ODS 1
Acervo da pandemia identifica sistema de morte e desinformação ligado à covid-19

Esforço coletivo reúne evidências que mostram as relações entre o impacto do vírus, negacionismo e informações falsas

Você conhece alguém que morreu por conta da covid-19? É quase impossível que uma pessoa responda essa pergunta com um “não”. A pandemia deixou sequelas e lacunas no cotidiano de milhares de brasileiros. Produzido pelo SoU Ciência (Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência), o Acervo da Pandemia entrelaça diferentes evidências, dados e temas sobre as desinformações e o negacionismo que configuraram um sistema de morte no período.
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“Cinco anos depois da pandemia ter iniciado, nós vemos que ainda estamos muito despreparados. Certamente aprendemos muitas coisas, mas esquecemos muitas também”, aponta Soraya Smaili, pesquisadora na área de Farmacologia e coordenadora-geral do SoU Ciência, instituição vinculada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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Veja o que já enviamosEntre março de 2020 e dezembro de 2022, mais de 700 mil pessoas perderam a vida devido a complicações da covid-19. Pesquisa feita por pesquisadores de universidades brasileiras, com apoio da Oxfam Brasil, avalia que 120 mil mortes poderiam ter sido evitadas apenas no primeiro ano da pandemia. Outras estimativas apontam que quatro em cada cinco mortes eram evitáveis, mas intencionalmente não foram.
É um projeto de educação, porque ele está à disposição das pessoas que queiram conhecer e aprender sobre o que aconteceu
Idealizado há cerca de dois anos e lançado em março, o Acervo da Pandemia é fruto de um esforço coletivo para reunir materiais e documentos sobre as ações de determinadas entidades e pessoas. “Estudos mostram que havia um sistema coordenado e articulado, que atuou para desinformar, manipular e expor desnecessariamente as pessoas ao vírus e ao risco de morte, durante a pandemia de covid-19 no Brasil, buscando aproveitar a grave crise para impor narrativas e condutas negacionistas”, aponta trecho do levantamento.
Ao todo, são 17 temas e 16 categorias de agentes e atores identificados. Participaram da produção pesquisadores e estudantes da Unifesp, da Universidade Federal Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que integram o SoU Ciência. A criação do acervo também teve apoio de entidades e iniciativas independentes, como Medo e Delírio em Brasília, Camarote da República, Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (AVICO Brasil) e Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (CEPEDISA/USP).
Organização do Acervo da Pandemia
Soraya Smaili recorda que o SoU Ciência foi criado em 2021, em meio à pandemia, aos cortes orçamentários e aos ataques promovidos pelo governo Bolsonaro contra a ciência e as universidades brasileiras. “Inicialmente nós estudávamos a opinião pública e depois passamos a juntar informações sobre a negação da ciência”, complementa a pesquisadora.
O Acervo da Pandemia também faz parte dos desdobramentos do projeto de pesquisa “Necrossistema na pandemia de covid-19 no Brasil: acervo de evidências e mapa multimídia”. Não por acaso, a página inicial apresenta uma contagem das mortes e a explicação sobre como os discursos e condutas anticiência formaram uma política de morte.
“Descobrimos que existia um sistema de divulgação de notícias falsas ou distorcidas sobre as vacinas, a ciência e a covid-19”, explica Soraya. A busca dos materiais em texto, vídeo e áudio considerou também os assuntos que mais repercutiram nas redes sociais e entre influenciadores digitais.
Nós precisamos estar mais munidos de ciência e pesquisa para trazer soluções e, ao mesmo tempo, estar em contato com a sociedade, porque os grupos negacionistas continuam por aí e muito tranquilamente
Entre as referências principais do mapeamento, estão o Relatório da CPI da Pandemia, resultado das investigações sobre a responsabilidade do governo federal no enfrentamento da emergência de saúde, e a “Linha do tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19”, documento do CEPEDISA USP acerca das normas relativas à covid-19 nos níveis federal e estaduais.
Para Soraya, além de fornecer material para a cobrança de ações de memória e reparação, o acervo possui um papel de conscientização. “É um projeto de educação, porque ele está à disposição das pessoas que queiram conhecer e aprender sobre o que aconteceu”, complementa. A intenção é continuar alimentando o projeto com novas informações e documentos, inclusive, com a abertura para colaboração de outras pessoas da sociedade civil.

Principais desinformações e negacionistas
O Acervo da Pandemia aborda desde desinformações que circularam no início da pandemia, com temas, como “o que é o vírus”, passando por questões como “contágio e imunização de rebanho”, “uso de máscara”, “tratamento precoce”, “lockdown e impacto na economia”, até “vacina”, “ética e autonomia médica”, “o caso Manaus” e “Memória, justiça e reparação”.
A lista a seguir descreve algumas das principais evidências sobre condutas negacionistas e desinformações documentadas no Acervo da Pandemia:
- “Chega de frescura e mimimi”: a frase foi dita pelo então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, em uma cerimônia de inauguração da Ferrovia Norte-Sul, em Goiás. Na ocasião, o agora ex-presidente minimizou os riscos da doença e a dor das vítimas e seus familiares. Naquele momento – março de 2021 – 260.970 pessoas tinham morrido de covid-19;
- Pazuello questiona isolamento: no seu discurso de posse como ministro da Saúde do governo Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello questiona as medidas de isolamento social e defende o chamado tratamento precoce, dizendo que a medida poderia salvar vidas. Até essa data – setembro de 2020 – 134.106 mortes pela covid-19 tinham sido registradas;
- Luciano Hang e o tratamento precoce: o empresário defendeu o uso de medicamentos preventivos sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina, para tratamento de covid-19. No vídeo publicado logo após a morte da mãe pelo vírus, Hang lamenta a decisão de não ter adotado o kit de tratamento precoce. Nessa época – fevereiro de 2021, o Brasil já tinha chegado a 231.012 óbitos por covid-19;
- Cloroquina: durante a pandemia, medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida, além de suplementos vitamínicos, foram utilizados para tratar pacientes, mesmo sem evidências de sua eficácia. Esse conjunto de remédios foi defendido por Bolsonaro e outras autoridades, ignorando estudos que, em 2020, já apontavam, por exemplo, que a cloroquina não oferecia respostas eficientes para tratamento da covid-19;
- Osmar Terra desinforma sobre lockdown: o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) utilizou dados falsos sobre isolamento social na Suécia durante a CPI da covid-19. O objetivo do parlamentar foi pôr em dúvida a estratégia no Brasil. Era junho de 2021, o Brasil registrava 504.717 mortes pelo vírus;
- Manifesto do movimento Médicos Pela vida: outra das marcas da infodemia foi o texto lançado pela entidade em abril de 2021. O objetivo foi questionar o uso de máscaras e a vacinação, desconsiderando as evidências que mostram a eficácia dessas duas estratégias de proteção coletiva e controle da doença. 383.502 óbitos pela covid-19 já tinham sido registrados no Brasil nesse período;
- Bolsonaro mente sobre anticorpos e vacinas: baseado em estudos falsos e informações incorretas, o político afirmou que pessoas infectadas pelo novo coronavírus tinham seis vezes mais anticorpos do que aquelas que tomaram a vacina. As alegações foram desmentidas no relatório da CPI da covid-19, em outubro de 2021, quando o número de mortes pela covid-19 já era de 606.246 pessoas.
Justiça e reparação
Além de ser um dos temas de busca no acervo, a questão da justiça aparece também em pesquisa incorporada ao mapeamento. O estudo em questão foi realizado em junho de 2023 pelo SoU_Ciência e Instituto Ideia com 1.295 entrevistados em todo o país.
Ao serem questionadas sobre o julgamento e condenação para eventuais crimes cometidos no período, 52% responderam que sim, 22% disseram não e 26% não sabiam. Para a pergunta: “O que você acha que deve ser feito sobre os crimes da pandemia?”, a maioria dos participantes (45%) respondeu “criar uma comissão da verdade para apurar os crimes”. Indenizar as vítimas (39%) e criar um tribunal especial para acelerar o julgamento (38%) foram as outras duas respostas mais frequentes.
Em fevereiro deste ano, representantes do Cepedisa/USP, da Avico e da Associação Vida e Justiça em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 (Vida e Justiça), apresentaram um estudo sobre as lacunas nas políticas de memória, responsabilização e reparação. A ação levou o Ministério Público Federal (MPF) a abrir um inquérito para pedir informações e fiscalizar as políticas públicas relacionadas ao assunto.
Soraya Smaili pontua que a reparação é importante, principalmente para os familiares de vítimas, mas também como forma de apoio para pessoas que nunca se recuperaram totalmente do vírus. “Nós precisamos estar mais munidos de ciência e pesquisa para trazer soluções e, ao mesmo tempo, estar em contato com a sociedade, porque os grupos negacionistas continuam por aí e muito tranquilamente”, destaca a coordenadora-geral do SoU Ciência.

Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.