As mortes, o lucro e a ética do amianto

Com mais de 20 anos de atraso e milhares de vítimas, Brasil começa, finalmente, a se livrar de material comprovadamente cancerígeno

Por Agostinho Vieira | ODS 3 • Publicada em 22 de agosto de 2017 - 08:39 • Atualizada em 17 de dezembro de 2018 - 19:17

Manifestantes na Suíça pedem um mundo sem amianto. Foto Fabrice Coffrini/AFP
Manifestantes na Suíça pedem um mundo sem amianto. Foto Fabrice Coffrini/AFP
Manifestantes na Suíça pedem um mundo sem amianto. Foto: Fabrice Coffrini/AFP

Por que diabos, em pleno século XXI, o Brasil continua usando normalmente um produto que é uma ameaça comprovada à vida humana? De acordo com a OMS, mais de 100 mil pessoas morrem todos os anos vítimas das diferentes variedades de câncer provocadas pelo amianto. Uma delas, a asbestose, conhecida também como “pulmão de pedra”, endurece o tecido pulmonar e mata o paciente por asfixia. É cruel, é absurdo, mas não é novo. Como diria um filósofo famoso, a história se repete, desta vez não mais como tragédia, apenas como farsa.

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Não há dúvida de que esta batalha está prestes a terminar. Os empresários sabem bem disso e já vêm investindo em alternativas há bastante tempo. Algumas até ambientalmente sustentáveis. Mas o problema não acaba aí. Existe um passivo enorme de vítimas e danos a ser coberto.

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Os males do amianto ou asbesto são bem conhecidos desde o início do Século XX. Na verdade, em 1898, em Londres, ele já era chamado de “pó maligno”. Só que entre a identificação do mal e o seu banimento existe um caminho longo e sórdido, que inclui diversas batalhas judiciais, relatórios científicos, desmentidos, ações regulatórias, lobbys, compras de votos, versões menos danosas do produto, mortes, muitas mortes e, obviamente, uma fatia gorda de lucro para quem explora o negócio. Na própria Inglaterra e nos EUA, esse caminho tortuoso durou cerca de 100 anos.

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Agora retire o amianto do parágrafo anterior e substitua por cigarro. Entre a identificação do problema e a proibição da propaganda e do fumo em lugares fechados foram centenas de filmes de Hollywood com atores famosos e suas baforadas sensuais. No meio do caminho tivemos as versões light, sem nicotina, sem alcatrão, com sabores, eletrônicos… A semelhança não é mera coincidência. O enredo é o mesmo e muitos personagens morrem no final. E se no lugar do amianto e do cigarro estivesse a indústria dos agrotóxicos, do carvão, do petróleo, dos automóveis? Exagero? Bobagem? A Refinaria de Manguinhos, que foi atingida por um grande incêndio nesta segunda-feira, funciona há mais de 60 anos no refino de petróleo no Brasil, poluindo o solo e os manguezais de seu entorno principalmente com chumbo e cádmio, substâncias cancerígenas e que podem comprometer o funcionamento do fígado e dos pulmões.

Já o amianto é um mineral barato, que ao longo do tempo já foi usado para produzir cerca de 18 mil artigos diferentes. Das telhas e caixas d`água a freios, embreagens e tecidos resistentes ao fogo. Gerou empregos, divisas, lucros, mortes e danos ambientais. Aliás, países como o Canadá e a Rússia, que praticamente aboliram o amianto dos seus territórios, ganham rios de dinheiro exportando o produto para a China, a Índia e países do terceiro mundo. É só um negócio.

Hoje, mais de 70 países já proibiram o uso do amianto, entre eles, a Argentina, o Chile e o Uruguai. O Brasil, que é o terceiro maior produtor mundial e um dos maiores consumidores, poderia ter entrado nessa lista em 1995, quando aprovou a Lei Federal 9.055, que regulamenta o setor. O lobby da indústria, no entanto, fez passar uma emenda que liberava um tipo específico de amianto, a Crisotila, conhecida como “asbesto branco”. A Crisotila representa nada menos do que 95% da produção nacional. As outras variações foram proibidas, com o argumento de que elas sim eram as verdadeiras vilãs, as que causavam as doenças. Com isso, entramos numa nova fase da farsa: a era do amianto bom e do amianto ruim. Apesar de não haver base científica, é essa tese que ainda vigora no Brasil. Já são 22 anos de mentiras repetidas (está tudo sob controle), mortes, muitas mortes e lucros.

No final de agosto de 2017, pela vigésima vez desde 2001, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu a proibição do uso do amianto no país. Duas ações estavam em julgamento, uma que analisa a constitucionalidade da Lei 9.055, aquela de 1995, e outra que discute a constitucionalidade de leis estaduais que vetam o uso do produto. Desde 2001, as Assembleias Legislativas de oito estados e algumas capitais já proibiram o asbesto. No entanto, recursos do setor impediam que essas leis entrassem em vigor porque contrariavam a legislação federal. Ao final da  primeira votação,, 5 dos 11 ministros votaram a favor da proibição, dois se consideram impedidos. Mas isso não foi o suficiente, faltou um voto para derrubar a lei federal. No entanto, na segunda votação, que decidia sobre a lei de São Paulo, o ministro Dias Toffoli foi decisivo e o uso do material foi banido.  No entanto, ainda resta uma dúvida:  se o banimento vale apenas para os estados onde já existiam leis a respeito ou se ele será realmente proibido em todo o país. Para Dias Toffoli e Celso de Mello, a decisão foi clara e vale para todo o Brasil. Já Alexandre de Moraes diz que valeria apenas para São Paulo. Parece que essa novela ainda terá mais alguns capítulos.

As telhas de amianto cobrem metade das residências no Brasil. Foto Fiocruz
As telhas de amianto cobrem metade das residências no Brasil. Foto: Fiocruz

Não há dúvida, no entanto, de que esta batalha está prestes a terminar. Os empresários sabem bem disso e já vêm investindo em alternativas há bastante tempo. Algumas até ambientalmente sustentáveis. Outras nem tanto, como o fibrocimento, que mistura cimento e fibras de amianto. Mas o problema não acaba aí. Existe um passivo enorme de vítimas e danos a ser coberto. O Ministério da Saúde estima que até 2030 ainda teremos milhares de brasileiros morrendo por conta dos efeitos do amianto. É preciso pensar também na descontaminação e na destinação adequada de milhares de toneladas de produtos que ainda estão espalhados pelo país. Metade das casas e prédios no Brasil está coberta por telhas de amianto, especialmente entre a população mais pobre. Ter uma telha em casa não é exatamente um risco, as maiores vítimas de cânceres como o mesotelioma e a asbestose são os funcionários que manipulam os produtos nas fábricas. Mas é importante lembrar que uma telha quebrada não pode ser jogada no lixo comum. A resolução 348 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) classifica os produtos feitos de amianto como perigosos, portanto, devem ser descartados em aterros especializados.

Em 1924, na Inglaterra, a primeira ação judicial contra um fabricante de amianto, obviamente, não deu em nada. A Turner Brothers Abestos se recusou a pagar qualquer indenização pela morte da jovem funcionária Nellie Kershaw, apesar do extenso relatório médico comprovando que ela havia morrido de asbestose, provocada  pelo contato constante com o amianto na fábrica. Mesmo os pedidos do marido para que pagassem ao menos o enterro foram em vão. Os executivos acharam que seria um precedente perigoso.

Em 1994, na Itália, setenta anos depois, empresários começaram a ser presos e condenados a até 20 anos de prisão por crimes contra a saúde pública. No Brasil, uma prática antiga das empresas é fazer acordo com os funcionários para que eles não recorram à Justiça. Os montantes variam entre R$ 5 mil e R$ 15 mil, de acordo com a gravidade da doença. Não é um número preciso, mas dá para ter uma ideia de quanto vale a vida de um brasileiro.

Vítimas do amianto protestam na França carregando um caixão. Foto Michel Stoupark/Citizenside
Vítimas do amianto protestam na França, carregando um caixão. Foto: Michel Stoupark/Citizenside

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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