Arthur Souto, de 21 anos, estagiava no setor de análises clínicas como biomédico no hospital público Antônio Pedro, em Niterói, quando percebeu a impactante realidade das unidades de saúde locais. “Entrei em contato com muita gente que tinha muita necessidade. Vi garotas de 11 anos que necessitavam de teste para todas as DSTs [doenças sexualmente transmissíveis]”, declarou. No momento em que encarou de frente as demandas desse sistema, ficou evidente para ele que, para ajudar o próximo, o seu sangue era fundamental.
Após se comover com as situações que observava em seu local de trabalho, Arthur se reuniu com colegas da clínica para organizar uma doação de sangue conjunta. Todos foram para o Hemocentro do Antônio Pedro e, um por um, responderam ao questionário que antecede a doação. Após a entrega, eles foram chamados para entrevistas individuais com um profissional de saúde. Nela, Arthur foi questionado: “Essas relações sexuais que você menciona aqui são com meninos ou meninas?”.
Ele afirmou que as relações sexuais que tinha feito eram com homens. Em seguida, a enfermeira sinalizou: “olha, eu fico muito feliz que você tenha vindo aqui hoje, porque é muito bonito querer fazer a doação, mas eu não posso te deixar doar sangue”. Comentou também que a enfermeira tentou buscar diversas formas de explicar o motivo que o impedia de doar o seu sangue. Até que, ao longo da conversa, Arthur entendeu: “Era por eu ser homossexual”. Ele comentou ter se sentido abalado durante dias com a situação. “Eu me senti discriminado dentro do meu próprio ambiente de trabalho e não sabia que o Antônio Pedro estava podendo se dar ao luxo de dispensar bolsa de sangue, que é um serviço essencial”.
Os profissionais de saúde consideravam esses doadores como um “grupo de risco”, quando o que deveria ser analisado era um comportamento que pudesse apresentar algum tipo de ameaça para o receptor da bolsa de sangue, como a não utilização da camisinha no ato sexual, por exemplo.
O sangue de homens que fazem sexo com outros homens (HSH) em um período de 12 meses era considerado inapto para a doação até 8 de maio de 2020. Tal restrição constava em trechos da Portaria n° 158/16 do Ministério da Saúde e da Resolução RDC nº 34/14 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Essa decisão é fruto de uma longa trajetória que teve início com a discussão da antigamente denominada “doença gay”, a AIDS.
A epidemia do vírus HIV marcou a década de 1980. Pouco se sabia sobre as formas de contaminação e prevenção, o que fez com que se espalhasse de forma assustadora pelo mundo. Como foi observada, na época, uma alta contaminação da população LGBT+ com essa doença, diversos países, como os Estados Unidos, China e Alemanha, adotaram medidas para tentar conter a sua propagação. Nesse contexto, o Brasil proibiu, em 1993, a doação de sangue por HSH.
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Veja o que já enviamosUm dos fatores que explica a maior incidência de casos de HIV na comunidade LGBT+ é a prática do sexo anal. A mucosa anal é mais sensível que a vaginal e no ato da penetração acaba sofrendo lesões que expõem o organismo a contaminação do vírus, fazendo com que os homens que praticam o sexo anal passivo possuam maior chance de serem contaminados pelo vírus que se mantém presente no sêmen. Porém, o homem que pratica o sexo anal ativo também possui alto risco de infecção, mesmo que seja menor que o passivo. Vale lembrar que o sexo vaginal, apesar de possuir menor índice de transmissão do HIV do que a prática anal, também permite a transmissão do vírus.
Ao longo dos anos, os estudos sobre o HIV avançaram e métodos de prevenção como a camisinha e a PrEP (profilaxia de pré-exposição) foram se tornando cada vez mais acessíveis. A camisinha, que é o método mais antigo, ajuda a evitar a transmissão do vírus, seja pela prática do sexo anal ou vaginal. Já a PrEP é oferecida no Brasil desde 2017 e se baseia na ingestão diária de um comprimido que impede que o vírus causador da AIDS consiga infectar o organismo. Esses avanços permitiram com que homossexuais, bissexuais e mulheres transexuais conquistassem algum espaço dentro das delimitações dos órgãos de vigilância sanitária em diversos países.
Em 2002, a Anvisa flexibilizou o veto à doação de sangue por HSH, desde que eles não tivessem se relacionado sexualmente num período de 12 meses. Apesar desse avanço social, a comunidade LGBT+ ainda considerava inaceitável que fosse necessário permanecer um ano sem relações sexuais para contribuir com o banco de sangue. Militante da causa LGBT+ e criador da página @empodereumbi, Gabriel Moreira, de 20 anos, explica: “Essa flexibilização não era suficiente, porque ainda é uma forma de cercear a população LGBTI+ de participar das ações referentes ao corpo da sociedade. A questão do sexo anal é uma das principais questões para justificar que homens que se relacionam com homens não deveriam doar sangue e essa flexibilização desconsidera que pessoas cis-hétero também têm relações sexuais anais”.
Depois de ser muito contestada pelo movimento LGBT+, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) levou a discussão para o Supremo Tribunal Federal (STF). O partido pontuou que tais normas estabelecidas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa eram preconceituosas e inconstitucionais. Para a advogada especialista em diversidade e direito de gênero, Bruna Santana de Andrade, de 33 anos, essa discriminação é evidente. “Fere o princípio da igualdade porque trata pessoas iguais de formas diferentes, já que a proibição estava pautada no preconceito, e fere a esfera de individualidade da pessoa poder escolher ou não se ela vai doar”, afirma. A procuradoria-Geral da República concordou com a tese levantada pelo partido. O julgamento começou em 2017, quando o ministro Edson Fachin, o relator da ação, se posicionou a favor da anulação da restrição. Contudo, o processo ficou parado no gabinete do ministro Gilmar Mendes até 2019.
O ano de 2020 chegou e com ele a pandemia do novo coronavírus. Já foram registrados mais de 2 milhões de casos e cerca de 80 mil mortes no país até a última atualização desta matéria. O governo e o Ministério da Saúde tentam controlar a curva de avanço da doença, tomando medidas como o isolamento social, porém o sistema de saúde tem enfrentado sérios problemas tentando atender toda a população afetada. A política da quarentena cerceou ainda mais os estoques de sangue brasileiros. Com isso surge a dúvida: como incentivar e aumentar as doações de sangue pelo país?
Com a emergência sanitária provocada pelo vírus, o STF retomou o julgamento da liberação da doação de sangue por HSH por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade, a ADI 5.543. No dia 8 de maio a decisão de permitir que HSH doassem sangue, derrubou a restrição de tempo imposta anteriormente.
Porém, para Gabriel Moreira, militante LGBT+, essa conquista precisa ser analisada frente a situação política que se vive no Brasil. Ele afirmou que a liberação foi uma medida tomada devido a situação de vulnerabilidade nacional, onde os estoques de sangue disponíveis eram escassos. “Temos que considerar como uma grande vitória do movimento LGBT+, mas a gente não pode ser ingênuo de dar o mérito para o Estado, como se ele se importasse de forma verdadeira com os corpos LGBT+. A gente precisa entender também o porquê de isso ter acontecido nesse momento”, contou.
A votação no STF foi de sete votos a favor e quatro contra a liberação da restrição. Um dos ministros que votou contra foi o Ricardo Lewandowski, que afirmou “[O Supremo] deve adotar uma postura autocontida diante de determinações das autoridades sanitárias quando estas forem embasadas em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados”, alegando que as normas da Anvisa não ferem a Constituição. Foi levantada também pelos ministros que a taxa de HIV presente entre HSH era mais alta que a da população cis-hétero.
Gabriel comentou as justificativas dos votos contra, alegando que os corpos LGBT+ sofrem um processo de patologização e marginalização na sociedade. “Eu acho que esse argumento é muito mais fruto dos estigmas e preconceitos relacionados a homens que se relacionam sexualmente com homens, do que algo concreto. Dessa forma, o Estado nos coloca nesse lugar de sujos, promíscuos e pecaminosos”, explicou.
Ele também acrescentou medidas que deveriam ser tomadas para enfrentar o aumento dos casos de HIV. “A gente precisa pensar a partir da cobrança do Estado por políticas públicas de conscientização sobre as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e cobrar essas políticas não exclusivamente de uma perspectiva heterossexual, mas também de uma ótica que contemple outras formas de relações sexuais entre pessoas com pênis ou pessoas com vaginas”.
Depois do dia 8 de maio, a Anvisa continuou proibindo que HSH doassem sangue caso o período de 12 meses de abstinência sexual não fosse respeitado. A agência alegou que enquanto a Advocacia-Geral da União (AGU) não comunicasse oficialmente a resolução do STF, as regras sanitárias deveriam ser mantidas. Após diversas entidades LGBT+ contestarem essa posição por meio de um abaixo assinado com mais de 15 mil assinaturas, a Coordenação-Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde expediu, no último dia 12 de junho, o Ofício-Circular nº39/2020/CGSH/DAET/MS, determinando que os critérios de restrição não eram mais válidos e não deveriam ser aplicados. No entanto, o ofício foi reaberto no dia 15 de junho e não apresenta nenhuma conclusão do processo na unidade.
A luta por reconhecimento e igualdade atravessa o dia a dia de quem faz parte da comunidade LGBT+ e vem ganhando cada vez mais força quando profissionais do campo jurídico também se posicionam a favor da causa. Como é o caso da advogada Bruna Santana, que desde 2017 representa a luta pelos direitos da comunidade através das redes sociais, oferecendo assessoria jurídica livre de LGBTfobia. Para ela, o caminho ainda é longo e complexo. “O primeiro passo é a questão da legislação. Transformar isso tudo em leis, para que haja uma efetividade maior. Existe uma série de questões que ainda geram preconceitos e que a gente precisa evoluir sobre os direitos das pessoas LGBTQI+”, disse.
Na luta por esses direitos, Gabriel se esforça para conscientizar a população de que os corpos LGBT+ devem ser livres e respeitados, enquanto Arthur ainda reflete sobre o sentimento que vivenciou ao ser rejeitado em seu próprio ambiente de trabalho. Agora, como exemplos dos resultados da liberação, bancos de sangue de várias regiões, sobretudo do Rio, fazem mutirões para receber doadores LGBT+. Alguns grupos também estão fazendo campanhas de doação coletiva para celebrar a inclusão. Para além da comunidade LGBT+, impactada diretamente pela ação do STF, esse avanço afeta todo o corpo social brasileiro, já que a busca pelo direito de igualdade e da não discriminação é algo que deve ser almejado por toda a sociedade.
Quando leio sobre essa questão: “sexo entre homens”, imagino que seja a mais cruel homofobia, porque nivela como se os dois homens fossem gays, mas grande parte desses homens são Bissexuais, que geraram muitos filhos saudáveis, que até já casaram, muitos desses filhos, de homens bissexuais! Parece presenciarmos como uma “revanche” aos muitos passivos como que colocados a altura das esposas! E o que ressalta mais tal convicção, porque parece darem uma blindagem às lésbicas e destas com mulheres bissexuais!