Como as catástrofes climáticas afetam serviços e profissionais da saúde

Experiências durante enchentes no Rio Grande do Sul estiveram no foco de evento sobre impacto das mudanças climáticas na saúde

Por Micael Olegário | ODS 3 • Publicada em 3 de junho de 2025 - 09:28 • Atualizada em 5 de junho de 2025 - 10:20

Viatura policial leva resgatados da enchente a hospital durante temporais em Porto Alegre: impactos da crise climática sobre serviços e profissionais de saúde (Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil – 23/05/2024)

Santa Maria (RS) – Um pequeno grupo de pessoas se reúne enquanto Cintia Santana relata as experiências que viveu durante as enchentes no Rio Grande do Sul. Enfermeira há 16 anos no Hospital Universidade Dr. Miguel Riet Corrêa Jr, da Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Cintia descreve os momentos de tensão que enfrentou para gerir os leitos da instituição, no período em que o hospital, no município de Rio Grande, foi cercado pelas águas da Lagoa dos Patos, em maio de 2024. Mais de um ano depois, a profissional compartilha desafios e aprendizados no Congresso Brasileiro sobre Catástrofes Climáticas (ConBrasCC).

O evento reuniu mais de 900 participantes para discutir os impactos das mudanças climáticas na área da saúde e na vida das pessoas. Entre os principais assuntos abordados estiveram, a resposta de órgãos de segurança pública ao desastre, as intervenções psicológicas e o cuidado com a saúde mental da população e das equipes de saúde no período, além de perspectivas para a adaptação e resiliência diante de futuras catástrofes.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

“O emocional ficou bastante abalado. Eu lembro no dia em que saiu o último e a colega que estava trabalhando nos mandou uma mensagem, falando sobre o quanto foi pesado aquela sensação do hospital vazio”, conta Cintia. O episódio a que ela se refere aconteceu em 17 de maio, quando a instituição foi totalmente desocupada. Os serviços só voltariam a ser restabelecidos em 7 de junho. Essa situação dramática foi vivenciada por diversos profissionais da saúde no Estado.

Leia mais: Hospitais universitários ficaram a beira do colapso durante enchentes no RS

Presente no Congresso, Fernanda Fernandes, enfermeira e diretora da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, lembrou de situações vividas no período e que antes eram impensáveis. Uma delas foi ter de recolher seringas espalhadas na água, após a inundação dos estoques insumos. Fernanda enfrentou isso ao mesmo tempo em que teve a própria casa atingida pela enchente.

No mesmo painel, Fernando Ritter, epidemiologista e secretário de Saúde da capital, listou as dificuldades logísticas e de gestão, como organizar equipes e voluntários e lidar com doações de medicamentos vencidos ou desnecessários naquele momento. “Tivemos menos de 24 horas para evacuar um hospital com 38 pacientes em UTI”, exemplificou Fernando.

Foto colorida da apresentação de Cintia Santana no Congresso. Cintia aparece à direita e falando. Ela é uma mulher preta, com cabelo preto e usa óculos. Ao seu redor, pessoas assistem à apresentação
Cintia Santana, enfermeira do hospital universitário da Furg, conversa com colegas no ConBrasCC: trabalho sobre experiência durante enchentes de 2024 (Foto: Micael Olegário)

Como foi o ConBrasCC?

O Congresso Brasileiro sobre Catástrofes Climáticas foi organizado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em parceria com o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Nessa primeira edição – de 29 a 31 de maio – o tema geral foi “Enchentes e desmoronamentos – impactos, desafios e perspectivas para a gestão dos serviços de saúde”.

Esses profissionais extremamente ativos na linha de frente não conseguem se dar conta do momento que estão ultrapassando a fronteira da exaustão

Débora Noal
Psicóloga e especialista de Referência da Força Nacional do SUS

Um dos objetivos do ConBrasCC foi criar uma rede de colaboração para discutir estratégias para a construção de um sistema de saúde resiliente e eficaz. “Porque no momento da catástrofe ou da emergência, se o serviço não está bem estruturado, ele custa muito a ter uma resposta adequada. E aí as pessoas que precisam ser atendidas sofrem, e os profissionais também”, pontua Tânia Solange Magnago, docente da UFSM e coordenadora-geral do evento.

Além de mesas com profissionais de diferentes áreas e da apresentação de trabalhos e relatos de experiências, o congresso contou com 11 cursos. Os tópicos das oficinas incluíram: pronto-socorro psicológico no contexto das catástrofes, atuação dos cães dos bombeiros no resgate de desaparecidos, plano de contingência para catástrofes, combate à desinformação em contexto de catástrofe climática, entre outros.

Professora no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM, Tânia ressalta que o principal desafio pendente é capacitar profissionais para lidar com eventos extremos, uma vez que, estes devem ficar mais intensos e frequentes. De acordo com ela, a intenção é que o evento seja itinerante e tenha uma edição a cada dois anos em diferentes estados e regiões do Brasil.

Foto colorida de uma das mesas redondas do Congresso Brasileiro sobre Catástrofes Climáticos, realizado no Centro de Convenções da UFSM, em Santa Maria (RS)
Mesa redonda sobre experiências no atendimento de vítimas das enchentes durante o Congresso Brasileiro sobre Catástrofes Climáticas, em Santa Maria-RS (Foto: Micael Olegário)

Impactos psicológicos e emocionais

Psicóloga e especialista de Referência da Força Nacional do SUS, Débora Noal abordou as estratégias para o primeiro acolhimento de vítimas de desastres. Desde 2008, quando o Furacão Hanna devastou a ilha do Haiti, Débora trabalha em catástrofes. Segundo ela, o período entre as primeiras 72 horas até 3 meses é essencial para o acolhimento de sobreviventes de situações extremas.

“Se a população sente que tem amparo e uma estratégia de cuidado voltada para ela, mesmo que não utilize os serviços, ela tem uma sensação de regulação a partir do ambiente”, explica Débora. A psicóloga compara com uma situação de disponibilidade ou não de água potável, no segundo cenário, a tendência natural é de aumento da preocupação e da própria sede, até o desespero.

No caso dos profissionais de saúde, Débora alerta para um adoecimento silencioso e negligenciado pelo propósito de cuidado que envolve o trabalho em desastres. “Isso faz com que esses profissionais extremamente ativos na linha de frente não consigam se dar conta do momento que estão ultrapassando a fronteira da exaustão”. A psicóloga alerta que alguns dos sintomas podem aparecer até muito tempo depois, desencadeados por um sofrimento psíquico no período.

Foto colorida de Débora Noal durante apresentação no ConBrasCC
Psicóloga e especialista de Referência da Força Nacional do SUS, Débora Noal também faz apresentação no Congresso Brasileiro sobre Catástrofes Climáticas: impactos psicológicos e emocionais nos profissionais de saúde (Foto: Vinícius Maeda/Agência de Notícias da UFSM)

Desastres não escolhem fronteiras

Mais de 95% dos municípios gaúchos foram afetados pelo desastre socioambiental em 2024. As águas que caíram nas regiões Central, Serra e Vales escoaram e inundaram Porto Alegre, depois seguiram para Pelotas e Rio Grande. Essa cronologia mostra como as divisões políticas importam pouco no contexto das mudanças climáticas. Esse foi outro dos tópicos discutidos em uma das mesas redondas do Congresso.

Eduardo Fernando de Souza, enfermeiro e membro do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), ressaltou como a falta de diretrizes e planos de contingência afeta a resposta integrada dos serviços de saúde em desastres. Ele também apresentou dados do SOS Chuvas, mobilização feita pelo Comitê Nacional de Enfermagem em Desastres e Emergências de Saúde Pública, e que atendeu 4 mil profissionais de enfermagem e 12 mil familiares no RS.

Em painel sobre a Atenção Primária em Saúde, Liane Beatriz Righi enfatizou a importância do Sistema Único de Saúde (SUS). A professora da UFSM citou ainda os empecilhos gerados pela prioridade dada aos contratos temporários no lugar de concursos públicos, o que diminui a chance dos profissionais estabelecerem vínculos e conhecerem as especificidades dos territórios. “Não tem como enfrentar os efeitos da crise climática sem uma atenção básica robusta”, destaca Liane.

Ao comentar sobre os debates do Congresso, Débora Noal reflete que os profissionais da sua geração tiveram escolha quanto a se preparar para eventos extremos, mas o cenário atual é diferente. “As gerações que estão se formando agora e as que virão se formar não têm mais opção. Serão todos profissionais que em algum momento trabalharão com ou em eventos extremos”.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *