Covid-19: Brasil chega a 300 mil mortes. Quantas poderiam ter sido evitadas?

Bandeira do Brasil sobre um túmulo no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, no Amazonas. Neste dia 24 de março o país alcançou a marca de 300 mil mortos. Foto Marcio James/AFP. Janeiro/2021

Pesquisadores calculam que, se orientações científicas tivessem sido seguidas, pelo menos 40% dessas pessoas estariam vivas hoje

Por Agostinho Vieira | ODS 3 • Publicada em 24 de março de 2021 - 12:38 • Atualizada em 31 de março de 2021 - 09:36

Bandeira do Brasil sobre um túmulo no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, no Amazonas. Neste dia 24 de março o país alcançou a marca de 300 mil mortos. Foto Marcio James/AFP. Janeiro/2021

O dia 24 de março de 2021 poderia entrar para a História como aquele em que o Brasil bateu o recorde de 300 mil mortes por conta da pandemia de covid-19. Não entrará. Essa data, certamente, será esquecida. Infelizmente, no dia seguinte, o país seguirá na sua saga em busca de um volume ainda maior de óbitos. A dúvida é se fecharemos essa triste contabilidade em 400 mil, 500 mil ou mesmo 1 milhão de vidas perdidas. O que fazer? Será que devemos apenas “lamentar todos os mortos” e entender que “este é o destino de todo mundo”, como disse o presidente Jair Bolsonaro, em junho de 2020, quando o Brasil chegava a 30 mil famílias enlutadas? Obviamente, não. Isso não é possível. Nem aceitável. Pesquisadores, cientistas, epidemiologistas e qualquer cidadão de bom senso sabe que grande parte desses óbitos poderia e deveria ter sido evitada. A questão é: quantos brasileiros estariam vivos hoje se o governo tivesse seguido a orientação da ciência e as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS)?

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Seguindo o estudo da Science, se as escolas e universidades fossem fechadas no Brasil e, principalmente, se as aglomerações com mais de dez pessoas tivessem sido banidas, teríamos, ao final da pandemia, cerca de 150 mil óbitos

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A conta não é trivial e, sem dúvida, será imprecisa. Mas, apesar das ressalvas, pesquisadores oferecem algumas pistas para chegarmos a uma ordem de grandeza. Tiago Pereira da Silva, por exemplo, doutor em matemática aplicada pela Universidade de Potsdam, na Alemanha, e professor de Sistemas Dinâmicos e Comportamento Coletivo da USP, cita uma pesquisa da renomada Revista Science, publicada em fevereiro de 2021, que mostra os efeitos do isolamento social na preservação de vidas.

Os autores do estudo avaliaram as iniciativas tomadas em 41 países durante a primeira onda da pandemia. Compararam os resultados de medidas como o fechamento de empresas, restaurantes, boates, encontros limitados a 100 pessoas etc. A ação mais efetiva, segundo a pesquisa, foi a limitação dos encontros a um máximo de 10 pessoas, associada à interrupção das aulas em escolas e universidades. O professor Tiago Pereira, da USP, calculou o impacto dessa medida nos números brasileiros. Em que situação estaríamos se ela tivesse sido adotada por aqui? O resultado é impressionante:

“Seguindo o estudo da Science, se as escolas e universidades fossem fechadas no Brasil e, principalmente, se as aglomerações com mais de dez pessoas tivessem sido banidas, teríamos, ao final da pandemia, cerca de 150 mil óbitos”, calcula Tiago Pereira. Vale ressaltar que o pesquisador não fala em 150 mil mortes hoje, mas 150 mil mortes ao final da pandemia, daqui a alguns meses. Para ele, se essas medidas tivessem sido adotadas por aqui, desde o início da pandemia, neste momento o país estaria no pico da doença, com 75 mil mortes. Logo, com uma redução de 75% em relação à triste marca de 300 mil óbitos que alcançamos hoje.

“Banir aglomerações com mais de 10 pessoas não é uma tarefa trivial. De fato, isso nunca foi observado no país, mas é possível. Se medidas como esta tivessem sido adotadas, catástrofes como a de Manaus teriam sido evitadas e, possivelmente, não estaríamos convivendo com a variante P1. Além disso, neste tipo de análise, é preciso ressalvar que o momento em que as ações são adotadas é muito importante”, explica o professor.

Agente de saúde da Secretaria de Saúde Indígena administra uma segunda dose da vacina contra a covid-19 em uma mulher da aldeia Esperança do Rio Arapiun, no Baixo Amazonas, no Pará. Foto Tarso Sarraf/AFP. Fevereiro/2021
Agente de saúde da Secretaria de Saúde Indígena administra uma segunda dose da vacina contra a covid-19 em uma mulher da aldeia Esperança do Rio Arapiun, no Baixo Amazonas, no Pará. Foto Tarso Sarraf/AFP. Fevereiro/2021

Em agosto de 2020, quando o Brasil chegava à marca de 100 mil mortos, 13 entidades científicas e o Conselho Nacional de Saúde entregaram ao Ministério da Saúde um Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19. Entre as 70 ações recomendadas, estava a necessidade de uma coordenação nacional para combater a pandemia, integrada com estados e municípios. O documento falava ainda na elaboração de um plano estratégico nacional, feito em parceria com a comunidade científica, no fortalecimento da vigilância epidemiológica no país, a busca ativa de casos confirmados e suspeitos, além de ressaltar a importância do isolamento social, do uso de máscaras e álcool gel. Praticamente nenhuma das sugestões foi efetivamente adotada.

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Não havia necessidade de a doença chegar nesse ponto. Com um bom planejamento, metade das mortes poderiam ter sido evitadas. Além de não fazer o que precisava ser feito, com ausência de planejamento, o Governo Federal atrapalhou as ações de estados e municípios, que queriam fazer um trabalho sério

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Na mesma época, o professor Domingos Alves, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP e membro do Projeto Covid-19 Brasil, já dizia que cerca de 40% daquelas 100 mil mortes poderiam ter sido evitadas, caso o país tivesse tomado medidas mais rigorosas de controle. Natália Pasternak, microbiologista e criadora do Instituto Questão de Ciência (IQC), seguia a mesma linha: “Não havia necessidade de a doença chegar nesse ponto. Com um bom planejamento, metade das mortes poderiam ter sido evitadas. Além de não fazer o que precisava ser feito, com ausência de planejamento, o Governo Federal atrapalhou as ações de estados e municípios, que queriam fazer um trabalho sério”.

O doutor em demografia, sociólogo e colunista do #Colabora José Eustáquio Diniz Alves seguiu por um outro caminho para estimar quantas vidas poderiam ter sido salvas. Ele comparou o número de mortes por 100 mil habitantes do Brasil com o de outros países, como Taiwan, Vietnã, Nova Zelândia e o nosso vizinho Uruguai:

“O Brasil deveria ter feito o básico que está escrito nos livros textos de controle de epidemias. Primeiro, uma barreira sanitária, controlando as fronteiras, portos e aeroportos para o vírus não entrar no país. Em segundo lugar, fazer testes em massa onde houvesse suspeita de entrada do vírus. Terceiro, no caso de pessoas infectadas, rastrear todas as interações sociais para monitorar e evitar a transmissão comunitária do vírus. Evidentemente, tudo isto só é viável com uma forte interação entre o Poder Público e a sociedade civil. Os países que fizeram o “dever de casa” tiveram muito menos mortes pela covid-19. Levando-se em conta o tamanho da população, o Brasil teve 142,1 mortes por 100 mil habitantes no dia 23/03, segundo o Ministério da Saúde.  Já Taiwan e o Vietnã tiveram 0,04 óbitos, a Nova Zelândia 0,5 óbitos e o Uruguai 24 óbitos por 100 mil habitantes. O Brasil chega 300 mil vidas perdidas para o SARS-CoV-2 no dia 24/03. Se tivesse o mesmo coeficiente de Taiwan e Vietnã seriam apenas 85 óbitos, considerando o coeficiente da Nova Zelândia seriam 1.060 óbitos e se fosse o Uruguai seriam 50 mil óbitos. Portanto, seguindo os três países do extremo oriente, o Brasil poderia ter salvado cerca de 299 mil vidas. E, se acompanhasse o coeficiente do nosso vizinho do Sul evitaria 250 mil mortes”, conclui Eustáquio.

A pandemia da covid-19 assola o mundo todo há mais de um ano; todos os países foram atingidos de um jeito ou de outro. Todos choram os seus mortos. Sem dúvida, não haveria como evitar que o Brasil fosse afetado de alguma maneira. Mas, entre zero e 300 mil, há um caminho a percorrer, que envolve responsabilidade, gestão, espírito público e muita empatia. Neste texto, quatro especialistas falam em percentuais de vidas salvas que variam de 40% a mais de 90%. Entre 120 mil e 299 mil brasileiros que hoje poderiam estar com suas famílias. Se apenas uma vida pudesse ser preservada já faria uma enorme diferença. Nada aconteceu. Alguém precisa pagar por isso.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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