depois do impacto inicial com a deficiência física de Heitor. Ela ressalta que, com as deficiências físicas é possível encontrar caminhos com acessibilidade e próteses (com resoluções mais práticas e materiais), mas com o autismo é diferente. “Quando falamos de questões de transtorno de neurodesenvolvimento, isso traz a questão de que o seu filho não vai se desenvolver o esperado para aquela idade”, afirma. O autismo é acompanhado por comorbidades como seletividade alimentar, distúrbios de sono, TDAH e deficiência intelectual.
A rotina de Daiane, Heitor e o pai é intensa. Heitor frequenta a escola pública, onde é acompanhado por uma mediadora. Ele faz terapias multidisciplinares como fonoaudiologia, terapia ocupacional e fisioterapia — tratamentos viabilizados porque os pais recorreram judicialmente para ter acesso. A rotina é cansativa e exige constante equilíbrio para lidar com as demandas escolares, de saúde e outras necessidades.
Em meio a essa rotina, Daiane – que mora com a família em Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio – começou a compartilhar sua maternidade nas redes sociais, inicialmente para buscar informações. Depois, passou a falar sobre suas vivências e sentimentos, conectando-se com outras mães que se identificavam com as dificuldades. Em posts no seu perfil “papo de mãe atípica” no Instagram, algumas frases transmitem suas vivências. “Sou a mãe que muitos aplaudem, mas que ninguém quer ser. A mãe que se dedica, passa noites em claro, vai atrás de cada direito, luta com todos os leões, que não desiste”, publicou.
A pedagoga expõe sua perspectiva em busca de conscientizar a sociedade. Suas redes sociais se tornaram uma rede de apoio online, onde mães e cuidadores trocam informações, experiências, dúvidas e sentimentos sobre tratamentos, direitos e os desafios diários. “Essa troca na rede social ajuda mães a saberem que não estão sozinhas. Sempre tento levar um pouco de humor também, porque a nossa vida já é muito difícil, e se olharmos somente para as dificuldades, a gente acaba entrando em depressão”, explica.
Que a gente consiga ser feliz com os nossos filhos, os aceitando da forma como são e lutando cada dia mais para que eles também encontrem a felicidade, independente de diagnósticos
Nas redes de Daiane, é comum o discurso de que mães atípicas são “guerreiras”, “especiais” ou “escolhidas por Deus”. Ela argumenta, entretanto, que as pessoas esquecem que mães atípicas são humanas, que sentem as mesmas dores e sofrem da mesma forma. A diferença, em suas palavras, é que “lutamos muito para ter o básico, por direitos de saúde e educação, para que nossos filhos possam viver e sobreviver”, para além das responsabilidades cotidianas. “Quem disse que estou aguentando? Esse estereótipo da mulher forte é uma negligência por parte da sociedade”, questiona.
Quanto ao seu próprio bem-estar pessoal, Daiane, como mãe, tenta se organizar para suprir as demandas do filho, sabendo que é “humanamente impossível conseguir atender a tudo que um filho com deficiência precisa”. Como mulher, tenta fazer algo por si mesma, como se cuidar, fazer atividades que gosta e viajar sozinha. Para o Dia das Mães, Daiane não sabe exatamente como será, mas espera um almoço tranquilo com o filho, em segurança e felizes. Ela reconhece que Heitor, que não tem muita consciência de datas comemorativas, pode não fazer uma surpresa. “A maternidade atípica ressignifica até mesmo essas datas, trazendo outros significados além do tradicional”, reflete.
Sua mensagem para outras mães é um incentivo a “encontrar forças no olhar dos filhos para continuar a caminhada” e, acima de tudo, “não desistir, pois essa palavra não existe no nosso vocabulário”, afirma. E encoraja outras mães atípicas a serem felizes dentro de suas realidades. “Que a gente consiga ser feliz com os nossos filhos, os aceitando da forma como são e lutando cada dia mais para que eles também encontrem a felicidade, independente de diagnósticos”.
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Ana Carolina Ferreira
Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.