A morte e a morte em tempos de coronavírus

Covid-19 provoca um impacto profundo e, talvez, irreparável nas relações com os doentes e na realização dos ritos fúnebres

Por Carla Rodrigues | ODS 3 • Publicada em 16 de maio de 2020 - 09:26 • Atualizada em 19 de setembro de 2020 - 12:07

Enfermeiras e enfermeiros homenageiam trabalhadores da saúde que morreram do novo coronavírus, durante uma manifestação em Brasília. Foto Evaristo Sá/AFP

O modo como ritualizamos a morte é diferente em cada cultura, assim como também se diferencia ao longo do tempo. Mas há um ponto em comum inquestionável: todas as culturas dão importância a marcar a passagem das pessoas queridas. Rituais fúnebres são formas de simbolizar a nossa ligação com quem partiu e marcar a relação entre os vivos e os mortos. Dito pela filósofa Jeanne Marie Gagnebin: “Cerimônias fúnebres são práticas de celebração e de rememoração, tentativas concretas não de abolir a morte pessoal, inevitável, mas de transformá-la em objeto de um lembrar permanente, constante.”

Há um profundo impacto no modo como a pandemia da Covid-19 tem proibido visitas a pessoas doentes e impedido a realização destes ritos fúnebres. Neste artigo, Mathieu Yon conta a experiência a que o governo francês submeteu sua mulher: buscar as cinzas da mãe num saco plástico. A pergunta que orienta seu texto está posta diante de todos nós: “como ousamos abandonar nossos mortos?”. Documento publicado no  site da Plataforma de Ciência Social em Ação Humanitária (Social Science in Humanitarian Action Platform, SSHAP), que trabalha formando redes de cientistas sociais, sistematiza informações coletadas sobre as mudanças nos rituais fúnebres em diferentes países. A SSHAP  parte de um problema que grandes parcelas de população no Brasil conhecem bem, os impactos negativos e as consequências de negar o direito ao luto público. Foi preciso chegar a 10 mil mortes para que o Congresso Nacional declarasse luto oficial por três dias.

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Sempre houve no país a distinção entre vidas enlutáveis e aquelas que não alcançam o estatuto de vida por não serem uma “vida passível de luto”, para citar a expressão do subtítulo do livro da filósofa Judith Butler, “Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto?”, autora cujo pensamento sobre luto começa a ser desenvolvido depois do 11 de setembro e hoje se mostra mais atual do que nunca, aliando o debate sobre o direito ao luto com a discussão sobre a relação de interdependência entre todas as vidas. Nas imagens de grandes covas abertas em diferentes cidades do mundo está a explicitação daquilo que a filósofa vem elaborando: o modo como somos enlutados indica o valor que atribuímos à vida que foi vivida. O problema novo está no fato de que mesmo as vidas vividas como vivíveis não estão sendo autorizadas a obter o respectivo luto a que teriam direito. Recente iniciativa brasileira de criação da Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais do Covid-19 pretende suprir a lacuna da ausência de uma política de luto por parte do Estado.

Um paciente afetado pela covid-19 conversa com um familiar por uma vídeo chamada em um hospital de campo em Santo André, São Paulo. Foto Miguel Schincariol/AFP
Um paciente afetado pela covid-19 conversa com um familiar por uma vídeo chamada em um hospital de campo em Santo André, São Paulo. Foto Miguel Schincariol/AFP

A SSHAP lista as mudanças nas práticas mortuárias: há países em que os funerais estão proibidos ou desencorajados, outros em que os funerais podem acontecer, mas são limitados em tempo e em quantidade de pessoas, com distanciamento físico, restrito a familiares e até mesmo, como na Coreia do Sul, o adiamento da realização dos funerais. Alguns países estão também proibindo a colocação de objetos pessoais nos caixões. No Brasil, as covas rasas são a imagem do horror da propagação descontrolada da doença, mas não apenas.

Por pressão de diferentes instituições de defesa dos direitos humanos, o governo federal modificou a portaria que chegava a autorizar o sepultamento sem o registro de óbito dos corpos de pessoas que morram durante a pandemia. Coordenador do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (Caaf), o professor Edson Teles (Unifesp) foi um dos que denunciou o risco da cremação dos corpos  e hoje aponta que, entre as revisões importantes da nova portaria estão medidas para futura identificação dos corpos, como como coleta de digitais, material genético e fotografia e registro  das informações no Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (SINALID) .

O Caaf trabalha com ossadas recuperadas nas valas do Cemitério de Perus, em São Paulo, a fim de identificar desaparecidos da ditadura militar. A partir da interpretação das informações fornecidas pela análise dos ossos, inclusive com exames de DNA, é possível identificar as pessoas mortas. Se cremados, os corpos não poderiam mais contar a história das vidas perdidas durante a pandemia, abrindo uma brecha enorme para o desaparecimento de outros corpos.

Nomear e registrar os mortos tem que ser entendido, neste contexto uma tomada de posição política, além de um ato simbólico. Duas iniciativas merecem destaque: a antropóloga Debora Diniz lançou no Instagram a página @reliquia.rum, uma referencia a relicário, para contar histórias de mulheres mortas na pandemia, criando uma forma virtual de enlutar. Vai na mesma direção o projeto Inumeráveis , um site para registro e homenagem dos entes queridos, mortos pela covid-19, o que nos leva de volta à Gagnebin: a tarefa dos ritos fúnebres é “lembrar aos vivos de amanhã a existência dos mortos de ontem e de hoje.”

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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