(Ana Rita Cunha, Jane Fernandes e Joana Suarez*) – Perseguição a médicos, acesso ilegal a dados de pacientes e sindicâncias atropeladas. Essas são as suspeitas que pairam sobre conselhos de medicina do Brasil nos últimos cinco anos, envolvendo processos contra médicos que fazem aborto legal. Com conselheiros antiaborto, o Conselho Federal de Medicina (CFM) ampliou a atuação relacionada aos direitos reprodutivos, e emitiu resoluções com retrocessos para a saúde das mulheres e pessoas que gestam.
“Não se trata de um movimento recente, somente da era bolsonarista”, explica Sonia Corrêa, diretora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW na sigla em inglês). A relação entre o movimento antiaborto e profissionais de saúde aparece já na década de 1970 como reação às leis que ampliaram o direito à interrupção da gestação. “Tem raízes profundas em um enorme trabalho das forças antiaborto junto ao setor dos médicos nos últimos 40 anos”, conclui Sônia.
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A posição contrária ao aborto, mesmo nos casos previstos em lei, pode não ser novidade entre a classe médica, mas a guinada do Conselho Federal de Medicina e algumas unidades regionais, após a vitória do ex-presidente Jair Bolsonaro, é evidente. Enquanto a gestão atual da entidade tenta restringir ainda mais o acesso ao procedimento, em 2013, uma nota emitida pelo CFM e os 27 Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) defendia a plena autonomia para a mulher abortar até a 12ª semana de gestação.
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Veja o que já enviamosCristião Rosas, ginecologista obstetra, representante no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir, considera a atuação antiaborto uma deturpação da função dos conselhos profissionais. “Eles deveriam se basear nas melhores evidências científicas e nas práticas internacionais para definir as normas da profissão”. O médico considera que não é papel de um conselho de medicina “restringir direitos reprodutivos estabelecidos há mais de 80 anos”.
O tabu e o preconceito geral em torno do tema no Brasil impedem a escolha e o uso de tratamentos mais seguros em situações de aborto. Isso faz com que toda pessoa que enfrente um aborto no início de uma gravidez – espontâneo ou provocado – acabe tendo o direito à saúde violado.
Problemas para a saúde da mulher
O médico Raphael Câmara Medeiros Parente é um dos personagens-chave para entender a mudança de rota das entidades médicas contra o aborto (veja mais na arte sobre ele). Ele foi reeleito este ano (2024) no CFM e atuou como secretário no Ministério da Saúde durante o governo de Jair Bolsonaro. Há alguns anos, o ginecologista trabalha fortemente para restringir o acesso ao aborto legal.
A resolução do CFM que proibia a indução de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro foi suspensa em maio de 2024 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dois meses após o texto relatado por Raphael Parente. O ministro Alexandre de Moraes afirmou que o CFM ultrapassou sua competência regulamentar, impondo uma restrição de direitos não prevista em lei, “capaz de criar embaraços concretos e significativamente preocupantes para a saúde das mulheres”.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) afirmou que a resolução do CFM vai contra as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) destacou que as pessoas mais impactadas pela resolução são meninas com menos de 14 anos estupradas. Em 2023, 54 mil meninas de até 14 anos foram vítimas de estupro, segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Resposta do Cremerj: Em nota, o Conselho Regional do Rio de Janeiro informou que “atua estritamente em favor do cumprimento da lei e do Código de Ética Médica”. O conselho não comentou sobre a resolução de 2019 obrigando a notificação compulsória de casos de estupro, mas afirmou que está à disposição dos médicos para esclarecer “alguma dúvida relacionada ao exercício legal da medicina”.
Estudantes de medicina e a recusa ao aborto
Muitos abortos tardios (acima de 22 semanas) estão relacionados à dificuldade de encontrar atendimento, pontua o médico Cristião Rosas, destacando que “menos de 4% dos municípios brasileiros têm serviço de aborto legal“.
Uma pesquisa realizada com estudantes de medicina do Piauí mostrou que o motivo do aborto legal faz muita diferença: 50,8% se recusariam a fazer em caso de gravidez decorrente de estupro. O percentual que alegaria objeção de consciência cai para 31,6% quando a interrupção é motivada por anencefalia do feto e para 13,2% nas situações de risco à vida da mulher.
Os estudantes aparentemente não consideraram os danos à saúde da menina ou mulher obrigada a manter uma gestação resultante de estupro. O maior estudo já realizado sobre a saúde mental de quem interrompe a gravidez, The Turnaway Study, evidencia os impactos negativos da falta de acesso ao procedimento.
O grupo de estudantes que negaria a realização do aborto ainda revelou que não ofereceria alternativas: 54% não encaminhariam a mulher a outro profissional e 72,5% não explicariam as opções de tratamento. Todos os participantes da pesquisa que informaram objeção de consciência atribuíram a recusa à religião.
Arruda Bastos, coordenador da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia, ressalta que a objeção de consciência não pode se sobrepor ao compromisso do médico em salvar vidas. Em caso de urgência e emergência envolvendo processos de abortamento, o profissional tem o dever ético de atender a paciente. “Se existe um grupo de plantonistas naquela instituição e eles não querem fazer um aborto legal por problema de consciência, por motivo religioso ou qualquer outro, o hospital tem a obrigação de garantir um profissional habilitado para fazer o procedimento”, afirma.
Para Maria José de Oliveira Araújo, integrante da Rede Médica pelo Direito de Decidir que esteve à frente do primeiro serviço de aborto legal do Brasil, falta informação sobre o tema. “Se as mulheres tivessem conhecimento dos seus direitos, elas não sairiam de um hospital sem ter suas demandas atendidas.”
EUA percebe impacto da proibição
Os problemas no atendimento médico a mulheres por conta de um aborto, provocado ou espontâneo, estão no centro das discussões eleitorais nos Estados Unidos (EUA). Em junho de 2022, o aborto voltou a ser regido por leis estaduais no país, após passar quase meio século legalizado nacionalmente.
Uma sondagem realizada em abril de 2024 no país indicou que 46% dos eleitores conhecem episódios de mulheres que necessitaram fazer o aborto por complicações na gravidez e tiveram que cruzar fronteiras estaduais. O último caso que chegou à Suprema Corte reuniu juízes democratas e republicanos (partidos americanos) cobrando explicações ao estado de Idaho por negar o procedimento a uma mulher com sangramento incontrolável após o rompimento prematuro da bolsa.
A morte de Larissa Vitória de Souza Pereira no Rio de Janeiro em junho de 2024 mostra que a sociedade brasileira também precisa observar a extensão dos impactos da criminalização do aborto. A jovem de 18 anos sofreu um aborto espontâneo aos 4 meses de gestação e morreu no Hospital Rocha Faria após uma curetagem.
A família disse ao site G1 que o intestino dela foi perfurado durante o procedimento, e a Secretaria Municipal de Saúde informou que apuraria o caso. AzMina questionou o estágio atual do levantamento à assessoria de comunicação da pasta, por e-mail, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Tratamentos não avançam pela criminalização
A curetagem é uma técnica ultrapassada e desaconselhada pela OMS há mais de dez anos, mas ainda muito utilizada no Brasil, em 90% dos atendimentos de situações variadas de aborto, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS). “A dilatação e curetagem (D&C) é um método obsoleto de abortamento cirúrgico e deve ser substituído pela aspiração a vácuo ou pelos métodos farmacológicos”, instrui o manual “Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde”, da OMS, editado no Brasil em 2013.
Em 2023, 133 mil pessoas foram internadas para fazer uma curetagem pós-abortamento no Brasil, conforme o Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS) do Ministério da Saúde, e 38 morreram. Já a Aspiração Manual Intra-uterina (AMIU) pós-aborto foi a opção utilizada em 19 mil internações, seguida de uma morte.
Além de ser mais doloroso para a mulher, por ser uma cirurgia invasiva, o método de curetagem oferece mais riscos de perfuração uterina, hemorragia, infecção e óbito. “As taxas de complicações importantes com a D&C (dilatação e curetagem) são duas a três vezes mais altas do que com a aspiração a vácuo”, aponta o manual da OMS. A recuperação após AMIU também é mais rápida e provoca menor perda de sangue, segundo estudo citado pela entidade.
O aborto medicamentoso é praticamente inacessível para as brasileiras, mesmo sendo considerado mais seguro pela OMS. Nem mulheres que sofrem abortos espontâneos incompletos – de gestações desejadas – possuem acesso ao misoprostol (conhecido por Cytotec), medicamento abortivo que poderia ser utilizado no conforto de casa. Ele foi descoberto pelas brasileiras na década de 1980 e está trancado a sete chaves desde os anos 1990, pois só é permitido o uso hospitalar no Brasil.
Todas as mulheres têm que aguentar
Juliana** levou dois anos para conseguir engravidar, fez uma Fertilização in Vitro (FIV) e acabou sofrendo um aborto com dois meses de gestação. Ela descobriu em um exame de ultrassom que o embrião não tinha mais batimentos cardíacos e foi orientada a esperar a expulsão natural (a conduta expectante), o que não ocorreu após 15 dias. As médicas lhe falaram que fazer a curetagem ou mesmo AMIU poderia representar riscos ao útero para uma próxima gravidez.
“Passei duas semanas sentindo dores e angustiada nessa expectativa do aborto, que me abalou muito emocionalmente, foi horrível”, contou Juliana. Se tivesse acesso aos comprimidos de misoprostol, poderia ter induzido o aborto em casa. Mas não sendo possível, acabou optando por fazer a AMIU em uma unidade de saúde, com uma médica de confiança, arriscando não poder engravidar novamente. Se fosse ao pronto-atendimento, seria submetida à curetagem, como foi informada.
Cerca de 20% das gestações resultam em aborto nas primeiras semanas. São muitas mulheres que vivem a situação de Juliana*. No final, todas têm que aguentar dores e sofrimento – ainda que de maneira desigual entre ricas e pobres, pretas e brancas – porque o Brasil não avança nos tratamentos em saúde reprodutiva.
Faltam treinamentos profissionais para melhor atender essas mulheres em abortamento. Pelo contrário, é comum que elas sejam maltratadas se chegarem nos hospitais sem o companheiro, pois médicos, enfermeiros e técnicos desconfiam de aborto provocado.
As falhas no atendimento a mulheres que passaram por aborto, espontâneo ou voluntário, são reflexos de uma formação que não contempla a interrupção da gestação como parte da saúde feminina. A ausência do tema na graduação em Medicina e Ginecologia foi consenso entre os entrevistados do estudo realizado numa maternidade escola por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O levantamento publicado no Caderno de Saúde Pública da Fiocruz mostrou que 58% dos profissionais participantes, entre obstetras e residentes, consideravam insuficiente o contato com o aborto até aquele momento. Os entrevistados trabalhavam em uma unidade referência em saúde fetal e consideraram que essa lacuna na formação impactava negativamente o atendimento das pacientes, especialmente as vítimas de violência sexual.
Perseguição às profissionais
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) suspendeu o registro de médicas do Serviço de Aborto Legal do Hospital Vila Nova Cachoerinha, na Zona Norte de São Paulo, utilizando os argumentos da resolução do CFM que proibia a assistolia fetal em gestações avançadas – ainda que a norma tenha valido por pouco tempo até o STF reverter a decisão (como comentamos acima). A suspensão das médicas pelo Cremesp também foi revogada pelo ministro Alexandre de Moraes.
A perseguição aos profissionais do Hospital Cachoeirinha começou antes, lá no segundo semestre de 2023, quando a Secretaria Municipal de Saúde passou a questionar o procedimento de aborto legal acima de 22 semanas de gravidez. Há relatos de visitas de funcionários da prefeitura da capital paulista, com pedidos de prontuários de pacientes para investigar uma suposta denúncia contra o hospital.
Segundo denúncia do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), documentos sigilosos das pacientes teriam sido acessados pela Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, e também repassados ilegalmente ao Cremesp. O caso é investigado pela Polícia Civil.
Ao mesmo tempo, o Cremesp iniciou uma sindicância contra ao menos dez médicos do Hospital Cachoeirinha, propondo a interdição de três deles. O processo de investigação foi tão rápido que deu pouco tempo para as profissionais prepararem suas defesas. Trabalhadores do Cachoeirinha também receberam ameaças por telefone depois de iniciado o processo sigiloso no Conselho Regional.
O hospital era uma das quatro unidades do país que realizava o procedimento em gestações com mais de 22 semanas. O serviço de aborto legal foi suspenso em dezembro de 2023. A Justiça determinou, por três vezes, a retomada do atendimento, mas a prefeitura da capital paulista recorreu e manteve a suspensão.
Resposta do Cremesp: O Conselho Regional de São Paulo declarou, em nota, que respeita o direito ao aborto legal e reafirma seu papel de fiscalizar a prática ética da Medicina no estado. Segundo o órgão, os processos e sindicâncias citados pela reportagem são sigilosos, impossibilitando a divulgação de informações. Mas o Cremesp ressaltou que não usa sua função para perseguir médicos ou reprimir ideologias, e que atua com rigor técnico e imparcialidade. “Os médicos que norteiam a sua conduta pela ética e por padrões estabelecidos de boas práticas médicas podem desenvolver a sua atividade com autonomia e tranquilidade”, diz o texto.
Aborto por telemedicina ameaçado
A ginecologista e obstetra Helena Paro tem, atualmente, uma sindicância e um processo abertos contra ela no Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRMMG). “A sindicância ainda vai virar processo. Acho que eles estão só esperando a poeira baixar porque o holofote contra o conselho está grande”, avalia.
Helena é professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, e coordenadora de um dos quatro locais no Brasil que realizam aborto legal em casos de violência sexual após 22 semanas de gestação, o Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual).
Desde 2020, ela enfrenta um processo por criar, durante a pandemia de Covid-19, o primeiro serviço de aborto legal por telemedicina do Brasil. Assim como no caso do Hospital Cachoeirinha, a perseguição contra Helena Paro começou com a divulgação de uma cartilha para médicos.
“É uma estratégia para tentar nos ameaçar, nos fazer ter medo”, avalia a médica, que tem medo dessa tática funcionar. “Somos poucos os profissionais que entendem o seu dever ético de ofertar o aborto nos casos permitidos pela lei.”
Esperança na diversidade de alunos
A equipe do Nuavidas saiu fortalecida depois dos ataques sofridos em 2020, na avaliação de Helena. “Estamos mais centrados na pessoa, mais baseados em evidências científicas e muito mais certos de que estamos seguindo as melhores práticas”, explica. “Mas o esgotamento vem”. Em 2022, ela teve de se afastar temporariamente do Nuavidas por esgotamento profissional (Burnout) e quadro depressivo.
Uma fagulha de esperança da médica mineira está no aumento recente da diversidade dos alunos de Medicina nas universidades a partir dos programas de cotas. “Isso vai dando mais sensibilidade, uma maior facilidade de estar no lugar do outro”. Helena Paro alerta, no entanto, que não existe possibilidade de aprender na área da saúde sem a prática. “Para formar profissionais capacitados é necessário expandir a rede de serviço que atenda vítimas de violência sexual e realiza o aborto legal”, explica.
A reportagem d’AzMina também entrou em contato com o CFM e o CRMMG, mas não recebeu nenhum retorno até o momento da publicação desta reportagem.
“Ana Rita Cunha, jornalista formada pela UnB e pela Universidade de Reenes, já trabalhou para Agência Estado, Aos Fatos, Debtwire e CMA; Jane Fernandes, editora assistente da Revista AZMina, é jornalista formada pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-UFBA) e pós-graduada em Marketing pela Unifacs; na mídia impressa, atuou como repórter, chefe de reportagem e editora, dividindo sua trajetória entre os jornais A Tarde e Correio*; Joana Suarez é gerente de jornalismo de AzMina após trabalhar em mídia impressa em rádio em Belo Horizonte e atuar como jornalista freelancer. Foi selecionada para os projetos Feminist Journalist Project da AWID (Association for Women’s Rights in Development) e o Emerging Media Leaders, do International Center For Journalists (ICFJ);
**Nome fictício para preservar a entrevistada